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2. DESVELANDO A FACE OCULTA DA MODERNIDADE: CRISE, ALTERNATIVAS E

4.2 A IMPRESCINDIBILIDADE DA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE PARA

A forma de conceber a natureza em cultos afro-brasileiros, nos quais cada elemento é habitado por uma potência divina, cada ser denota, de forma singular, um feixe de linhas convergentes e divergentes que conformam uma rede de interações e informações que conectam em volta de si e, a partir de si, entre diferentes estratos da existência (AUGRAS, 1983). Pesquisas etnobotânicas, etnoecológicas e etnobiológicas em geral, ao abordarem os vínculos entre sociedade e natureza em cultos afro-brasileiros, têm os iniciados como fonte de informação, como porta-vozes da rede de interações com os elementos naturais, espíritos e suas correspondências simbólicas que permeiam os espaços onde os cultos são efetuados (ALBUQUERQUE, 2001; GUEDES et al, 1985, p.03-08; SERRA, 2002). Basta a questão de quais as plantas, ou elementos naturais utilizados em seus rituais, que a estreita rede de interação entre humanos, vegetais, deuses, espíritos, mitos, medicina, é evocada automaticamente, e pode ser mapeada (CALLON, 1994).

Ao contrário da lógica moderna que busca calar os não-humanos – sem sucesso, pelo fato de ninguém falar por si mesmo, mas sempre por outra coisa – na religiosidade afro- brasileira, pode-se averiguar que além dos não-humanos falarem por intermédio do aparelho de fonação – o iniciado –, também agem e se reagrupam em associações, tornando-se atores sociais em concomitante com humanos. Nesta conjuntura, por este regime da palavra que a ecologia política pode emergir em cultos afro-brasileiros, possibilitando análises que concebam humanos e não humanos e suas relações na mesma simetria, retratando suas lógicas sem a divisão entre sujeito e objeto que lhes omite (LATOUR, 2004).

Pesquisas de enfoque etnobotânico, tais como realizadas por Guedes (1981), Albuquerque (1999) e Favaro (2015), relatam em seus resultados uma grande diversidade de atores humanos, não-humanos, intenções e interações ocorrentes em algumas casas de religião analisadas, por meio de técnicas de entrevistas e listagens-livres em diversos terreiros. Neste quadro, é pertinente evocar a monografia de Favaro (2015), elaborada pelo autor do presente texto, que registrou a existência de 181 espécies botânicas, entrevistando 14 sacerdotes, em 13 terreiros, em três diferentes cidades do Sudoeste paranaense. A cada espécie também foi atribuída os seus usos e formas de interações com outras plantas, humanos e Orixás, de forma sucinta, já que as ciências naturais forneciam as ideias basilares para fundamentação teórica. A pesquisa revelou uma grande diversidade ecológica associada à esfera da prática religiosa e,

assim, engendrou o substrato para que emergissem ideias fundamentais para constituição do presente trabalho. Contudo, para que a ecologia política possa adentrar no estudo destes grupos de modo fecundo, é necessário um aprofundamento mais consistente voltado a visibilizar os atores que tecem as relações entre seres humanos/divindades/natureza.

Cada informação que circula nestes cultos não pode ser aprendida de forma desconexa da rede na qual se insere. Para que a lógica que permeia a relação seres humanos/divindades/natureza seja assimilada, é necessário conviver com o grupo estudado e participar de suas atividades, como se fosse um integrante do mesmo (LATOUR, 2012). Um pesquisador que está habituado à convivência com o povo-de-santo, sabe que apenas uma entrevista com um representante de cada templo levanta muitas informações frívolas, parciais, ou que muitas vezes não condizem com a realidade do local (SILVA, 2015a), apesar de se tratarem de informações relevantes para as discussões de interesse para os etnobotânicos, que possuem focos nos debates das ciências naturais – cujo escopo das pesquisas concentram-se em mensurações de diversidade ecológica e florística, índices diversos, análises estatísticas, etc. – (ALBUQUERQUE; LUCENA; CUNHA, 2008).

As dimensões intangíveis – valores, significados, religiosidades, sonhos – são indissociáveis dos elementos concretos agenciados nestas religiosidades, assim, é possível afirmar que no que diz respeito ao aglomerado de relações existentes nas esferas das relações entre humanos/divindades/natureza, as pesquisas cujo método se valeu de apenas uma entrevista com os representantes ou guardiões do conhecimento botânico de cada terreiro, deixam em aberto diversas lacunas sobre questões basilares da realidade investigada, porém, úteis como estudos exploratórios para desdobrar tais realidades.

