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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

3.1 O CARÁTER DESCOLONIAL DAS RELIGIÕES AFRO-AMERICANAS

A América Latina que foi um espaço inicial de formação da modernidade, hoje é o centro de resistência mundial de produção de alternativas contra o padrão de poder hegemônico. A matriz de projetos indígenas e afros tem se expandido grandiosamente em esferas políticas e epistêmicas. Nela é possível apreciar a existência de grupos sociais portadores de saberes e práticas fundadas sobre ontologias e epistemologias de matriz indígena ou africana, bem como em sistemas de saberes e práticas de matriz europeia marginalizados pelo poderio técnico-cientifico moderno – tal como a bruxaria medieval que se tornou híbrida em algumas religiões afro-americanas –, que resistem e se reproduzem com sustentabilidade ecológica e promovem o mais autêntico fazer descolonial (MIGNOLO, 2008).

A ascensão da modernidade levou à crença de que a religiosidade e o sagrado seriam extintos de modo natural pela superioridade da racionalidade científica moderna, sobretudo, as religiões afro-americanas, as quais eram outorgadas um alto grau de atraso na escala evolucionista do progresso, concebidas como manifestações análogas à consciência dos “selvagens” (THEODORO, 2013; NICEFORO, 1908). Nas Américas é possível averiguar que por meio de práticas religiosas, tais como Candomblé, Santeria, Vodu, Palo Mayombe, Tambores de Encantarias, Tambores de Mina, Umbanda, Quimbanda, Catimbó, Rastafarianismo, dentre outros grupos, nos quais conserva-se um universo simbólico repleto de conhecimentos e relações complexas, em que atores humanos buscam subsídios em suas tradições para que agregando-se a elas mantenham seus modos de vida (THEODORO, 2013; MIGNOLO, 2008; QUIJANO, 2007; SOUSA SANTOS, 2006).

Nas Américas, práticas socioculturais de matriz africana, nas quais os aspectos religiosos eram indissociáveis, demonstraram no passado e demonstram na atualidade uma grande relevância na luta contra a hegemonia europeia e contra o estigma5 imposto sobre as

5 Goffmann (1981) elucida que integrantes de alguma categoria de estigma, possuem tendências em agregarem-

se em pequenos grupos sociais, por onde estes grupos estão sujeitos à uma organização que os incorporam em maior ou menor grau. Quando membros destas categorias se conectam uns aos outros, é possível alterarem suas relações em forma de solidariedade, pelo sentimento de pertencerem ao mesmo grupo. Numa perspectiva intragrupal, estigmatizados podem resguardar uma linha militante, elogiando valores e cooperações de sua classe, em termos de orgulho, dignidade e interdependência.

populações africanas, para emancipação e afirmação de identidade cultural entre afrodescendentes. Feições religiosas africanas apresentam importantes contribuições para o desmantelamento da lógica totalitária da modernidade, pois, valorizando as subjetividades em suas complexidades e demais aspectos da realidade ignorados por esta lógica, é possível fortalecer a rede contra-hegemônica que se consolida com subsídio na diferença e diversidade na luta contra a dominação do pensamento único (BIKO, 1973).

É comum em diversas culturas africanas a existência de estreitos vínculos e relações com a natureza, que abrangem dimensões físicas, morais e espirituais. Diferente da mentalidade ocidental, que dissocia o natural e sobrenatural, racional e não racional, descartando assiduamente o sobrenatural como superstição, africanos, tais como os de origem banto, não concebiam nenhuma destas separações e, permitiam que tanto elementos racionais ou não racionais atuassem sobre suas realidades (KAUNDA, s/d apud BIKO, 1971).

Desta forma, diversos povos africanos são profundamente religiosos, sendo que nas práticas cotidianas como bebedeiras, casamentos, trabalhos, as suas divindades fazem-se presentes. Seu cosmos era muito mais amplo que o mundo ocidental sofisticado (BIKO, 1971), tal como alega Bastide (1971): “O africano não separa o mundo material, como nós fazemos, do conjunto dos valores que ocupam cada posição ecológica neste mundo; ele não vê a colina como uma colina, mas como a morada deste ou daquele espírito, ou como o centro tradicional desta ou daquela cerimônia” (BASTIDE, 1971, p. 120).

A ocorrência da revolução haitiana é um exemplo pertinente para ser trazido ao debate, pois retrata uma manifestação contra-hegemônica simbiótica às dimensões religiosas, biofísicas e sociais, na luta pela emancipação de uma população subalterna. Este evento se mostrou o maior movimento negro de rebeldia contra as atrocidades do regime dominante, cuja coesão coletiva foi fomentada por laços religiosos que congregavam descendentes africanos no séc. XIX. Neste processo revolucionário, a religião afro-americana praticada por escravos negros haitianos, o Vodu, atuou como um fator unificador das etnias africanas presentes naquela Colônia francesa. A religião praticada pelos negros concebia a prática e o conhecimento em harmonia com a natureza, baseada em elementos simbólicos e cultos a entes espirituais, que suscitava um sentimento de conservar tal harmonia nos relacionamentos sociais relativos à família e comunidade. Tal sentimento incentivou os praticantes da religião voduísta a projetarem na sociedade a harmonia que estava presente na esfera religiosa. A identidade cultural desenvolvida pela dimensão religiosa entre negros haitianos foi de

fundamental importância para emancipar haitianos da dominação francesa em 1804, culminando na 1º República de povos negros da história mundial (SOARES, SILVA, 2006).

Mas não é preciso nem educação, nem coragem para nutrir um sonho de liberdade. Nas suas cerimônias de vodu, seu culto africano, à meia-noite, eles dançavam e cantavam geralmente esta canção predileta: Ê! Ê! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio té! Canga, mouné de lé! Canga, do ki la! Canga, li! “Juramos destruir os brancos e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nesta promessa” (JAMES, 2000, p. 32).

No Brasil, grupos religiosos afro-brasileiros exerceram funções significativas para estruturar oposição à sociedade hegemônica escravagista, seja em resistência armada, assassinato dos senhores brancos, rebeliões, manifestações religiosas, fugas ou na formação e organização de quilombos. Contudo, tais grupos sempre operaram suas resistências ocultos ou pela marginalidade (BASTIDE, 1971; AUGRAS, 1983). Dentre tais expressões de contra- hegemonia que se manifestaram em diversos momentos no percurso da história do negro no Brasil, a esfera religiosa afro-brasileira emerge com elementos representativos que fomentaram e mobilizaram um processo civilizatório fundamental no país, omitido de sua história (THEODORO, 2013).

Estas religiões contemplam um rico complexo social com identidades oriundas de diversas culturas, cujas memórias, saberes, práticas e legados dos diferentes povos que foram infligidos pelo lado obscuro da modernidade – a escravidão - são conservados por meio de relações cosmo-políticas em templos de cultos afro-brasileiros. Mesmo com diversas rupturas, transformações e novas conexões, retratam uma manifestação para a defesa cultural do legado africano, que foi fundamental para o processo civilizatório brasileiro (QUEIROZ, 1989; LANDER, 2005; CARNEIRO, 2008; FERRETTI, 2013; SANT’ANNA, 2015).

A prática e resistência destas religiões imprimem uma vasta história de 350 anos de tráfico de escravos do continente africano oriundos de diferentes culturas, classes sociais, e cosmovisões, que foram transportados, distribuídos e escravizados por toda América, via colonialismo, principalmente, a partir da segunda metade do século XVI à primeira metade do século XIX (VERGER, 1981; PRANDI, 2004; CARNEIRO, 2008).