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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

3.2 AS PRÁTICAS RELIGIOSAS AFRICANAS NO BRASIL

O colonizador branco concebia indígenas e africanos apenas como aparelhos de trabalho ou lascívia. A mão-de-obra servil indígena nas fazendas, a qual foi recorrida no

início da colonização, logo entrou em ruína, tanto pelos seus hábitos e costumes não adaptados para a rigidez que o trabalho escravo exigia, quanto pela iniciativa de grupos jesuítas em se opor à escravidão do indígena. Destarte, ao fim do século XVI e pelo século XVII, populações africanas substituíram gradativamente as populações indígenas no trabalho nas lavouras (BASTIDE, 1971).

Pelo fato dos documentos oficiais que registravam o comercio escravagista terem sido extraviados após a “abolição” do trabalho escravo, com a finalidade de omissão deste regime servil, não é possível alegar com precisão a quantidade de africanos transportados ao Brasil através de navios negreiros. Contudo, as estimativas mais coerentes afirmam cerca de 3500000 indivíduos trazidos de diferentes regiões da África ao Brasil para serem escravizados (BASTIDE, 1971). Vale mencionar que nestes milhões de indivíduos não se incluíam aqueles que faleceram nas precariedades das condições das viagens marítimas nos navios negreiros ou que foram assassinados por meio da caça escravista (PRANDI, 2000).

Os escravos foram trazidos em quatro grandes ciclos do tráfico, subdivididos em duas grandes categorias étnicas: bantos e sudaneses; que imprimiram características culturais especificas em cada ciclo: 1) Ciclo da Guiné: segunda metade do século XVI; 2) Ciclo da Angola-Congo: por todo o século XVII; 3) Ciclo da Costa Mina: até o início da segunda metade do século XVIII; 4) Ciclo de Benin: até metade do século XIX” (CARNEIRO, 2008, p. 13-14).

Os bantos eram maioria do século XVI ao século XVII, constituídos de angolas (cassangues, bangalas, inbangalas, dembos), guinés, congos (cambindas, benguelas, etc.,), moçambiques (macuas e angicos), etc. Os sudaneses substituíram gradualmente os bantos no século XVIII, constituídos em iorubas (nagô, ijexá, egbá, ketu, etc.) e constituíram maior densidade demográfica, comparado aos daomeanos jêjê (ewe, fon, etc.), minas/fanti-axanti e krumans, agnis, zemas e timinis (CARNEIRO, 2008).

Nesta conjuntura, é evidente que não se tratava de um povo homogêneo, mas uma pluralidade de sociedades, com linguagens, religiões e ontologias variadas (PRANDI, 2000), tal como afirma Bastide (1971):

A África enviou ao Brasil negros criadores e agricultores, homens da floresta e da savana, portadores de civilizações de casas redondas e de outras casas retangulares, de civilizações totêmicas, matrilineares e outras patrilineares, pretos conhecendo vastos reinados, outros não tendo mais que uma organização tribal, negros islamizados e outros animistas, africanos possuidores de sistemas religiosos politeístas e outros sobretudo adoradores de ancestrais de linhagens (BASTIDE, 1971, p.68).

Ao contrário do português que possuía autonomia e direitos civis no Novo Mundo, o negro além de ter toda sua estrutura social desmantelada, encontrava-se sob os ditames socioeconômicos do colonizador português, nos quais não havia possibilidade de reconstruir sua sociedade. Os negros tiveram que se adaptar à conjuntura social e econômica em que se depararam, à monocultura do latifúndio, ao regime escravocrata, à família do senhor de engenho. Os escravizados foram inseridos no estrato mais rejeitado da sociedade brasileira, condicionados à subalternidade econômica e social, impossibilitados de reproduzirem seus modos de vida, suas organizações políticas e estruturas familiares, tal como em suas terras nativas (BASTIDE, 1971).

