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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

2.3 A CONTRIBUIÇÃO TEÓRICA DA ECOLOGIA POLÍTICA PARA EMANCIPAÇÃO

A ecologia ultrapassa as dimensões do mundo puramente biológico, como aquela de antes de 1970, em que a ecologia era integrada à biologia, como uma subdivisão da mesma. Apesar de seus estreitos entrelaçamentos, a ecologia chegou a maioridade como uma disciplina que alia processos físicos e biológicos e que também se presta como elo entre as ciências naturais e as ciências sociais. Por meio de tal vínculo, ela possibilita diálogos interdisciplinares, como a ecologia humana, ecofeminismo, ecologia cultural, etnoecologia e ecologia política (ODUM, 1988).

A ecologia política é uma disciplina nova, um novo campo de pesquisas teóricas e pesquisas empíricas em concomitante com a ação política. Emergiu pioneiramente em uma perspectiva neo-marxista, transformando-se posteriormente para conformar uma epistemologia ecológica relacionada à incursão da crise ambiental (LEFF, 2013). Engendrou-se das interseções entre etnobiologia, geografia humana, antropologia, história, ciência política e ecologia cultural para interpretar relações de poder relativo à intervenção humana no ambiente, entrelaçando a natureza material e a cultura simbólica (LEFF, 2013). Esta transdisciplinaridade realça as diferentes disciplinas sem erradica-las, pois, a abordagem da ecologia política permite que dentro de seu campo cada matriz disciplinar aplique seus conceitos e técnicas, aspirando esclarecer as múltiplas feições das relações ecológicas frente às realidades que às compõem (LITTLE, 2006).

Desde as primeiras discussões inerentes à vida pública na antiga Grécia, jamais se falou de política sem falar de natureza, todo apelo à natureza era imanente às lições de política. Entendimentos da política e entendimentos da natureza eram e são estreitamente vinculados e correspondentes. Neste quadro, a ecologia política interessa-se tanto pela produção científica quanto pela produção política, não pertence ontologicamente a nenhuma, e admira tanto os políticos quanto os cientistas, sem o intento de utilizar de uma para subjugar a outra (LATOUR, 2004).

Há registros da expressão “ecologia política” em 1957 por Bertrand de Jouvenel, porém, foi em 1972 que este termo foi inserido no meio acadêmico pelo antropólogo Eric Wolf (MARTINEZ-ALIER, 2007). Nos últimos 30 anos, a ecologia política tem sido apresentada como um novo campo de investigação, integrando o foco da ecologia humana com as inter-relações que populações humanas mantêm com os ambientes biofísicos, em

conjunto aos conceitos de economia política que utilizam estratégias analíticas na pesquisa das relações estruturais de poder entre sociedades (LITTLE, 1999; SHERIDAN, 1988; STONICH, 1993 apud LITTLE, 2006).

É também entendido como um movimento que reivindica uma ação social transformadora, respaldando-se na análise teórica, militância e luta política, alinhado com as grandes lutas históricas da Esquerda. Este movimento sustenta-se na crítica, análise e compreensão teórica da ordem das coisas existentes, em específico, a relação humanidade/natureza. A ecologia política rejeita a excelência das forças produtivas, pois esta subordina relações sociais e cosmovisões que às conformam. A relação humanidade/natureza é concebida em termos de respeito por humanos e não-humanos (LIPIETZ, 2003).

A ecologia política configura-se harmonizada com movimentos ambientais contestatórios, que alegam a defesa de minorias raciais, e denunciam o contexto de injustiça social e ambiental tanto em países desenvolvidos, quanto no Terceiro Mundo. Propostas de justiça ambiental, resistência como estratégia de luta e elaboração de alternativas ao desenvolvimento, integram-se nesta abordagem (JATOBÁ; CIDADE; VARGAS, 2009, p.69). Emergiu como uma ideologia para desconstruir a ideologia capitalista e seus interesses, no que diz respeito às práticas de apropriação da natureza e seus discursos para mitigar uma crise socioambiental que ela mesma engendrou, cujos ameaçados e atingidos por esta, são principalmente os habitantes do Terceiro Mundo (ENZENSBERGER, 1974; O’ CONNOR, 2003). Desconstruindo a racionalidade moderna e seus campos teóricos, é possível edificar uma racionalidade ambiental alternativa (LEFF, 2013).

As teorias da ecologia política são zonas de esperança para reincorporar uma dimensão respaldada no lugar, em discussões concernentes à globalização, e até mesmo articular defesas para o lugar. Reintroduzidas desta maneira, a ecologia política pode auxiliar na concepção de práticas econômicas fundamentadas localmente, na procura de definir ordens alternativas sem desvincular-se do global (ESCOBAR, 2005).

