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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

4.3 LÓCUS DE PESQUISA E A INSCRIÇÃO NA REDE

A pesquisa foi desenvolvida no templo Espírita de Umbanda Abaça de Oxalá, localizado geograficamente no município de Pato Branco-PR, na Região Sudoeste do Paraná (Figura 01). Os primeiros moradores de Pato Branco eram procedentes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e se instalaram a partir de 1919 no local. Em 1924 estava consolidada uma comunidade chamada Vila Nova de Clevelândia, cuja população aumentava com a chegada de novos agricultores. Em 1947 Pato Branco se tornou um distrito, em 1952 foi elevado à categoria de município. Atualmente, o município possui 539,029 km² e uma distância de 433,53 km da capital Curitiba, faz limite com oito municípios: Bom Sucesso do Sul, Clevelândia, Coronel Vivida, Honório Serpa, Itapejara D´Oeste, Mariópolis, Renascença e Vitorino. Pato Branco possui uma população estimada de 80.710 habitantes, na qual 55.352 se declaram da cor branca, 1.395 se declaram da cor preta, 15.199 se declaram da cor parda, 348 se declaram da cor amarela e 76 se declaram indígenas. Cerca de 93,1 % desta população é residente em área urbana e 5,9% na área rural, de acordo com o censo demográfico do IBGE de 2010 (IBGE, 2017; IPARDES, 2017).

Figura 01: Localização geográfica do município Pato Branco – PR na Messorregião Sudoeste do Paraná, no Estado do Paraná, na América do Sul e em escala global.

Fonte: Tabapira e Fiori (2008).

Segundo o censo do IBGE de 2010, existem 8.427 indivíduos que se declararam praticantes de religiões afro-brasileiras no Estado do Paraná. No município de Pato Branco, não há registros de população que se diz praticante destas religiões, embora haja possibilidade de estarem difundidos entre os 56.830 indivíduos que se declaram católicos apostólicos romanos ou entre os 478 que se declaram espíritas (IBGE, 2017). O banco de dados da investigação etnobotânica junto aos 13 templos de cultos afro-brasileiros da Região Sudoeste do Paraná, levantados em 2015, pelo autor da presente dissertação, bem como as demais articulações do autor com diferentes terreiros em suas relações informais e subjetivas, possibilitaram perceber que os representantes dos templos se identificam majoritariamente e

naturalmente como espíritas. Presumivelmente, esta característica seja um dos fatores que promovem a omissão desta religiosidade perante o censo demográfico municipal.

Foram identificados um total de 15 templos de religiosidade afro-brasileira ativos no município, que se identificam como centros espíritas de Umbanda, Candomblé e Batuque, entre os quais, o Abaça de Oxalá, local onde o presente estudo foi conduzido e elaborado. Foi efetuada uma etnografia no Abaça de Oxalá, que teve seu início em maio de 2016, a partir do momento em que o pai-de-santo Aldacir, representante do terreiro, confirmou a disponibilidade para que o templo pelo qual zela, fosse foco de um estudo etnográfico. Este contato se tratou de um segundo contato, pois tal pai-de-santo já havia sido mobilizado para efetuar o estudo etnobotânico de Favaro (2015). Deste modo, já haviam arquivos com informações prévias sobre o sacerdote, a estrutura de seu terreiro, suas práticas religiosas e actantes associados às mesmas.

Antes de adentrar nas peculiaridades do processo etnográfico, vale salientar que a personalidade do investigador e suas subjetividades correlatas são latentes em seu trabalho, seu relatório retrata uma expressão de si mesmo, os conteúdos e experiências de vida que o pesquisador traz consigo se hibridizam aos resultados da pesquisa (PRITCHARD, 1985). Deste modo, as experiências relativas ao complexo processo sociológico, cultural, histórico e intelectual que o autor do texto foi submetido desde seu nascimento, cujo pesquisador é repleto de necessidades humanas: desejos, paixões, emoções, etc., influenciaram de modos inestimáveis a opção por investigar os cultos afro-brasileiros, bem como as formas de interpretar e expressar os resultados encontrados (MORIN, 2005; 2010).

