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5. AS CIÊNCIAS DAS ENCRUZILHADAS: ENERGIAS QUE CONECTAM MÚLTIPLAS

5.4 EVOLUÇÃO: UM OBJETIVO HETEROGÊNEO QUE ARTICULA TODOS OS

Os Orixás são os actantes que estão conectados em todos os condutos pelos quais o conhecimento e o fazer percorrem na rede investigada. Muito foi discutido sobre os humanos, suas categorias e diferenciações nos modos de acionar os Orixás, agora cabe esclarecer sobre a natureza destes seres que fomentam toda ação dentro do Abaça de Oxalá.

Com as informações fornecidas até o presente momento, foi possível de perceber que neste templo os Orixás não se limitam a concepção de uma divindade ioruba (apesar de manter mais de uma dezena destes – com seus respectivos desdobramentos – no interior do culto). Apesar do termo Orixá apontar uma influência africana em sua etimologia, é congruente salientar que as entidades espirituais identificadas nesta categoria não se limitam ao contexto das narrativas de matriz africana. A quantidade de espíritos que podem ser identificados como Orixás é deveras abundante, cujas atuações e origem mítica ou histórico-

cultural permitem conectar as mais diversas regiões do globo, do cosmos e do tempo. Suas ações e formas de cultos denotam que esta categoria de espíritos está conectada a uma rede espiritual composta por uma extensa hierarquia em diversos modos de organização, com o objetivo de auxiliar a evolução da humanidade com seus conselhos e atividades mágico- religiosas engendradas pelos rituais de Umbanda. No plano espiritual, todos os Orixás habitam um lugar mítico-cósmico nominado Aruanda, no plano material habitam locais específicos, tais como as matas, as praias, os oceanos, os rios e cachoeiras, as encruzilhadas, os cemitérios, os cruzeiros, assentamentos, dentre muitos outros espaços que são relativos à especificidade da entidade.

Os Orixás são concebidos como espíritos de elevada evolução espiritual, cuja ascensão espiritual eclodiu a partir de numerosas experiências nos mais diversos espaços/tempos do planeta Terra enquanto humanos, via reencarnação (com poucas exceções, tal como os Exus Mirins). Ao atingirem um arcabouço de experiências que lhes viabilizaram o aperfeiçoamento das suas virtudes e habilidades mágicas, foram integrados por Oxalá (a entidade de maior autoridade entre os Orixás, é identificado em sinonímia com Jesus Cristo e com Deus Pai da cosmologia cristã) às legiões de espíritos que estruturam o Espiritismo de Umbanda, com a incumbência de utilizarem seus potenciais desenvolvidos para prestarem auxílio a humanidade, tal como explicita o Pai Aldacir:

Os Orixás vêm de milhares de anos atrás, o dono da casa (Exu Sete Ventanias) vem de 16.000 anos atrás, também passou em terra quando Jesus andava na terra, viu Jesus Cristo crucificado em uma das reencarnações deles. A maioria dos Orixás são pessoas que viveram na terra, com carma, aí Oxalá deu um caminho para ele seguir. Para ele buscar a evolução espiritual, ele tem que fazer o bem direto, e quanto mais pessoas ajudar, mais luz recebe e mais perto de Oxalá ele vai, e quanto mais luz, a matéria recebe evolução [...] Têm Orixás que nunca encarnaram, tipo o Exu Mirim, que é encantado [...] Não são milhares, são milhões e milhões de Orixás que existem, são falanges, tem alguns que nunca ouvimos falar, pode ser o pai-de-santo mais preparado do mundo que não vai conhecer todos (Pai Aldacir, 2017).

Todos os Orixás apesar de concebidos com alto grau evolutivo de espiritualidade, precisam nutrir o desenvolvimento de suas evoluções e o fazem por meio dos humanos que se agregam em torno da religião de Umbanda. Para a lógica do grupo investigado, a evolução pela prática do bem consiste no auxílio à sociedade no sentido de corroborar na satisfação das vontades e anseios dos humanos que se deslocam até o terreiro. Destarte, os saberes e fazeres de trabalhos mágico-religiosos são substanciais para propiciar esta evolução. Quanto mais o iniciado consegue tornar concreta a ação dos Orixás no plano físico por meio dos efeitos

gerados pelos seus trabalhos, maior evolução este pode fornecer ao Orixá, a si mesmo e ao consulente que solicitou o trabalho. Pode-se dizer que a capacidade do adepto em engendrar a satisfação das necessidades e desejos humanos é uma espécie de indicador que aponta a proximidade do mesmo e dos seus Orixás e com Oxalá, permitindo com que mais seres humanos sejam auxiliados pelas forças sobrenaturais que emanam de seu ser.

