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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

2.2 A BUSCA POR OUTRAS DIMENSÕES DE REALIDADES: AS OPÇÕES

Uma das realizações da razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de expeli-los para fora da esfera normativa do “real”. Concordo que hoje não há algo fora do sistema; mas há muitas exterioridades, quer dizer, o exterior construído a partir do interior para limpar e manter seu espaço imperial. É da exterioridade, das exterioridades pluriversais que circundam a modernidade imperial ocidental (quer dizer, grego, latino, etc.), que as opções descoloniais se reposicionaram e emergiram com força (MIGNOLO, 2008, p.291).

O impacto sistêmico e global do descredito à narrativa moderna tem possibilitado um crescente número de pessoas que almejam retomar modos produtivos que a modernização havia menosprezado, demonstrando resistência a esta estrutura ocidental/colonial, tais como expressos nas comunidades de permacultura, nas redes de recuperação e de câmbio de sementes crioulas, na agricultura agroecológica e, também em comunidades daimistas e hare- krishnas que incorporam práticas tradicionais camponesas em seus sistemas de vida, por exemplo (BRANDÃO, 2007; SANTOS, 2012, apud ESCOBAR, 2005, p. 28; STENGERS, 2015).

Na esfera acadêmica, os debates tencionados em torno desta temática se mostram fecundos na esfera de produção política e intelectual latino-americana, que pela linha de pensamento descolonial, elaboram ricas críticas aos saberes hegemônicos com consistência teórica-metodológica, apontando a existência de vastos universos invisibilizados no enredo moderno, cujos sistemas de saberes e práticas são apresentados como possíveis alternativas para a crise de conhecimento eclodida (LANDER, 2007).

Investigações etnográficas imergidas no contexto do Terceiro Mundo exploraram diferentes e diversas práticas de pensar, irmanar, experimentar e codificar dimensões biológicas e naturais (ESCOBAR, 2005, p. 02-05). Tais pesquisas apontam modelos locais que baseiam suas práticas em harmonia com a natureza, apresentam-se resistentes à hegemonia global, pois são concebidos em um conjunto de práticas de usos-significados não-capitalistas, cuja maioria é ecologicamente e culturalmente sustentável (GUDEMAN, RIVEIRA, 1990, apud ESCOBAR, 2005, p. 14). Grupos religiosos de matriz africana que resistem na América Latina tais como Santeria, Vodu, Candomblé, Linha Cruzada, Umbanda, Quimbanda, Rastafarianismo, dentre muitos outros, são exemplos de grupos contra- hegemônicos que possibilitam inúmeras outras formas de traduzir a realidade, partindo de

relações cosmo-políticas que são completamente estranhas à racionalidade moderna/científica (ANJOS, 2006; MIGNOLO,2008; RAMOS, 2015).

Para que seja possível um aprendizado com estes saberes rejeitados na história narrada pelos modernos, deve-se partir de uma orientação epistemológica, política e cultural que visem a busca por aspectos ainda resistentes a tal dominação, aspirando consolidar teorias que viabilizem explorar oportunidades para reconfigurar a concepção de mundo partindo de práticas existentes no mundo micros-social dos atores em vez de reduzir suas riquezas e pluralidades sob uma pobre heterogeneidade estrutural, como corrente no paradigma liberal e marxista (SOUSA SANTOS, 2004; ESCOBAR, 2005).

Em muitas fisionomias de saberes alternativos à modernidade, especulações teóricas não se tratam de questões para seus porta-vozes, tais saberes não são unanimes, que permitem interpretar o mundo por mediação de múltiplas lentes, que pela diversidade, podem fomentar o embate aos poderes centralizados organizados na atual sociedade. No interior do regime dominante da racionalidade moderna, os conhecimentos marginalizados, subjugados, reprimidos apresentam potencial para dirigir rumo à emancipação deste regime (LEFF, 2013). Aceitar a legitimidade destes saberes e práticas “[...] não se trata, como se fala às vezes, de aceitar uma linguagem comum, mas sim de aceitar a diversidade [...]” (RAYNAUT, 2011, p.99).