De modo fatalista, a escravidão aniquilou as sociedades dos africanos no Brasil, sendo um denominador comum do regime escravagista brasileiro a tentativa de desestruturar as especificidades culturais das etnias africanas. Contudo, os escravizados puderam carregar consigo seus valores, significados e representações coletivas, como o politeísmo, adoração aos elementos da natureza, culto aos espíritos ancestrais, danças, musicalidades, culinária, idiomas, conhecimentos sobre manejo e uso da natureza, adaptados à estrutura ecológica e social existente no Novo Mundo (BASTIDE, 1971; CARNEIRO, 2008).

O processo escravocrata em que os povos africanos haviam sido condicionados no Brasil, lhe impugnava um risco de desmantelamento completo das suas concepções e valores. Contudo, a manutenção da dimensão intangível era sazonalmente realizada pelo intenso tráfico negreiro, que, no momento em que a conexão com a África e seus valores religiosos estava prestes a exaurir-se, desembarcavam diversos novos sacerdotes, babalawôs6, adivinhos, curandeiros, feiticeiros, dentre a multidão recém-chegada ao Novo Mundo, corroborando para reavivar as práticas religiosas de matriz africana e suas conexões entre sociedade, natureza e divindades (BASTIDE, 1971). Assim, não é coerente com os registros históricos a ideia de que os cultos afro-brasileiros, tais como existem hoje, são remanescentes de organizações religiosas que resistiam e se aperfeiçoavam em cada geração, tal como elucida Bastide (1971):

Estamos mal informados sobre as religiões afro-brasileiras dessas épocas longínquas, mas é preciso sem dúvida substituir a ideia de centros de culto (que persistiram ao

6 Sacerdote que guia o culto de Ifá, Orixá do oráculo e da sabedoria. Dentre as incumbências que lhe são

conferidas, é possível afirmar que ele é o responsável pela identificação do Orixá dos indivíduos que se aproximam da comunidade. Detecta com profundidade a matriz das doenças e se coloca à disposição de todos os que necessitam consultar os Orixás (BERKENBROCK, 1997).

longo dos séculos até nossos dias, o que a escravidão não poderia permitir) pela ideia de proliferação caótica de cultos, ou fragmentos de culto, ou nasciam apenas para se extinguirem, os quais eram substituídos por outros na medida de novas chegadas de africanos. Os Candomblés, os xangôs, os batuques de hoje não são resíduos de seitas antigas que mergulham no passado do Brasil, mas organizações de data relativamente recentes, remontando, mais ou menos ou ao fim do século XVIII ou no começo do século XIX (...) Desta maneira, devemo-nos representar a vida religiosa dos africanos no Brasil como uma série de acontecimentos sem laços orgânicos, de tradições interrompidas e retomadas, mas que mantinham de século em século, sob formas provavelmente as mais diversas, a mesma fidelidade à mística, ou às místicas africanas (BASTIDE, 1971a).

A prática da religiosidade africana nas zonas de plantações açucareiras ocorria por meio da reunião dos negros em igrejas separadas das igrejas dos brancos. Diante dos altares repletos de santos, acendiam velas, dançavam freneticamente, cantavam em suas línguas nativas para suas divindades e ancestrais africanos, numa consciência coletiva, maioria das vezes longe da observação dos senhores, ou quando vigiados, seus rituais africanos eram despercebidos e tidos como um modo peculiar de prestar culto a Deus, Virgem Maria e aos Santos. Estes eventos revelam que as civilizações africanas não haviam sido desmanteladas por completo, apesar das diversas rupturas e transformações condicionadas neste quadro histórico. Nas festas engendradas nas confrarias negras, elementos litúrgicos africanos foram fundidos à ritualística católica e preservaram alguns valores de grande importância para conservação de suas representações coletivas (BASTIDE, 1971).

O escravagismo interno que ocorria de acordo com as demandas geradas pelos ciclos de desenvolvimento político e econômico brasileiro7, permitiu a congregação de negros em núcleos urbanos, que comparado à conjuntura da escravidão rural, permitia maior densidade de indivíduos num recinto menor, possibilitando que negros se organizassem em agrupamentos mais consistentes que aqueles existentes nas confrarias negras do meio rural e que deslocassem consigo suas práticas religiosas remanescentes. Foram nas cidades que os negros recriaram com maior vigor suas práticas religiosas de acordo com os idiomas e origens étnicas que lhes conectavam e permitiam a reconstrução e fortalecimento de memórias coletivas e costumes cotidianos, que na cosmovisão de matriz africana, naturalmente são associados com o sobrenatural (BASTIDE, 1971; BERKENBROCK, 1997; CARNEIRO, 2008).