Nesta conjuntura, além do contato prévio do pesquisador junto ao povo-de-santo por meio de objetivos acadêmicos, o autor se interessa – de modo informal – pelos cultos afro- brasileiros desde 2013, período em que conheceu diferentes terreiros, assistiu suas cerimônias, dialogou com sacerdotes, efetivou as práticas recomendadas pelos mesmos e pelos guias espirituais das giras em que participava como consulente, o que possibilitou germinar a iniciação religiosa do pesquisador dentro da religião de Umbanda, por meio de um terreiro de Umbanda Tradicional localizado no município de Pato Branco. Ao fim de 2015 as relações e atividades em tal terreiro foram cessadas em razão de motivações de ordem particular, contudo, não com a espiritualidade que assimilou e buscou interpretar e aplicar nas suas ações cotidianas. De todo o modo, o conhecimento pré-adquirido pelo investigador com o mundo religioso afro-brasileiro, lhe auxiliou a tecer as relações com maior fluidez dentro do Abaça de Oxalá – tanto com humanos, quanto com não-humanos, assim como aponta Silva (2016):

Portanto, ter participado da religião antes de pesquisá-la, apresenta a vantagem de saber como se inserir e trafegar pelos terreiros, relacionar-se com os seus membros e ler as entrelinhas de seus discursos, sendo uma ferramenta útil para abrir algumas portas e facilitar a observação participante, embora essa vantagem não elimine certas dificuldades ou coloque outras (SILVA, 2016, p. 71).

O convite para o sacerdote Aldacir participar da pesquisa, foi realizado no dia 29 de março de 2016, pessoalmente, em sua residência, quando o autor deste trabalho e sua companheira pesquisadora de cultos afro-brasileiros, Dalvana Fernandes, estavam realizando levantamento dos representantes dos cultos afro-brasileiros que consentiam com a proposta de efetuar uma investigação etnográfica no espaço de seus templos no decorrer dos 24 meses de dissertação. Após o aceite do sacerdote, o mesmo convidou os dois pesquisadores para assistirem uma cerimônia em seu templo, na sexta-feira, dia 31 de março de 2016.

Esta cerimônia, chamada de gira, foi dirigida do início ao fim, pelo Exu Tranca-Rua das Sete Encruzilhadas, incorporado no pai-de-santo Aldacir, na companhia da cambone e esposa do sacerdote, chamada Iva, a filha-de-santo Marli, que incorporou a Preta-Velha Vovó Maria Conga, e mais nove consulentes, dos quais os dois pesquisadores estavam integrados. Durante a conversa com o Exu Tranca-Rua das Sete Encruzilhadas, o investigador revelou sua identidade religiosa, seus caminhos trilhados na senda da iniciação dentro da Umbanda e buscou compreender alguns aspectos elementares da dinâmica do terreiro e seus trabalhos efetuados, bem como, questões oportunas sobre as práticas mágico-religiosa do templo e de ordem particular da vida do pesquisador.

Neste diálogo, bem como em outros momentos pertinentes desta e das muitas outras giras que foram possíveis participar posteriormente, eram evidentes que a cognominação central que os guias espirituais da casa, Pai Aldacir e Cambone Iva, empregavam e alternavam para identificar o templo e suas práticas mágico-religiosas, com as nominações de Espírita/Espiritismo. A evocação do termo “Espiritismo” foi corrente em todos os diálogos. Neste particular, o termo Espiritismo é empregado de modo genérico, que expressa majoritariamente quaisquer espécies de práticas mágico-religiosas afro-brasileiras. Entretanto, quando o Espiritismo Kardecista era deslocado pelas narrativas, sempre era acompanhado de outro termo que lhe especificava e diferenciava na grande categoria de Espiritismo, tais como “Espiritismo de Mesa Branca” e “Espiritismo da Linha de Alan Kardec”.

Os conteúdos do diálogo tensionado entre o pesquisador e o Exu Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas na primeira visita do pesquisador a uma cerimônia do terreiro, expandiu o dispositivo que Callon (1986) nomina de “interessamento”, no qual, a conexão entre os atores

foi dilatada a partir de ideias que lhes colocaram em maior proximidade e familiaridade. O pesquisador em suas subjetividades se identificou com as práticas mobilizadas no local e o Exu deixou em aberto uma possibilidade futura de iniciação, apesar de deixar esclarecido que seu cavalo (médium) rejeitava a possibilidade de abrir a corrente para mais filhos-de-santo.

O dispositivo de interessamento foi adensado na segunda gira assistida pelo pesquisador, após um mês que presenciou o primeiro ritual no terreiro. Nesta cerimônia, dirigida inicialmente pelo Exu Caveira do Pai Aldacir, o pesquisador colocou em exposição uma experiência onírica excêntrica que havia experimentado alguns dias antes, envolvendo actantes que compõem religiosidade afro-brasileira. De acordo com o Exu Caveira, de forma sintética, o sonho se tratou de uma comunicação das divindades que acompanham o investigador, solicitando ao mesmo para prosseguir sua iniciação dentro da religiosidade afro- brasileira. Para realizar o desfecho da gira, o Exu Caveira deu passagem ao Exu que é o “Bará da casa”, “chefe do terreiro”, Exu Sete Ventanias, ou simplesmente “Seu Sete”. Foi por meio do convite efetuado por este Exu que o terreiro abriu as portas da iniciação para o pesquisador, lhe informando que se seus Orixás sentirem afinidade com a casa, um novo processo de iniciação poderia ser inaugurado. Neste particular, percebe-se que para adentrar a rede no terreiro de modo mais aprofundado, foi necessário um consentimento triplo: do sacerdote representante do terreiro, do Exu chefe do terreiro e dos Orixás do aspirante.