Destarte, emerge a necessidade de desmantelar as lógicas totalitárias que sustenta o sistema-mundo moderno para insurreição de conhecimentos invisíveis dos diversos grupos locais ou tradicionais que são marginalizados e, assim, descolonizar o pensamento valorizando as diferentes interpretações da realidade, da natureza, da vida humana e das relações sociais, em modos múltiplos de edificar a vida no mundo (FOUCAULT 1980 apud LEFF, 2013). Para construir um mundo cultural e ecologicamente sustentável, é necessária uma desconstrução dos ideais de desenvolvimento propostos pelo modelo socioeconômico dominante (LEFF, 2010).

Desconstruir e reconstruir a lógica unitária da ciência objetiva, da expansão do conhecimento e seu controle sobre o mundo, é imanente ao pensamento complexo, que possibilita uma hibridação e diálogo dos saberes, rompendo inclusive, a dicotomia entre sujeito e objeto, sociedade e natureza (LEFF, 2010). Com tal desconstrução germina a reintegração da diversidade, e preceitos éticos e estéticos dos potenciais da sinergia concebida pela conexão dos processos ecológicos, tecnológicos e culturais (LEFF, 2000). Nesta mesma linha de raciocínio, Escobar (2005) assume que para ser possível a revalorização de culturas

vernaculares sem desvincular as mesmas do global, é pertinente o diálogo entre o conhecimento acadêmico com o conhecimento que estrutura estas sociedades.

De acordo com a perspectiva pós-colonial apresentada por Mignolo (2008), a opção descolonial é conceituada como uma forma de aprender a desaprender, pois no decorrer de cinco séculos as mentes da maior parte da humanidade foram programadas por meio da inexorável expansão da epistemologia ocidental. Assim, a perspectiva descolonial é anunciada como uma via para desmantelar a lógica moderna, visando valorizar a pluralidade organizada conforme a cosmologia e conhecimentos das populações a partir de suas subjetividades descolonizadoras (línguas marginalizadas, religiões, formas de pensar, dentre outros aspectos micros-sociais) e rejeita desde o cerne, a substituição das narrativas universais por novas narrativas universais, por exemplo, “liberais e seus “neos”, marxista e suas “neos”, cristãos e seus “neos”, ou islâmicos e seus “neos”” (MIGNOLO, 2008, p.321).

A partir de abordagens teórico-metodológicas que rompem com o paradigma moderno, as subjetividades descolonizadoras estão sendo desveladas e naturalmente se confrontam diretamente com as categorias de pensamento ocidentais. Esta epistemologia de fronteira se mostra como uma alternativa à crise de conhecimento, evitando qualquer grande narrativa unitária ocidental ou não-ocidental. Ela se desconecta dos princípios autênticos da epistemologia ocidental, contudo, não abandona ou ignora o que foi organizado e institucionalizado em todo o globo, instituindo o pensar por meio de uma posição epistêmica periférica que se coloca em embate direto com a hegemonia eurocêntrica (MIGNOLO, 2008). Destarte, destas margens elevam-se diversas resistências, que são cotidianas, ocultadas e camufladas sob muitas esferas da existência. Estas resistências são difíceis de serem percebidas e, geram um fluxo frequente e imprevisto de expressões críticas que podem superar as limitações ditadas pela ordem hegemônica. No nível individual, tais expressões apresentam-se inocentes e inofensivas, mas se analisadas em sua conjuntura, são percebidas como potenciais forças de mudança frente ao panorama atual e, podem ser melhor exploradas empiricamente se as subjetividades da dimensão micros-social forem valorizadas (PLOEG, 2009).

A partir de abordagens que enfatizam os aspectos marginalizados pela ciência moderna – representações, símbolos, valores e saberes não-ocidentais –, é possível observar que estas produções da psique humana não são apenas superstições ou fantasias, que apenas adornam ou mascaram uma realidade latente e essencial – a realidade circunscrita às fronteiras do mundo biofísico. Mas é possível expor no meio científico e nas arenas públicas

que tais aspectos marginalizados da realidade exercem de fato ações concretas, que determinam as transformações das sociedades e dos ambientes o qual as mesmas interagem (RAYNAULT, 2011).