Mesmo os anseios humanos que são desaprovados e ilícitos sob o prisma da moralidade vigente, são concebidos como benéficos se houver satisfação dos desejos do indivíduo, tal como ocorre amplamente nos trabalhos mágico-religiosos que agem em prol do comprazimento dos anseios sexuais daqueles que solicitam, independente da orientação sexual do consulente. Não há juízo de valores sobre a conduta particular do consulente e sobre suas motivações, as observações efetuadas no percurso etnográfico apontam que os Orixás incorporados demonstram que abordam com simetria todo o tipo de humano e suas situação expostas. Contudo, quando o consulente é motivado por objetivos tidos como equivocados pelos Orixás, tal como o desejo de desunião de um casamento bem-sucedido por simples inveja ou a destruição da vida de um inocente, o Orixá mantém a simetria no tratamento com o indivíduo e lhe aconselha para resolver a situação de modo ameno e justo.

De toda a forma, apesar dos conceitos de caridade e evolução espiritual terem raízes nos princípios cristãos-kardecistas, suas austeridades éticas e princípios morais são relativizados e reinterpretados respaldados no legado cultural religioso africano. Os efeitos da evolução espiritual devem ser expressos durante a vida do humano, com o objetivo geral de sobrevivência e melhorias nas condições de vida, independente de como estas sejam almejadas (NEGRÃO, 1996). Apesar de se tratar de uma religião que se sustenta na imprescindibilidade do contato com os espíritos ancestrais, as questões das condições de consciência pós morte são deixadas em segundo plano nos discursos e práticas que emergem na rede, a prioridade das articulações com os espíritos é sempre vinculada ao “aqui agora” (PRANDI, 2001).

Trata-se de uma evolução heterogênea que pode assumir diversas fisionomias de acordo com as subjetividades do intento individual ou coletivo que articula estes saberes e fazeres, vinculados às necessidades da sociedade adjacente. Tal evolução também apresenta uma qualidade inconformista, pois fomenta os indivíduos no embate constante aos dissabores da vida terrena (NEGRÃO, 1996). De modo algum os seres humanos devem acomodar-se com os infortúnios, destarte, percebe-se a existência ressignificações sobre a lei do carma, o aperfeiçoamento do ser se dá pelo esforço de transmutar uma dada realidade que lhe é

pertinente por razões subjetivas que não devem ser pesadas com juízo de valores de escala humana ou divina.

Para melhor compreensão destes seres sobrenaturais que corroboram na evolução da humanidade e seus mecanismos de ações para tal, se faz necessário deslocar novamente o conceito êmico de energia, que é uma força invisível que existe no mundo físico e no mundo espiritual, a qual permite a todos os elementos, fenômenos e relações existentes no mundo físico se conectarem com suas naturezas espirituais. A prática do bem e da evolução, tal como concebida pelos actantes investigados, depende das trocas energéticas com os Orixás, pois “o Orixá é energia pura, então ele capta da natureza, dos amalás, das oferendas, toda energia necessária para fazer o que é pedido” (Pai Aldacir, 2017).

O Orixá se mobiliza com proeminência em tal “dimensão energética”, pela qual se conecta transita ao mundo físico através energia dos humanos, dos comportamentos, das coisas, dos livros, dos alimentos, das intenções, das emoções, das plantas, das pedras, dos lugares, das cores, das palavras, dos fenômenos ou qualquer elemento com suas eventuais relações que os baluartes do culto permitem conceber e desdobrar. As associações com os fenômenos, espaços, humanos e não-humanos no mundo físico ocorrem a partir dos atributos e significados com quais os actantes e suas energias são interpretados pela lógica que configura o terreiro, sendo que cada terreiro apresentará um amplo repertório de associações e correspondências dos seres sobrenaturais com os elementos da natureza e da sociedade por meio das faculdades energéticas existentes nestes. Tal repertório de associações e correspondência deve ser assimilado pelo adepto no decorrer de sua trajetória mágico- religiosa, tal como se fosse uma verdadeira tabuada de conexões e valores de energia (GUEDES, 1985; SERRA et al., 2002).