A partir da segunda metade do século XIX, aumenta gradualmente o número de negros “libertos” e a robustece da manutenção dos valores religiosos nestes núcleos étnicos, que

7 É possível mencionar uma série de eventos, tais como as mudanças econômicas do interesse do açúcar para o

ouro e do ouro para o café, bem como as guerras travadas contra holandeses, quilombos e na revolução da independência, por exemplo (CARNEIRO, 2008).

resistiam nos centros urbanos, por meio do intercambio linguístico, sexual e religioso entre escravos, ex-escravos e negros crioulos. Os diferentes agrupamentos étnicos das confrarias tiveram seus elementos intangíveis fundidos e enriquecidos (BASTIDE, 1971; BERKENBROCK, 1997; CARNEIRO, 2008).

Os agrupamentos conformados nas confrarias dos negros passaram a ser reconhecidos sob a nominação de “nações”, devido às influências das políticas portuguesas, que aspiravam dividir os negros deste modo, para realçarem as rivalidades étnicas existentes em território africano. Gradualmente esta concepção perdeu seu sentido político e se revestiu de conteúdos teológicos, os quais repercutiram nas nomenclaturas e práticas das subdivisões dos diferentes modelos de cultos afro-brasileiros, as quais são utilizadas em Candomblés, xangôs e batuques para identificação da tradição a qual o terreiro está vinculado – nação Kêtu-Nagô (iorubá), nação Ijexá (iorubá), nação Jeje (fon), nação Jêjê-Nagô (fon e ioruba), nação Angola (banto), nação Congo (banto), nação Angola-Congo (banto), nação de Caboclo (banto e indígena), dentre muitas outras. Estes grupos foram organizados de acordo com alusões etno-linguísticas e diversos componentes sociais e religiosos, nos quais a similaridade linguística foi vetor predominante (LIMA, 1997; CARNEIRO, 2008; VOGEL; MELLO; BARROS, 2012).

É comum pesquisadores identificarem genericamente os cultos afro-brasileiros a partir de três grandes modelos sócios-religiosos: o modelo nagô, modelo banto e modelo daomeano. De acordo com Carneiro (2008) estes modelos

[...] são referências dos grandes e contínuos processos dos reinos, de cidades sagradas como Ifé, Nigéria, para os iorubas. Esses modelos que concentram memórias tradicionais e especialmente mitologias dos Orixás, voduns e dos inquices reviveram nos Candomblés matrizes africanas incluídas no nosso cotidiano brasileiro, aqui no outro lado do Atlântico (CARNEIRO, 2008, p.15-16).

As populações africanas de matriz banto adentraram primeiro e em maior quantidade no Brasil, suas influências são de grande importância para que diversas práticas afro- brasileiras sejam entendidas em maior profundidade, pois foram distribuídos em grande quantidade no país durante o século XVII, se mostravam agricultores empenhados e também instituíram o subsídio para reprodução das práticas de matriz africana que resistiam nas fazendas. A utilização de velas, pólvora, simbolismo das cores, diversas ervas e elementos da natureza, bem como o culto aos mortos, e a crença na reencarnação do espírito em rituais afro-brasileiros, possuem matriz na cultura banto. Na cultura brasileira em geral, é possível averiguar contribuições dos bantos com estilos musicais como o samba, muamba e rumba, em aspectos estéticos como o cubismo e o carnaval (OLIVEIRA, 2004). A partir de suas

estruturas, mesmo que frágeis e vítimas de diversas rupturas e opressões de toda forma, possibilitaram que o território brasileiro se tornasse substrato fecundo para proliferação de práticas africanas de matrizes étnicas que adentraram no país posteriormente, tais como as dos sudaneses (BASTIDE, 1971; CARNEIRO, 2008).

