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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

3.3 A LÓGICA QUE PERPASSA AS RELAÇÕES COM A NATUREZA EM CULTOS

A diversidade cultural e diversidade ecológica são dois domínios de realidades indissociáveis. O arcabouço teórico mobilizado até o momento revelou de forma genérica que os cultos afro-brasileiros são resultados de interações de diversas matrizes étnicas, que pelos eventos expostos alhures, engendraram estes ricos complexos culturais. A ruptura do ambiente familiar, social e ecológico que o negro estava habituado na África, compeliu a reestruturação dos aspectos basilares de suas existências por meio da hibridação com elementos tangíveis e intangíveis acessados no Novo Mundo. A literatura revela que dentro

destes grupos, uma impressionante diversidade ecológica associada à saberes ancestrais e tradicionais é acionada e conservada por meio da prática religiosa (ALBUQUERQUE, 2001; BARROS; NAPOLEÃO, 2015).

Para os povos africanos que originaram as religiões afro-brasileiras, a natureza perpassava todos os níveis existenciais. Para os sudaneses, por exemplo, as florestas não eram apenas fontes de subsistência, mas também emanações de forças espirituais que davam suporte as necessidades das sociedades adjacentes às suas localizações. Esta relação com a natureza foi concretizada por meio do conhecimento empírico acumulado através dos séculos, no qual o ser humano era bastante habituado com a fauna e flora, e nelas encontrava recursos para manutenção de suas sociedades em esferas físicas e espirituais (BARROS; NAPOLEÃO, 2015).

Os negros ao chegarem ao Novo Mundo, estavam diante de ecossistemas estranhos, repletos de outras formas de vidas e interações, e neles necessitaram obter elementos da natureza de modo que permitisse a reprodução de seus valores, identidades e conexões com as divindades e ancestrais, que interagiam com suas sociedades no continente africano. As densas florestas nativas existentes no Brasil possibilitaram que os negros adequassem as suas práticas etnobotânicas e etnoecológicas com a assimilação de novos componentes biológicos a disposição (BARROS; NAPOLEÃO, 2015).

A globalização em processo pela expansão dos mercados havia possibilitado que espécies botânicas nativas das Américas e Ásia estivessem há muito tempo aclimatadas na África, por interesses econômicos dos colonizadores, para fins cosméticos, condimentícios e alimentícios no mercado internacional que se conformava. Por exemplo, as espécies nativas das Américas, tais como, o milho, tabaco, batata, cana-de-açúcar, goiaba, espécies nativas da Ásia, tais como a mangueira, a jaqueira e o tamarindeiro, já eram conhecidas pelos negros, inclusive em suas propriedades mágicas e terapêuticas. Essas espé cies foram trazidas ao Brasil pelos colonizadores, assim, seus usos ritualísticos foram mantidos pelos negros e afrodescendentes. Espécies botânicas africanas empregadas em rituais afro-brasileiros, tais como o inhame, quiabo, melancia, mamona, dendezeiro, pimenta-da-costa, obi, órógbó,

àrìdan e akoko, dentre muitos outros, foram trazidas com os próprios escravos e com jêje-

nagôs libertos que viabilizaram o intercâmbio comercial de tais espécies entre ambos os continentes. Com exceção das espécies biológicas e elementos que passaram por este processo de internacionalização e aclimatação, a maioria dos componentes ecossistêmicos brasileiros era desconhecida para os negros (BARROS; NAPOLEÃO, 2015).

A troca de elementos culturais e ecológicos entre o continente africano e o Brasil, inicialmente foi resultado do comércio escravagista e do mercantilismo global. Entretanto, a partir do século XIX, com o intercâmbio de sacerdotes, religiosos, intelectuais, escritores, artistas e diversos mediadores, brasileiros e africanos por meio de viagens transatlânticas, e a progressiva propagação da literatura sobre religiões afro-brasileiras e da África Ocidental, os elementos da natureza e seus saberes associados passaram a transitar livremente para constituir as relações entre sociedade/divindades/natureza em cultos afro-brasileiros (MATORY, 2005 apud SILVA, 2015b).

