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DE 07 (SETE) ANOS DE RECLUSÃO E 21 (VINTE E UM) DIAS MULTA, NO VALOR MÍNIMO LEGAL, A SER CUMPRIDA NO REGIME

4. OS BAILES DE COMUNIDADE E O “PROIBIDÃO”

4.8. A corrupção de menores

Além de apologia ao crime e tráfico de drogas, uma das acusações mais recorrentes que recaem sobre os bailes funk é que neles ocorre a prática de corrupção de menores. Em julho de 1997, motivada por denúncias, a polícia apreendeu a fita de vídeo “Rio funk proibido”, anunciada como “60 minutos de porrada, som e sexo agitando as galeras”. A fita, gravada ao vivo, era vendida por telefone e encontrada em qualquer locadora de subúrbio do Rio de Janeiro. Nela, dançarinas tiravam a roupa ao lado de jovens, alguns com menos de 10 anos. Uma dançarina aparentando ter 15 anos de idade chega a tirar a calça de um rapaz, acariciando-o na altura da genitália. Há simulação de sexo oral e lesbianismo, mas nenhum sexo explícito.

O presidente da Liga das Equipes de Som na época, Rômulo Costa, declarou à imprensa que a fita era uma fraude, que levaram garotas de programa para o baile e que aquilo não acontecia normalmente. Já o irmão de Zezinho, dono da equipe ZZ, apesar de negar que as filmagens tivessem sido feitas em seus bailes, admitiu que situações como as do vídeo de fato existiam neles, que seu irmão oferecia 20 reais para meninas tirarem a blusa sem perguntar sua idade e que algumas tinham 15 anos, mas eram “totalmente desenvolvidas”.359

Por sua vez, em março de 2001, em meio a uma onda de grande sucesso do funk junto às camadas médias e altas dos jovens, foi divulgado com estardalhaço pelos jornais o caso de meninas de até 12 anos de idade que iam aos bailes de saias curtas, sem calcinha, e participavam de “trenzinhos” nos quais mantinham relações sexuais em plena pista de dança. As “grávidas do funk” não sabiam quem era o pai da criança e algumas alegavam até ter contraído o vírus do HIV nessas orgias.360

Antes da nacionalização do funk, no final da década de 80, o funk tocado nos bailes era instrumental ou estrangeiro. Nesta época, os dançarinos inventavam refrões em português que exaltavam suas galeras ou refrões pornográficos, para preencher o vazio.361

359 ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 186-187.

360 Ibid. p. 186-187, 213-214. O juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Rio, Guaracy Vianna afirma que os donos do baile escolhiam as melhores meninas para passar pelo corredor do sexo. O primeiro que segurasse a menina tinha direito a ter relações sexuais com ela. Ela tentava escapar, nem sempre era pega por alguém que ela queria e acabava quase sofrendo um estupro. Mas quando entrava no baile, já sabia que estava sujeita a esse tipo de coisa (Ibid. p. 192).

361 VIANNA, Hermano, op. cit. p. 82-83; CECCHETTO, Fátima; FARIAS, Patrícia, op. cit. p. 38. Assim, a música “Don´t fight the feeling” virou a “Melô do Maconheiro”, pois o refrão era entendido nos bailes como “aperta um fino” (ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 53). Cf. também VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 124.

Hermano Vianna, ainda na década de 80, relata que dançarinas eróticas percorriam vários bailes por noite para fazer strip-tease ao som dos últimos sucessos do funk.362 Muitos menores de fato frequentam bailes funk exibindo seus corpos e simulando relações sexuais. Essas meninas são conhecidas no mundo funk como “novinhas” e homenageadas por diversos MCs.

É preciso, porém, levar em consideração que, assim como muitos jovens gostam de se afirmar simulando a filiação a uma facção criminosa, há uma distância entre o que é cantado e o que efetivamente ocorre nos bailes. As coreografias são bastante sensuais, mas “nada disso significa que se performatiza no espaço dos bailes o sexo, ao contrário do que acontecia com as rixas”.363 As letras do funk com duplo sentido às vezes fazem referência ao universo infantil e são cantadas por MCs mirins, como Jonathan Costa, filho de Rômulo e Verônica Costa, da equipe de som Furacão 2000.364