Não é possível compreender sociedades não-ocidentais e suas interações com a natureza se limitando aos aspectos materiais da existência. Há exemplos de realidades místicas e sobrenaturais que se apresentam nucleares na dinâmica de resistência de diversos povos e comunidades, que são excluídas e desprezadas pela história relatada por peritos (AMOROZO, VIERTLER, 2008; CAVIGNAC, 2009). A descolonização do saber e o reconhecimento da diversidade de epistemologias que emergem nos agregados sociais marginalizados pela modernidade são condições substanciais para a emancipação destas sociedades, tal como afirma Lander (2007):

Sin embargo, se han desarrollado igualmente otras corrientes de pensamiento y otras opciones de conocimiento sobre la realidad del continente, desde los márgenes, en la defensa de formas ancestrales, alternativas, de conocimiento, expresión de la resistencia cultural, o asociadas a luchas políticas y/o procesos de movilización popular. Para esta pluralidad heterogénea de perspectivas, el saber, el conocimiento, el método, el imaginario sobre lo que se ha sido, se es y se puede llegar a ser como pueblos, lejos de ser exquisitos asuntos propios de especialistas en epistemología, son pensados como cuestiones de medular importancia política y cultural. La descolonización del imaginario y la desuniversalización de las formas coloniales del saber aparecen así como condiciones de toda transformación democrática radical de estas sociedades (LANDER, 2007, p.211).

Pelo fato da estrutura de poder moderna ter sido constituída por diferentes formas de colonialismo e concebida de maneiras tão múltiplas quanto os projetos alternativos que ela confronta. A emancipação das populações não-ocidentais implica em conceber diferentes formas de descolonização e diferentes emancipações, definidos por critérios políticos e éticos de cada população, em suas múltiplas narrativas (SOUSA SANTOS, 2004).

Diversas heterogeneidades com suas dimensões peculiares foram articuladas à esta forma de poder totalizante, que aspira há cinco séculos padronizar as subjetividades humanas e as relações sociais por meio das instituições que configuram seu sistema – a indústria capitalista, a família burguesa, o Estado-Nação, e a racionalidade eurocêntrica –, que mantém relações de interdependência umas com as outras. Porém, se complexizados, os domínios internos deste sistema se mostram sustentados por uma heterogeneidade estrutural, a suposta homogeneidade é uma imagem eurocêntrica distorcida e parcial que omite a multiplicidade. Deste modo, a emancipação do regime totalitário não pode de forma alguma ser uma transformação uniforme, unidirecional, sequencial ou total. Este regime não pode desintegrar

por completo de forma homogênea e ser substituído por outro equivalente (QUIJANO, 2007; MIGNOLO, 2008).

Para formulação de novas alternativas, é de suma importância pensar a emancipação social sem uma teoria geral da emancipação social. Mesmo se tratando de um conceito moderno e ocidental, não deve ser descartado, mas sim reconceitualizado, para incorporar projetos emancipatórios de transformação social codificados por diferentes organizações que integram formas de resistência contra-hegemônica, distinta da concepção histórica de emancipação social em padrões ocidentais (SOUSA SANTOS, 2004). “Essa é a opção descolonial que alimenta o pensamento descolonial ao imaginar um mundo no qual muitos mundos podem co-existir” (MIGNOLO, 2008, p.296).

Ao contrário do multiculturalismo, que foi uma invenção do Estado-nacional nos EUA para conceder “cultura” enquanto mantém “epistemologia”, inter-culturalidade nos Andes é um conceito introduzido por intelectuais indígenas para reivindicar direitos epistêmicos. A inter-cultura, na verdade, significa inter-epistemologia, um diálogo intenso que é o diálogo do futuro entre cosmologia não ocidental (aymara, afros, árabe-islâmicos, hindi, bambara, etc.) e ocidental (grego, latim, italiano, espanhol, alemão, inglês, português). Aqui você acha exatamente a razão por que a cosmologia ocidental é “uni-versal” (em suas diferenças) e imperial enquanto o pensamento e as epistemologias descoloniais tiveram que ser pluri-versais: aquilo que as línguas e as cosmologias não-ocidentais tinham em comum é terem sido forçadas a lidar com a cosmologia ocidental (mais uma vez, grego, latim e línguas européias imperiais modernas e sua epistemologia) (MIGNOLO, 2008, p.316).