As religiões afro-brasileiras mantiveram a lógica de seus genitores africanos no que tange ao relacionamento dos seres humanos com os vegetais e demais elementos da natureza. Nestes contextos, toda natureza e todo cosmo são revestidos de atributos divinos, vivenciadas em suas ontologias e cosmologias, mobilizadas de forma que induzam experiências mágicas e místicas. Os novos elementos integrados nos sistemas religiosos afro-brasileiros foram res- significados dentro de suas lógicas e tradições. Apesar das diferenças dos novos elementos comparados àqueles que eram empregados na África, o princípio do uso dos mesmos permaneceu inalterado (ALBUQUERQUE, 2001).

A complexidade simbólica atuante em rituais de cultos de matriz africana é registrada na diversidade de explanações relativas aos poderes mágicos da natureza e suas correspondências entre as divindades, espíritos, vegetais, animais, pedras, cores, obrigações, na pluralidade de ordem linguística oriunda do cruzamento de diversas etnias do continente africano (GUEDES et al 1985, p. 08). O respeito e a devoção por elementos que compõem a natureza são princípios gerais regentes de todos estes cultos, a mística que sustenta suas estruturas é uma questão ideológica primordial para a manutenção de suas identidades, porque atribuem locais da natureza como morada de seus Deuses e guias espirituais (BRUMANA, 2005).

Evidências apontam que o modo de conceber o cosmo e a natureza pelos iniciados, retrata que a racionalização e a lógica que sustenta a modernidade não desmantelam suas formas de perceber e relacionar-se com a natureza (PREVITALLI, 2014). As divindades, Orixás maiores, Orixás menores, voduns, inquices, guias espirituais, eguns e encantados cultuados, correspondem aos fenômenos e elementos manifestos pela natureza (VERGER, 1981), associados aos animais, vegetais, minerais, toques musicais, cores e todo tipo de elemento existente (GUEDES et al, 1985). Além de presentes em diversos fenômenos de

ordem natural, estas divindades também podem habitar em um lugar estratosférico, inalcançável, ou na cabeça de seus filhos – os iniciados – (BERKENBROCK, 1997).

A racionalidade que perpassa a relação com a natureza presente em cultos afro- brasileiros remete à concepção da multiplicidade, onde não há espaço para existência de uma separação ontológica entre sujeito e objeto. Pois há conexão e fluxos de seres humanos, elementos da natureza (pedras, vegetais, animais), locais (florestas, oceanos, rios, encruzilhadas) e entidades não-humanas (Orixás e guias espirituais) que constituem uma fisionomia religiosa e política (VERGER, 1981; RAMOS, 2015).

O indivíduo imerso nestas formas de interagir com a natureza e o cosmos retrata de um ser humano ecológico devido a sacralização da natureza. O universo é sagrado e concreto concomitantemente, pois tudo o que existe no mundo biofísico, também existe no mundo sobrenatural. Componentes mitológicos e transcendentais elucidam a identidade dos elementos da natureza, percebe-se que marcas litúrgicas da natureza configuram uma expressiva tabuada no cotidiano dos iniciados (AUGRAS, 1983; SERRA et al, 2002). Em meio a um cosmo sacralizado, reside uma racionalidade contra-hegemônica, plasmada em relações entre humanos, divindades, animais, minerais, vegetais, fungos, fenômenos da natureza diversos, que demonstram uma base ontológica, epistemológica e política, divergente àquela que constitui a racionalidade moderna (ELIADE, 1992; ESCOBAR, 2005).