O Juiz titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude Siro Darlan, que já vinha há algum tempo de olho na presença de menores nos bailes da Furacão 2000, ameaçou tirar dos pais a guarda de Jonathan enquanto ele cantasse “músicas inadequadas”.365 Cabe questionar, no entanto, até que ponto essa erotização precoce não é um fenômeno que atinge a juventude como um todo e até que ponto legitima a intervenção estatal sob a forma repressiva:

A sexualidade parece ser tratada como um problema no qual a solução se encontraria no acesso a conhecimentos cognitivos. A sexualidade não se resolve no plano teórico. Os jovens procuram alternativas às limitações das aprendizagens oficiais e treinamentos cognitivos em fontes diversas de conhecimento: nos amigos mais velhos, nos amantes mais experientes, nas prostitutas ou prostitutos, nas revistas de diferentes cores e matizes

362 Em uma das “brincadeiras”, o dançarino que tivesse uma ereção no palco poderia escolher o local onde daria um beijo na dançarina. Os dançarinos simulavam relações sexuais no palco, o que era considerado normal pelos frequentadores dos bailes (VIANNA, Hermano, op. cit. p. 92-93).

363 CECCHETTO, Fátima; FARIAS, Patrícia, op. cit. p. 60. Algumas MCs que cantam funks pornográficos são evangélicas e muitos funkeiros, “representantes radicais da transgressão, parecem cheios de desejos censurados. Não falam palavrões, recalcam seus impulsos sexuais e se comportam como alunos de um rigoroso colégio interno” (VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 79).

364 Os MCs afirmam que as crianças não cantam as letras de duplo sentido com malícia. Quem tem maldade é o adulto (ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 145, 200, 274). Segundo Fátima Cecchetto e Patrícia Farias, “o interesse desses grupos em manter essa ambiguidade pode ser visto pelo ângulo da exploração de um lado mais lúdico, cômico, e também como suavizador da carga erótica dos termos chulos. Assim, existem versões que podem ´tocar no rádio`, por exemplo, e outras que são reservadas para os bailes e os CDs piratas, ´proibidões`. Além disso, podem servir ainda para atrair um público jovem de regiões mais abastadas da cidade (...) A citação de programas infanto-juvenis pode indicar também a proximidade desses jovens com o universo infantil. Ao mesmo tempo, eles marcam sua distância desse universo, através da sátira. A distância entre a adolescência e a infância, deste modo, é construída através do alardear da atividade sexual” (CECCHETTO, Fátima; FARIAS, Patrícia, op. cit. p. 45-46).

(pornográficas, românticas, religiosas, etc.) e, mais recentemente, também nos bate-papos da Internet (...) Os conhecimentos escolares são de fundamental importância para uma prática sexual consciente; entretanto, essa precisa ser exercitada pelos jovens, não apenas como alunos, mas como sujeitos livres para a prática autônoma do próprio corpo no tempo livre. Neste sentido, as desconfianças quanto à utilização “sadia” do tempo, e a interdição estigmatizante de espaços sociais de aprendizagem e experimentação não podem ser qualificadas como propostas de caráter democrático e cidadão. As relações sexuais entre os jovens não constituem um problema em si, podendo, pelo contrário, expressar um nível superior de qualidade de saúde pública.366

Uma parte da jurisprudência, principalmente relativa à aplicação do Estatuto da Criança e Adolescente, deixa transparecer uma visão negativa do funk, como uma espécie de ambiente criminógeno deformador da personalidade dos adolescentes, que merece repreensão e justifica o agravamento da medida sócio-educativa imposta. Trata-se, muitas vezes, de uma visão correcionalista do crime, na qual o criminoso “é um ser inferior, deficiente, incapaz de dirigir por si mesmo- livremente- sua vida, cuja débil vontade requer uma eficaz e desinteressada intervenção tutelar do Estado”367:

0328650-64.2009.8.19.0001 – APELACAO

DES. VALMIR RIBEIRO - Julgamento: 07/07/2010 - OITAVA CAMARA CRIMINAL

Não merece ser acolhido o pleito alternativo de aplicação de medida sócio- educativa de liberdade assistida, considerando que o episódio pelo qual o apelante foi responsabilizado diz respeito a ato infracional que no Código Penal ostenta penalização severa e a aplicação de medida de liberdade assistida redundaria em inobservância ao princípio da proporcionalidade, que deve ter por norte a gravidade da ação praticada e a necessidade pedagógica do adolescente representado.- Ademais, o sumário social do adolescente revela que interrompeu os estudos há mais de três anos; está fazendo uso de drogas e afirmou para a psicóloga que praticou o ato infracional porque "queria dinheiro para curtir o baile", o que vem reforçar a adequação e conveniência da medida sócio- educativa aplicada, pois que possibilitará a efetiva reeducação e gradual ressocialização do jovem, visando o despertar de seu senso crítico sobre a gravidade do ato praticado, bem como de suas consequências, quer no meio social, quer para si próprio.- Recurso improvido.