A complexidade que envolve a troca de conhecimentos dentro da lógica do povo-de- santo, bem como as dificuldades do investigador em acessar tais informações em plenitude, é muito bem destacada por Silva (2015a):

A forma como o conhecimento nas religiões afro-brasileiras é veiculada (em termos totalizantes de observação, e não fracionados em perguntas e respostas) faz com que nem sempre seja possível, para os religiosos, organizarem suas experiências de forma compartimentada, tal como lhe é solicitado pelo roteiro das entrevistas. O conhecimento é apresentado em forma de parábolas, de mitos, de casos aparentemente sem sentido imediato, em horas aparentemente inapropriadas, durante uma refeição, no intervalo de um ritual, enquanto se depenam na cozinha as aves sacrificadas ou se trituram as folhas para um banho. Um conhecimento que ouvinte só lentamente vai juntando para constituir sua compreensão da religião. Em função desses aspectos, as entrevistas com os membros das religiões afro-brasileiras são difíceis de serem realizadas dentro da lógica acadêmica de apreensão do conhecimento, e há uma intensa negociação entre entrevistador e entrevistado sobre

os conteúdos do que lhe é dito, tendo por base o contexto religioso que geralmente o antropólogo ainda não conhece (SILVA, 2015a, p. 44-45).

O pesquisador, que em geral desconhece a etiqueta básica que envolve o ato de “conversar sobre a religião” e se portar diante de atitudes de seus interlocutores, enfrenta, portanto, grandes dificuldades para estabelecer diálogo com o grupo. (SILVA, 2015a, p.48-49).

Para que informações mais profundas sobre a dinâmica destes cultos na relação entre seres humanos/divindades/natureza possam ser visibilizadas junto à diversidade ecológica latente nestes locais, continuar investigando as religiões afro-brasileiras por meio de métodos etnobotânicos e etnoecológicos não cabem às aspirações e discussões tecidas no presente trabalho, apesar de não excluir a fundamentação teórica elaborada por cientistas de áreas correlatas às etnociências, para complexizar as análises e reflexões – tais como os excelentes trabalhos elaborados por Albuquerque (2000; 2001), Albuquerque; Lucena & Cunha (2008), Camargo (1998), Guedes (1981), Serra (2002), dentre outros.

Assim, a prática da observação participante é imprescindível, de acordo com Ludke & André (1986), o tempo mínimo de 6 meses de participação junto ao grupo é necessário para que o pesquisador assimile informações mais ou menos relevantes quanto à sua lógica e a visão êmica. A observação participante é um método no qual o pesquisador deve descrever o que permeia a população estudada com propriedade de como se fosse um membro deste grupo (WOLCOTT, 1975).

Para ilustrar a importância que carrega uma observação participante para maior compreensão da realidade estudada, atrelada à busca de paradigmas e cosmovisões alternativas à modernidade, vale mencionar o exemplo da pesquisa de Evans-Pritchard (1937) entre os Azande, que desvelou e visibilizou a lógica da bruxaria do povo estudado, numa concepção que transcende a casualidade em que a mente do cientista é doutrinada, para conceber o mundo e suas relações – que não permite a tradução de realidades que não se adequam às interpretações engendradas pelo paradigma cartesiano –. Pritchard ([1937] 2016) relata em seu trabalho que sua mente adequada aos moldes ocidentais lhe conduziu a julgamentos que subestimavam o valor da lógica da bruxaria entre a população que investigava até lhe compreender como se fosse um Azande, por meio da convivência com os mesmos:

Achei a princípio, estranho viver entre os Azande e ouvir suas explicações ingênuas sobre infortúnios que, a nosso ver, tinham causas evidentes. Mas em pouco tempo aprendi o idioma de seu pensamento e passei a aplicar noções de bruxaria tão

espontaneamente quanto eles, nas situações em que o conceito era relevante ... eu sempre discutia com os Azande e criticava suas afirmações ... (PRITCHARD, 2016, p.148).