Nas relações com a natureza em diversos cultos afro-brasileiros, as plantas emergem como actantes expressivos, fundamentais e indispensáveis para estruturar o desenvolvimento de práticas essenciais para manutenção dos terreiros, suas liturgias e ritos8. A expressão iorubana “cossi ewe, cossi Orixá”, isto é, “se não há planta, não há Orixá”, aponta a importância basilar destes actantes para que seja possível o relacionamento com os entes sobrenaturais que se agregam nestes locais e conduzem a vida das comunidades que a eles recorrem. As plantas estão presentes nos banhos de descarga, nas defumações, na confecção de objetos ritualísticos, em chás e beberagens diversas, remédios caseiros de diversos modos de aplicação, são indispensáveis em jogos oraculares, oferendas, são distribuídas nos templos de diversos modos e significados (BARROS; NAPOLEÃO, 2015; CAMARGO, 1988).

No interior destes cultos, durante as constantes práticas de benzedura, atendimentos espirituais, banhos de ervas, ebós, oferendas, etc., são agenciadas forças cósmicas, locais e

8 Em casas de religião de matriz nagô e jêjê, a sacralização das plantas é radicalizada na celebração do ritual

chamado Sasányìn, cujo objetivo fundamenta-se especificamente os mistérios espirituais dos vegetais colhidos. No enredo ritualístico, as plantas são reverenciadas com cânticos e fórmulas sagradas, aspirando despertar as forças ocultas dos vegetais. Os cânticos e fórmulas são antecedidas pela saudação do Orixá Ossaim, divindades das folhas, e uma louvação/oríki ao mesmo (BARROS; NAPOLEÃO, 2015).

seres sobrenaturais, natureza, pessoas e acontecimentos. O cosmos e a natureza penetram em o que seres humanos fazem em suas práticas (RAMOS, 2015). Os elementos da natureza, ao serem utilizados nas formas anunciadas, são concebidos sob um prisma que transcende os limiares do mundo biofísico, que de imediato transfiguram-se numa manifestação sobrenatural, na qual entidades sobrenaturais são mobilizadas para intervirem na realidade material sob determinado intento, para que nela compartilhem a existência com seres humanos (ELIADE, 1992; CAMARGO, 1998).

Além dos elementos e locais da natureza mobilizados que são associados às divindades e entes espirituais, também existem correspondências além da natureza presente no planeta, tais como os vínculos entre divindades e corpos celestes (Ogum da Lua, Xangô do Sol), com o tempo cronológico em suas dimensões passadas, presente e futura (Oyá Logunã, Iroko, Tempo; Orunmilá, Ifá, Exu) (RAMOS, 2015; SARACENI, 2013).

A presença de entidades sobrenaturais nos elementos da natureza é anterior às suas utilizações religiosas. Por exemplo, a pipoca traz consigo todas as feições e peculiaridades do Orixá Obaluaê, entretanto, tais características não serão manifestas sem um desenvolvimento ritualístico para evocação desta divindade (ANJOS, 2008). Em comunidades de influência nagô, quando um iniciado agencia determinado elemento natural de acordo com preceitos religiosos, inferindo sobre o mesmo as rezas, cânticos e encantamentos, se acredita que o axé do elemento é extraído para que a entidade sobrenatural que ali concentra suas qualidades se alimente deste Axé, e atue sobre a existência do indivíduo, de terceiros ou da comunidade religiosa em geral (RAMOS, 2015). Em síntese, o axé liberado pela natureza fortalece o espírito para que atue em benefício da harmonia no mundo biofísico, e coloca o ser humano em conexão com as grandezas que ordenam a natureza (LOPES, 1986).

De acordo com Augras (1983):

Axé é a força mágico-sagrada, a energia que flui entre todos os seres, todos os componentes da natureza. Ao designar aquilo que, no mundo, é significativo e poderoso, a religião aponta para seres e objetos que mais força possuem. A intensidade desta energia varia. Pode aumentar ou diminuir. Como tudo no mundo, é sujeita à erosão do tempo. Os ritos objetivam adquirir, manter, transferir e aumentar a força. Pode-se dizer que a essência dos rituais é precisamente a fixação e desenvolvimento do Axé [...] O princípio do Axé, a quintessência da energia que se encontra na natureza, é obtida a partir de uma química específica. Os elementos fundamentais são tirados de fontes minerais, vegetais e animais. (AUGRAS, 1983, p.65-66).