Após três meseses, em julho de 2016, o pesquisador retornou ao terreiro, numa consulta particular com o Exu Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas, na qual informou o aceite para a iniciação no local. A partir de tal evento, a participação e registro das giras se tornaram semanais, possibilitando realização de uma observação participante assídua até o dia 08 de dezembro de 2017, última gira em que o pesquisador se fez presente para coletar informações etnográficas, data em que o respectivo terreiro entrou em férias.

Sob o prisma da Teoria Ator Rede, uma observação participante enquanto membro do grupo é desejável, pois de acordo com Latour (2012) o pesquisador não deve apenas observar, mas também participar das dinâmicas de constituição do mundo em concomitante com aqueles que estão seguindo para registrar novidades de modo mais aprofundado, nas relações que busca analisar (LATOUR, 2012). Inclusive, pesquisas junto à determinadas comunidades, elaboradas por integrantes das mesmas, têm demonstrado uma rica perspectiva para as pesquisas etnográficas:

Cada vez mais a etnografia vem se consolidando como uma atividade acadêmico- profissional realizada inclusive por povos antes considerados apenas “objetos” desse

conhecimento. “Sujeitos” e “objetos” na antropologia têm mudado de perfil em decorrência das mudanças nas relações políticas, econômicas e culturais entre os países que tradicionalmente “produziram” os primeiros e os continentes que tradicionalmente “forneceram” os segundos (SILVA, 2015a, p. 24).

Os aspectos subjetivos do pesquisador com o povo-de-santo são elementos significativos na coleta e análise das informações na pesquisa participante. A compreensão deste universo religioso (e consequentemente de si mesmo sob novas perspectivas descobertas durante o campo) articula sentimentos e emoções intensas experimentadas pelo investigador (SILVA, 2016). “Independente de ser cético ou crente, é muito difícil, para quem contata o Candomblé, não experimentar certas sensações como se estivesse na soleira de uma porta que se abriu para um mundo distante e próximo, real e sobrenatural, visível e invisível, atraente e repulsivo” (SILVA, 2016, p.67). As afirmações de Silva (2016) apesar de concentradas na dinâmica dos Candomblés, podem ser dilatadas para outros segmentos de religiosidade afro- brasileira.

Os sentimentos e emoções referentes ao numinoso experimentados pelo investigador enquanto participante interno das atividades mágico-religiosas do templo em concomitante com o processo etnográfico, eleva a complexidade do diálogo cultural e de saberes que tencionam a concretização da pesquisa. Este processo engendrou desvantagens e vantagens para a coleta de informações, de acordo com as diretrizes que envolvem o cotidiano do terreiro. (SILVA, 2015a). Por exemplo, foram expressivas as dificuldades no relacionamento com outros terreiros da Região Sudoeste do Paraná, com os quais o pesquisador tecia conexões para fins de pesquisas, em razão das relações ásperas e espinhosas que os terreiros tecem uns aos outros, ou a dificuldade de estar atento em todo o momento na dinâmica do local para registrar os rituais em plenitude, em razão do mecanismo de incorporação das divindades que passaram a operar no investigador no ano de 2017. Dentre as vantagens, vale mencionar a prontidão para registrar a dinâmica do grupo um olhar interno da religião, bem como o acesso às informações e giras restritas aos membros do templo, muitas das quais não podem ser reveladas, possibilitando captar a realidade estudada em matizes que passariam despercebidas se a perspectiva estivesse sob um prisma externo.

O fato do “sujeito” da pesquisa ser o “objeto” concomitantemente, por meio da iniciação, com um arcabouço teórico que não permite a divisão entre ambos, aspirando registrar de modo simétrico a racionalidade que opera em uma população marginalizada pela modernidade, denota a presença da “desobediência epistemológica” anunciada por Mignolo (2008) como imprescindível para descolonização do pensamento, tornando esta pesquisa

relevante para incitar reflexões e contribuições no desmantelamento da lógica que sustenta a modernidade, expandindo as vias para que o mundo seja concebido de modo mais amplo (SILVA, 2015a).