Ao conversar com os Azande sobre bruxaria, e observando suas reações em situações de infortúnio, tornou-se óbvio para mim que eles não pretendiam explicar a existência de fenômenos, ou mesmo a ação de fenômenos, por uma causação mística exclusiva. O que explicavam com a noção de bruxaria eram as condições particulares, numa cadeia causal, que ligaram de tal forma um indivíduo a acontecimentos naturais em que ele sofreu dano (PRITCHARD, 2016, p.149-150). A crença zande na bruxaria não contradiz absolutamente o conhecimento empírico de causa e efeito. O mundo dos sentidos é tão real para eles como para nós. Não nos devemos deixar enganar por seu modo de exprimir a causalidade e imaginar que, por dizerem que um homem foi morto por bruxaria, negligenciem inteiramente as causas secundárias que, em nosso modo de ver, são as razões reais daquela morte. O que eles estão fazendo aqui é abreviando a cadeia de eventos e selecionando a causa socialmente relevante numa situação social particular, deixando o restante de lado. Se um homem é morto por uma lança na guerra, uma fera numa caçada, ou mordida de cobra, ou de uma doença, a bruxaria é a causa socialmente relevante, pois é a única que permite intervenção, determinando o comportamento social (PRITCHARD, 2016, p. 153).

Os raciocínios apresentados no trabalho de Pritchard influenciaram grandes pensadores críticos nos debates em sociologia e filosofia das ciências, tais como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, autores conceituados que estão dentro do debate epistemológico tensionado na seção 3 do presente estudo (CASTRO, 2016). Ao permitir uma lógica oriunda de fundamentos substanciais e ontológicos essencialmente divergentes do modo ocidental de conceber o mundo, Pritchard evidenciou a importância elementar da pesquisa participativa junto aos grupos estudados, para que novas interpretações da realidade emerjam e proliferem em diálogo com o conhecimento acadêmico, que poderão, talvez, orientar ou adensar ideias que aspiram a (re)valorização de epistemologias de fronteira.

O modo de ensino e aprendizagem operante nos cultos afro-brasileiros exige que a conexão do pesquisador com os integrantes do templo não seja restrita às aplicações de entrevistas. Para que a realidade seja assimilada com um mínimo de consistência, uma longa observação participante é imprescindível para assimilação das regras, costumes e convenções que compõem as diretrizes do grupo estudado (FIRESTONE, DAWSON, 1981). Cada participante da pesquisa deve ser concebido como um mediador em plenitude, ou seja, ele transporta a voz dos actantes, traduzindo-a, lhe inserindo ou retirando elementos conforme a esfera subjetiva de suas experiências e conhecimentos, assim, o fator de incerteza estará sempre presente em investigação de qualquer espécie.

Vale salientar que se deve ter em vista que, o relato textual, como laboratório do cientista social, pode falhar tanto quanto o experimento laboratorial (LATOUR, 2012). Neste sentido, é pertinente realçar a reflexão de Silva (2015a) no que diz respeito ao fator de incerteza presente nas informações divulgadas tanto por representantes religiosos afro- brasileiros, quanto por cientistas sociais:

Entretanto, admitir que os pesquisados (assim como os antropólogos) “mentem”, ou contam “meias verdades” (como disse Rita Amaral), ou, ainda, têm uma noção diferente do que é a “verdade” (diferente, inclusive, em relação à noção de verdade com a qual os antropólogos trabalham), não reduz a importância dos seus depoimentos. Ao contrário, permite sondar os próprios limites do diálogo nesse contexto religioso (SILVA, 2015a, p.48-49)

Contudo, mesmo com a profundidade de uma observação participante, as limitações do acesso a informações se mantém patentes em seus registros, pois a dinâmica religiosa dos grupos afro-brasileiros denotam que o aprendizado é vagaroso e sigiloso, cujas algumas tipologias de ensinamentos e práticas associadas podem ser consideradas até mesmo perigosas para serem transmitidas a indivíduos despreparados pelos conceitos e lógicas do grupo, destarte, se tratam de saberes que não devem ser expostos para indivíduos que não possuem a confiança e/ou preparos necessários para assimilação de suas dimensões. Muitas vezes os sacerdotes omitem diversos de seus conhecimentos para os iniciados, temendo perder seus domínios – pois são locais onde conhecimento e poder tomam proporções íntimas – ou temem que os conhecimentos ditos perigosos sejam utilizados contra si mesmos, como registraram Barros & Napoleão (2008) e Chaves (2012). Ademais, as idiossincrasias e intentos das questões que movem ações dentro dos terreiros, exigem em cada prática um modo de saber e fazer diferenciado, que não são possíveis de serem registrados em totalidade, em vista da forma fluídica e dinâmica dos mesmos serem concretizados.