Os Orixás são naturalmente subdivididos em duas grandes categorias, que são as linhas de Esquerda e de Direita. A linha de Esquerda (ou Quimbanda) é concebida como uma esfera obscura e “negativa” das dimensões existenciais, em contraste, a linha de Direita (ou Umbanda) é concebida como uma esfera das dimensões existenciais na qual existe a “luz” e o “positivo”. Também existem Orixás capazes de transitar entre as duas linhas.

Ambas as linhas estão sempre interconectadas, mesmo que de forma indireta no processamento de todos os trabalhos, tal como atestam autores umbandistas (SARACENI, 2012; BITENCOURT, 2004), acadêmicos (NEGRÃO, 1994; PRANDI, 2001) e o Exu Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas do Pai Aldacir “Não tem como separar a Umbanda e a Quimbanda, as duas linhas sempre trabalham juntas, a Direita é a luz, a Esquerda é as trevas,

você tem que trabalhar com os dois lados para ter o equilíbrio” (Exu Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas do Pai Aldacir, 2016).

A linha de Esquerda é conectada no mundo espiritual às zonas umbralinas e sombrias, que no mundo físico são manifestas em aspectos que causam repúdio, horror, embates, transgressões, libido e transformações nos humanos e na sociedade. Já a linha de Direita é conectada às regiões celestes luminosas, que no mundo físico são manifestas em aspectos que causam serenidade, pacificidade e harmonia entre humanos e sociedade. Por exemplo, a Preta Velha Vovó Maria Conga trabalha na linha das Alma na linha de Direita, polariza com Exu Caveira, que trabalha na linha das Almas na linha de Esquerda. Tanto a Vovó Maria Conga quanto o Exu Caveira estão conectados pelos seus locais de atuação: a calunga (cemitério) e o cruzeiro das almas, porém em intensidades diferentes das representações deste espaço. As qualidades destes locais e todo imaginário que evocam, perpassam as concepções de ambas as divindades pelos adeptos, possibilitando que a esfera de realidade representada pela linha das Almas seja percebida em seus aspectos que despertam conforto e tranquilidade pela intercessão das almas santas e benditas que prestam auxílio à humanidade, tal como ocorre na presença da Vovó Maria Conga, que se interliga com estas almas, ou pavor e temor da morte, tal como ocorre na presença do Exu Caveira, incumbido de encaminhar as almas dos recém desencarnados para os outros planos existenciais (BITENCOURT, 2004; NEGRÃO, 1994).

Destarte, percebe-se que as dicotomias de luz/positivo e trevas/negativo não estão necessariamente atreladas à dicotomia entre bem e mal, tal como concebido pela moral dominante, pois, em diversas ocasiões foi afirmado que “todos os Orixás carregam o bem e o mal dentro de si”, cabendo às particularidades do adepto em seus parâmetros individuais de juízo de valores e com auxílio de seus Orixás tutores, em acionar estes atributos dos Orixás. De toda a forma, maioria das vezes o que é relativo ao escuro (as trevas), não são aspectos malignos da existência e sim naturais e necessários para a manutenção da mesma.

O referido equilíbrio se trata de manter o ser do adepto sintonizado com as diferentes esferas de realidade para atuar magicamente com proficuidade em todas as situações. “Se você só trabalhar com um lado, o outro lado te abandona, e você sempre vai precisar saber trabalhar nos dois. Tem caso que é tão pesado que é só Exu para resolver [...] se você só trabalhar com a Esquerda você afunda nas trevas” (Tranca-Ruas das Sete Encruzilhadas do Pai Aldacir, 2016). Geralmente as tipologias de situações e trabalhos identificados como “pesados” são incumbidos para a linha de Esquerda atuar, pois estes espíritos manipulam de

modo exímio as energias nocivas das situações, tais como desmanchar demandas e resolver infortúnios que suscitam um desdobramento amplo de emoções e intenções negativas.

Os Orixás que conformam o panteão do templo são representados como actantes modelos de evolução espiritual, independente de se alocarem à linha de Esquerda ou à linha de Direita. Entretanto, os Orixás da linha de Direita, que são principalmente os Orixás nagôs, Caboclos (espíritos indígenas) e Pretos-velhos (espíritos de africanos anciãos) são concebidos como dotados de maior grau de evolução comparado aos Orixás da linha de Esquerda, que são principalmente os Exus e Pombo-giras. Foi afirmado em diferentes ocasiões que Exu é escravo da linha de Direita, no sentido de que cabe a esta categoria de Orixás a incumbência de efetivar maior parte das atividades da rede do Espiritismo Afro-brasileiro que são ordenadas pela linha de Direita. Exu é o trabalhador incessante e encontra-se disposto para efetivação de qualquer tarefa que lhe for outorgada. Tais concepções em torno de Exu na hierarquia das entidades umbandistas corrobora com os relatos de outros pesquisadores desta religião, nos quais a subalternidade de Exu perante o Orixá nagô, o Caboclo ou Preto-velho é existente noutros locais do Brasil (NEGRÃO, 1996; PRANDI, 2001; SILVA, 2015b).