Não é possível entender a lógica que permeia a religiosidade afro-brasileira sem considerar as especificidades dos processos ritualísticos. Muitas informações são restritas aos

iniciados numa Casa de Axé, conservadas sob a pena de banalização e perca de axé do elemento que constitui a informação (BASTIDE, 1973; GALLICIANO, 2015). A fala é um dos mecanismos utilizados nos coletivos afro-brasileiros para que sua rede seja mobilizada (LATOUR, 2012).

Toda iniciação em comunidades nagô objetiva em preparar o adepto para que seja um receptáculo de Axé, cada etapa iniciática possibilita que a absorção desta força divina seja mais intensa. O Axé, além de ser ativado por técnicas especificas em relação aos elementos da natureza, é transmitido pelos dirigentes do templo que tiveram a vivência necessária para aprender a manipular esta energia da natureza, tal como esclarece Augras (1981):

A própria transmissão do saber iniciático é, por si só, considerada como troca de Axé. É por isso que só pode ser realizada oralmente. Quando a sacerdotisa fala ao postulante, seu hálito lhe transmite Axé. O conteúdo de suas informações é sem dúvida relevante, mas a interação entre duas pessoas concretas também é. O intercâmbio não se produz em nível intelectual apenas. É toda a situação, um momento existencial específico, que se condensa e se expressa na transmissão. Falar em transmissão oral é um tanto inadequado. O conceito parece por demais limitado. A transmissão do saber iniciático faz-se por meio do canto, dos gestos, da dança, da percussão dos instrumentos, do ritmo, da entonação de certas palavras, da emoção que o som exprime [...]. Além disso, não se pode dissociar palavras e textos rituais da dinâmica dos gestos que os acompanham (AUGRASS, 1981, p.68).

Neste sentido, o modo de conceber o conhecimento pelo povo-de-santo toma dimensões peculiares nas quais existe estrita conexão entre conhecimento e poder (SILVA, 2015). Goldman (2006) reitera que qualquer indivíduo que aspira aprendizados das vias que constituem os cultos, deve se acostumar com a ideia de que para que um aprendizado seja efetuado há um longo período de tempo a ser percorrido e que de maneira alguma receberá ensinos sintetizados, logo que adentra ao estudo de uma casa de religião. O processo de aprendizagem inerente à natureza não é de forma isolada, como uma área de conhecimento separada das demais, mas ocorre dentro de um contexto cotidiano, que envolve diversos outros conhecimentos e práticas imbricados.

Quando se descreve o conjunto dos ritos e dos comportamentos litúrgicos como vasta rede de distribuição e armazenamento da força sagrada, passa-se contudo a compreender que qualquer modificação, por mínima que seja, afeta a totalidade do sistema, e que, portanto, cada elemento só pode ser apreendido em função do conjunto (AUGRAS, 1983, p.70).

Galliciano (2015) destaca que os conhecimentos são absorvidos consoantes às necessidades da Casa de Santo, também em ocasiões que o adepto está presente auxiliando ou

participando em alguma manifestação ritualística. Nestas circunstâncias, o aprendiz adquire conhecimentos relativos à culinária, cânticos, dança, percussão, artesanatos ritualísticos, cromologia, linguagem iorubana, funcionamento da estrutura social do templo, além dos conhecimentos relativos aos elementos da natureza. A autora alega que durante o processo de aprendizagem, um adepto não percebe a grandeza qualitativa e quantitativa dos conhecimentos que assimila em suas peculiaridades (GALLICIANO, 2015). Uma compreensão mais abrangente desta lógica se dá exclusivamente pela prática religiosa experimentada e vivida que não pode ser explicada pela razão de modo externo aos seus contextos (BERKENBROCK, 1997).