Muitas vezes, estes conhecimentos são adquiridos a partir do relacionamento individual dos iniciados com as entidades espirituais vinculadas aos mesmos, como ocorre frequentemente na Umbanda e cultos similares, nos quais, os sacerdotes alegam em seus discursos um modo de aprendizagem sem mediações (diretas) de outros humanos, mas por experiências oníricas, intuição, sensações, faculdades mediúnicas e descobertas interiores em geral, sempre correlacionadas às entidades espirituais e as competências individuais do humano em assimilar as informações oriundas da estrutura espiritual do grupo. Diversas destas informações de aprendizagem com o sobrenatural são zeladas com silêncio pelos seus detentores humanos, em razão de seus atributos idiossincráticos, íntimos e demasiadamente

peculiares. Destarte, nem mesmo um filho-de-santo que possui vínculos estreitos com o seu sacerdote instrutor assimila todo o seu conhecimento.

Neste contexto, os conhecimentos que são disponibilizados ao pesquisador na observação participante, chegam ao mesmo com diversas rupturas e descontinuidades em relação aos seus atributos originais, em razão de suas limitações em assimilar aquele conhecimento sem participar efetivamente das atividades grupais. Tais rupturas e descontinuidades são radicalizadas no momento de transladar as informações para o texto etnográfico, no qual a complexidade dos saberes e fenômenos é brutalmente reduzida aos ditames elementares para que o texto científico seja aceito pelo universo acadêmico e suas leis, tal como adverte Silva (2015a):

O texto etnográfico em geral é uma redução brutal das inúmeras possibilidades de interpretação da experiência de campo e do difícil exercício de alteridade realizado entre o antropólogo e seus interlocutores. Primeiro, porque o texto etnográfico, como qualquer forma escrita de representação, já é em si mesmo uma adequação ou transformação da realidade que se pretende inscrever, descrever, interpretar, compreender, explicar, etc. Segundo, porque, devido à própria natureza multifacetada e dinâmica da realidade social, não é possível conceber uma representação etnográfica que a reproduza integralmente (SILVA, 2015a, p.118).

Os movimentos de ruptura e descontinuidade percorridos na reprodução da realidade analisada para o texto escrito, conduzem a reflexão de que assim como toda reprodução13, a elaboração de um texto elucida situações especificas e possui configurações oscilantes de tempo e espaço, contradições e convergências, que expressam as formas dos atores conceberem e dinamizarem suas existências, que torna o relato em uma síntese do todo (universo investigado) que perpassa o todo às suas parcelas e, das parcelas ao todo, de modo dialético (CORONA, 2006 apud CORONA, ALMEIDA, 2014).

Os elementos do real permanecem no relato escrito, contudo, de modo transfigurado, que em vista de toda complexidade envolvida nos movimentos de reprodução, tornam o trabalho científico uma fonte riquíssima de incertezas de múltiplas diferentes naturezas e ações, reconfigurada entre as fronteiras consolidadas e rígidas que envolvem o seu exercício, dentro das quais, para que seja possível almejar algum nível de emancipação do grupo e simetria dos seus saberes nas assembleias públicas, no relato textual os actantes protagonistas

13 Nesta conjuntura, a reprodução é concebida como um fenômeno generalizado no qual as formas organizadas

de conexões do real aspiram manter suas existências, contudo, sem uma linearidade harmônica ou perfeita dos elementos que aspiram permanecer. Nas dimensões existenciais percebidas pelos seres humanos, a reprodução ocorre em diversos estratos da realidade, nas dimensões biológicas (entre espécies botânicas, animais, micológicas, etc.) e, nas dimensões sociais tangíveis (econômicas, biodemográficas, escrita, fotográfica, etc.) e intangíveis (religiosa, cultural, simbólica, etc.) (CORONA, 2006 apud CORONA, ALMEIDA, 2014).

da realidade investigada devem explanar seus repertórios ontológicos e ações concretas numa posição central em relação as demais especulações teóricas e interpretações de terceiros sobre a mesma, considerando todas as limitações inatas e a curta proporção de tempo/espaço que o relato científico ocupa em sua construção.