O fato dos Exus apresentarem uma evolução espiritual inferior aos Orixás da linha de Direita, mas ainda assim superior à maioria dos humanos encarnados, é a eles que se destina a chefia de um terreiro35 e a promoção de proporções significativas de todas as atividades do terreiro. Assim, tanto o médium quanto o Exu devem efetuar trabalhos em auxílio à humanidade para “receberem mais luz” e evoluírem em conjunto. É percebido que os Orixás da linha de Direita “trabalham” menos, no sentido de que suas incorporações são mais rápidas, prestam breves consultas e descarregam energias nocivas dos consulentes e seus médiuns. Em contrapartida os Exus ocupam maior quantidade de tempo do ritual, ensinando por meio de extensos diálogos e fazendo maior parte dos trabalhos necessários, tal como também realçou Negrão36 (1996).

As aparentes assimetrias que se expressam nas relações de subalternidade da linha de Esquerda à linha de Direita, bem como na maior frequência de manifestação e deslocamento da linha de Esquerda dentro da rede investigada, são equalizadas quando se entende que os Caboclos, Pretos-velhos e Orixás nagôs em razão de seus altos graus evolutivos não

35 Negrão (1996) em seu levantamento de terreiros de Umbanda em São Paulo, afirma ter encontrado apenas um

terreiro no qual é destinada a Exu a incumbência de chefia do templo. Anjos (2006) informa que na Linha cruzada do Rio Grande do Sul, Exu não pode ser pai ou mãe de cabeça dos adeptos, em razão de suas ações desterritorializantes.

36 O autor descreve que um sacerdote investigado em seu trabalho afirmou que “os caboclos seriam os

necessitam “trabalhar” assiduamente como os Exus, que ainda carecem de mais evolução (NEGRÃO, 1996). Os Orixás da linha de Direita também têm por incumbência a fiscalização dos trabalhos de Exu, por isso, sempre quando o adepto efetuar trabalhos com Exu, Ogum deve ser acionado mediante a libação de pelo menos uma vela, para que tal inspeção seja viabilizada. Deste modo é justificada a predominância dos Orixás da linha de Esquerda nos relatos e diálogos.

Vale ressaltar que apesar da predominância do povo de Exu, a linha de Direita sempre foi devidamente acionada em todas as giras e trabalhos observados. Foi mencionado pelos Exus do Pai Aldacir em diferentes momentos que Exu é Orixá mais próximo do ser humano, e que foi Oxalá que lhe incumbiu de conduzir os humanos para mais próximo da sua luz. Assim, a evolução dos seres humanos é efetivada de modo concreto pela linha da Esquerda por decretos da linha de Direita.

Pode-se observar que os modelos de evolução representados pelos Orixás são transgressores à ordem vigente em diversos aspectos. A começar pela evolução humana tutelada por uma entidade espiritual que é associada ao próprio adversário mítico das religiões cristãs dominantes, que é Exu. Os actantes que se apresentam como referência de evolução espiritual, são representados como africanos negros e indígenas, que são os Orixás nagôs, Caboclos e Pretos-velhos, assim, percebe-se os ideais de evolução que no ocidente eram retratados pela figura do homem branco europeu burguês, na ressignificação que opera pela lógica do Espiritismo Afro-brasileiro são substituídos pelas figuras daqueles que foram delegados à marginalidade, ao primitivismo e arcaísmo desde a ascensão da modernidade (ANJOS, 2006; QUIJANO, 2005).

As práticas que conduzem à evolução espiritual, que são os trabalhos de permutas entre divindades e humanos, são delegadas ao domínio da magia por diversos autores acadêmicos que tecem seus registros respaldados na ontologia ocidental, onde reside o atraso, a superstição, o fetichismo, o animismo e todos os aspectos contrários ao progresso (MAUSS, 2013; MORGAN, 2016 [1877]; NEGRÃO, 1996). Tais aspectos realçam o dispositivo de descolonização do pensamento, já que tal grupo se mantém integrado à sociedade civil e reinterpreta conceitos hegemônicos sob uma lógica própria e desobediente aos baluartes da epistemologia ocidental (MIGNOLO, 2008).