No Sul, a ecologia política manifesta-se por intermédio de uma diferença substancial em condições ecológicas e culturais de seus povos, desenvolvendo estratégias emancipatórias para descolonização do conhecimento, reinvenção de territórios e reapropriação do ambiente natural (PORTO-GONÇALVES, LEFF, 2012 apud LEFF, 2013). Ela implica em conviver com a diversidade e solidariedade entre seres humanos com culturas distintas e direitos coletivos. A diversidade cultural é o subsídio para desagregar a lógica unitária junto ao

mercado global, reorientando o ser por intermédio da pluralidade de vias etno-eco-culturais para emergir sociedades sustentáveis (LEFF, 2013).

A etnografia dentro da ecologia política é essencial para analisar formas peculiares culturalmente de adaptação ecológica de diferentes grupos sociais. “Sociólogos foram pressionados a imitar o cientificismo das ciências naturais. Os antropólogos sem tal pressão, foram mais felizes e permitiram que seus atores criassem um mundo mito mais rico” (LATOUR, 2012). Muitas vezes, o investigador em ecologia política ao estudar determinada população, deve mapear os principais elementos biofísicos, apontando elementos relativos à geologia, fauna e flora, fluxos hídricos, bem como as principais atividades humanas do local. As realidades socioambientais que emergem das interações entre o mundo biofísico e social devem ser identificadas em sua completude (LITTLE, 2006).

As pesquisas desenvolvidas neste campo, constantemente têm enfatizado a hibridização e comparação entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico, cuja prática intenta gerar uma terceira forma de conhecimento associando ambos, por intermédio do diálogo de saberes como estratégias de poder, para construir novas identidades culturais, para incorporar tal conhecimento na luta pela apropriação da natureza e, assim, implementar propostas de desenvolvimento endógeno com participação de atores locais. Sob o viés de tais abordagens, pode-se afirmar que o diálogo do conhecimento acadêmico com os conhecimentos tradicionais pode conduzir a sustentabilidade cultural e ecológica, criando sinergias para valorizar o mundo e culturas marginalizadas, com melhor aproveitamento e compreensão dos recursos naturais, desafiando o paradigma convencional (TOLEDO, BARRERA, 2006; ALVES, SOUTO, 2010; LEFF, 2013).

Em algumas correntes teóricas, tal como apresentada por Escobar (2005), ela carrega a defesa das identidades culturais, do lugar e da região, em constante dinâmica com a natureza, com o intuito de esquivar-se da homogeneização cultural, aspirando um planeta composto de vilas, cidades e populações diversas (BORRERO, 2002; LEFF, 2013). No entanto, Bruno Latour (2004) traz elementos que contrastam com aqueles expostos até aqui, alegando que a ecologia política não se interessa pela defesa do lugar ou da natureza e se respalda nas incertezas das relações. Para este autor, a ecologia política não pode ser caracterizada por uma crise da natureza, mas sim como uma crise de objetividade imanente à Constituição moderna. Assim, elabora uma nova proposta para desintegrar divisões entre natureza e cultura.

Na prática da ecologia política deve-se eliminar fronteiras epistemológicas e institucionais que integram a Ciência, levando a ecologia política a se reconhecer exatamente

na ignorância na qual se encontra, realçando a importância dos atores sociais, nominados actantes (LATOUR, 2004).

Stengers (2005) apresenta a proposta cosmo-política muito próxima da ecologia política latouriana, revestida de sentido exclusivamente em ocasiões onde existe a prática. É configurada em relações entre humanos e não-humanos. Na cosmo-política, o cosmos é inerente ao desconhecido, configurado por diversos e diferentes mundos, por articulações nas quais são aptos a conectarem-se (STENGERS, 2005). O cosmos dilata possibilidades, criando um espaço do desconhecido, que viabiliza contemplar outros mundos. Por intermédio do dispositivo da imaginação, a cosmopolítica insurge, rompendo concepções de um saber unitário (OLIVEIRA, 2015). Em tal proposta, a noção de imaginação é essencial para reconectar a dicotomia sujeito/objeto, material/imaterial, por sua mediação, o incorpóreo é revestido de possibilidades de ser experimentado pela condição humana corpórea e material (HUGHES, 2002).

Dentro de uma abordagem etnográfica, se abstendo da objetividade moderna, pode- se averiguar que culturas não-ocidentais jamais se interessaram pela natureza, por não a utilizarem como categoria. A alma de diversas populações hibridiza-se com as coisas, com a fauna, flora, e até mesmo com astros. Uma abordagem fundada na divisão entre sujeito e objeto, é incapaz de acessar esta realidade (LATOUR, 2004).

Para ter acesso a esta realidade híbrida por excelência, Latour (2004) apresenta a Teoria Ator Rede, concentrada na abordagem em redes, que não é estruturada em abordagens referentes à natureza em si, portanto, aborda o envolvimento humano e não-humano sob uma nova fisionomia, que conecta a natureza das coisas ao contexto destas, sem reduzir qualquer uma delas. As redes não são objetivas, nem sociais, nem efeitos de discursos, são reais como a natureza, narradas como o discurso e coletivas como a sociedade. A rede não é estática, apenas é possível compreendê-la em seu processo (LATOUR, 2004).

3 RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: RESISTÊNCIA, PLURALIDADE E RELAÇÕES COSMO-POLÍTICAS