Neste contexto, o Terceiro Mundo eleva-se como protagonista de uma globalização contra-hegemônica (SOUSA SANTOS, 2004). É necessário que suas populações produzam suas próprias formas de existência social, livres da dominação, discriminação racista/etnicista, produzindo novas formas de comunidades como principal forma de autoridade política, que conduzam à liberdade e autonomia para cada indivíduo, dentro de uma expressão da diversidade social e solidariedade (QUIJANO, 2005). Neste Terceiro Mundo, tem emergido múltiplas perspectivas de emancipação da humanidade e da natureza, que legitimam os recursos de sobrevivência das comunidades que valorizam a vida no planeta em diversidade, alicerçados em críticas globais e sistêmicas dos saberes que sustentam a estrutura colonial e eurocêntrica da modernidade (LANDER, 2007; QUIJANO, 2007).

Quando seus significados de mundo e construções do ambiente, são colocados em evidência, junto a uma coesão identitária relacionada às suas tradições, revigoram os vínculos dentro da sociedade civil em defesa de seus saberes e da natureza em seus lugares. O exemplo colombiano relatado por Escobar (2005) designa muito bem como a resistência de um grupo com suas especificidades, pode ganhar visibilidade e robustez na defesa da identidade

coletiva, por meio da ecologia política em interações com as investigações científicas, Estado e a sociedade civil. Pesquisas elaboradas por grupos, compostos por profissionais que fazem interface das ciências naturais com ciências sociais, auxiliam na composição de movimentos sociais engendrados por populações, neste caso, de florestas tropicais, constituídos por ativistas negros na região do Pacífico, onde juntos advogam o direito de existir como uma questão cultural, política e ecológica. Suas estratégias políticas de racionalidade ecológica alternativa se dão por meio da força com que defendem seus discursos e práticas fundamentadas nas diferenças culturais, ecológicas e econômicas. Por intermédio de suas dinâmicas eco-culturais, conseguem se colocar em diálogo com o Estado, algo que raramente é possível, deste modo, tais grupos mantêm relações tensas com o Governo, porém, frutíferas de diversas formas, pois introduziram inovações conceituais sobre biodiversidade e dividiram seus territórios de acordo com seus princípios étnicos. (ESCOBAR, 2005).

Valorizar aspectos subjetivos destas sociedades, tais como suas religiosidades, cosmologias e as formas de uso dos recursos que permeiam seus saberes, retrata imensa relevância para visibilizar a diversidade biocultural que, se enfatizada, consequentemente pode contribuir a partir de correntes contra-hegemônicas do meio acadêmico para o desmantelamento da lógica totalizante que configura o enredo da modernidade (CAMARGO, SOUZA, COSTA, 2014). Nesta conjuntura, investigações etnográficas por intermédio da ecologia política, podem cooperar para a compreensão holística das realidades que circundam o ambiente biofísico, trazem visibilidade aos atores socioambientais que são marginalizados por discursos hegemônicos, e suas relações de poder ignoradas, incluindo seus direitos culturais e sociais omitidos dentro da hegemonia ocidental (LITTLE, 2006).

Deste modo, aqueles que anteriormente eram categorizados naturalmente como primitivos, arcaicos e atrasados, tomarão a incumbência de representantes de saberes ancestrais e milenares, que renovam as formas de se relacionar com o cosmos, que podem auxiliar a mitigar os danos que a racionalidade moderna engendrou no planeta, após séculos de exploração. “O caminho para o futuro é e continuará a ser, a linha epistêmica, ou seja, a oferta do pensamento descolonial como a opção dada pelas comunidades que foram privadas de suas “almas” e que revelam o seu modo de pensar e de saber” (MIGNOLO, 2008, p. 323).

2.3 A CONTRIBUIÇÃO TEÓRICA DA ECOLOGIA POLÍTICA PARA EMANCIPAÇÃO