Os sudaneses chegaram em grande proporção no último ciclo de comércio escravagista no Brasil, comercializados como prisioneiros das guerras étnicas tensionadas entre nagôs e jejes. Seus elementos obtiveram grande visibilidade na conformação e continuidade dos cultos afro-brasileiros e na conformação da cultura brasileira (BASTIDE, 1971; CARNEIRO, 2008). Trouxeram consigo o culto aos Orixás (nagô) e voduns (jeje), em conjunto com uma ampla enciclopédia botânica por meio da tradição oral, conservaram muitos aspectos de suas tradições e vocabulários africanos originais, principalmente o ioruba, por meio dos quais elaboram as cerimônias religiosas e concebem o mundo.

As relações de rivalidade entre os sudaneses (daomeanos, iorubas e ashantis) que em território africano culminavam em guerras inter-étnicas, foram extintas nesta miscigenação cultural forçada entre negros no Brasil Colônia, cujo resultado é retratado pelo desenvolvimento de laços fraternais expressos na fusão de sistemas religiosos de diferentes procedências, tal como o modelo nação Kêtu-jêje, que aponta a união entre iorubas e daomeanos, além das diversas influencias étnicas que as religiões permitiram absorver em solo brasileiro (RODRIGUES, 1978). Os sudaneses chegaram ao Brasil durante o mesmo período, com número predominante de nagôs, o culto jeje não foi destacado no Brasil tal como no Haiti pelo vodu. Nesta conjuntura, Valente (1977) alega que “o que se verifica é um quadro religioso quase maciço de características iorubanas salpicado com algumas marcas daomeanas” (VALENTE, 1977, p.33).

Grande parte daquelas religiões que reivindicavam origem banto ou jeje foram influenciadas em algum grau pelas características do complexo religioso de nação nagô (BERKENBROCK, 1997). Segundo Edison Carneiro (2008), o nível desta influência foi tão intensa, que as divindades de cultos de matriz jejes e bantos – os voduns, inkisses e encantados, etc. – são essencialmente os mesmos Orixás nagôs, porém com outras nomenclaturas menos populares.

Apesar do exclusivismo nagô retratado por Carneiro (2008), é pertinente salientar que a proeminência de elementos nagôs não contradiz a importância basilar da cultura banto como pedra angular, na qual os cultos afro-brasileiros se instauraram, também não se trata de um indicador de inferioridade ou deficiência religiosa dos bantos ou jejes, pois subestimar um

sistema religioso pela sua grande capacidade de adaptação e fusão com culturas variadas é incoerente com a lógica operante em cultos afro-brasileiros (AUGRAS, 1983; FERRETTI, 2013).

As concepções religiosas sudanesas (jêje-nagô) foram instituídas na Bahia por meio dos Candomblés, no Maranhão por meio dos tambores de mina, em Pernambuco por meio dos Xangôs, e no Rio Grande do Sul por meio dos batuques. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, houve predominância de religiosidades de matriz banto, por meio das Macumbas, que posteriormente aderiram a conceitos kardecistas, indígenas e iorubas e, passaram a ser reconhecidos enquanto terreiros de Umbanda em sua maioria. Há cultos afro- brasileiros que apontam maior predominância da pajelança indígena fundida com elementos jêje-nagô oriundos do Maranhão, localizados na Amazônia, tais como o babaçuê. Também existem outros cultos afro-brasileiros, tais como tambores de encantaria, jurema, terecô, pemba, jarô, omolocô, etc. (CARNEIRO, 2008; CARVALHO, 2011).

Segundo o censo demográfico de 2010 do IBGE, no Brasil há um total de 585.797 indivíduos que se declaram participantes de cultos afro-brasileiros, sendo que 407.331 se declaram adeptos da religião de Umbanda, 167,363 se declaram adeptos da religião de Candomblé e 14.103 se identificam com outras cognominações de religiosidade afro- brasileira (IBGE, 2017). Contudo, tais índices podem ser relativizados considerando que por diversos motivos adeptos de cultos afro-brasileiros podem se identificar como espíritas ou católicos. Destarte, não é possível afirmar com precisão a quantidade de adeptos destas religiões existem no Brasil.

3.3 A LÓGICA QUE PERPASSA AS RELAÇÕES COM A NATUREZA EM CULTOS