0055491-12.2008.8.19.0000 (2008.100.00075) - APELACAO (E.C.A.)

DES. ANTONIO CARLOS AMADO - Julgamento: 19/08/2008 - SEXTA CAMARA CRIMINAL

Ora, apesar de ser ameaçado constantemente, continuava frequentando o baile (grifo original), assim como a Praça, onde conhece o traficante “Fê”, sendo injustificável a afirmativa de que estaria armado por sofrer ameaças e temer por sua vida! (...) Apesar de não ter anotações da prática de atos infracionais, sendo sua primeira passagem pelo Juizado da Infância e da Juventude, percebe-se que o adolescente necessita de acompanhamento pelo Juizado Menorista. Embora possua apenas 14 anos de idade já frequenta bailes que se iniciam às 23 horas,

366 CARRANO, Paulo César Rodrigues. Os jovens e a cidade: identidades e práticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 200. p. 62-63.

indo até as 04 horas da manhã do dia seguinte, com o consentimento de seus pais, ingere bebida alcoólica (cerveja) e apesar de alegar que não faz uso de drogas, percebe-se nitidamente o seu envolvimento com traficantes (“Fé” e o “pessoal da boca de Olaria”). (...) Como salienta Márcio Mothé Fernandes: Muitas infrações cometidas por adolescentes poderiam ser evitadas se os pais tivessem plena consciência de que é preciso dar liberdade aos filhos, porém, com responsabilidade. A permanência cada vez mais precoce de adolescentes em locais proibidos para menores de dezoito anos, com o consentimento dos genitores, tem corroborado de forma significativa para a prática de atos infracionais. A Justiça não dispõe de funcionários suficientes para fiscalizar a permanência de adolescentes em todos os locais, sobretudo nas grandes metrópoles. Ademais, compete aos pais, em primeiro lugar, exercer vigilância sobre os filhos, sob pena de descumprimento dos deveres inerentes ao pátrio poder. (Ação Sócio-Educativa Pública-2ª Edição-Lumen Júris-p. 119) (...) Sentença que visou, antes de tudo, a ressocialização do adolescente e sua proteção integral, procurando conscientizá-lo da ilicitude de seu ato e afastá-lo do meio criminológico ao qual está exposto.

0001707-14.2005.8.19.0037 (2006.100.00063) - APELACAO (E.C.A.)

DES. ELIZABETH GREGORY - Julgamento: 25/04/2006 - SETIMA CAMARA CRIMINAL

Quanto à aplicação da medida de internação, perfeito o Juízo de Reprovação, por ser o artigo 157, §2°, I, II E V delito de elevado potencial ofensivo, tendo sua reprimenda em casos de imputáveis, bastante severa. Por outro lado, o representado possui uma família desestruturada que não tem condições de apoiá- lo a retomar sua ''vida bem como o representado já responde a outro processo por ato análogo ao crime de homicídio qualificado razão de seu envolvimento com a criminalidade e com gangues de bairros que se enfrentavam em baile "funk" que ocorria na cidade. Recurso que se nega provimento.

Apesar de haver seguranças e revistas nos bailes, não há evidências de que haja um controle rígido para impedir a entrada de menores de idade nesses locais.368 Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer a prática corrente do uso de documentos falsos por adolescentes para o ingresso em discotecas e bares de classe média e alta, onde o consumo de álcool é liberado e o de drogas ilícitas camuflado. Coreografias sensuais e eróticas executadas por crianças e adolescentes, bem como letras de duplo sentido, não são exclusivas de bailes funk, sendo muito comuns no axé, marchinhas de carnaval, forró e pagode. Fazem parte, na realidade, de uma verdadeira tradição brasileira, marcada pela irreverência e sensualidade.369 Essas músicas fazem muito sucesso e são frequentes em

368 Em visita ao baile da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, pacificado pela Unidade de Polícia Pacificadora, constatei a presença de alguns adolescentes dançando músicas bastante erotizadas. A frequência aos bailes começa cedo, às vezes aos dez, onze ou doze anos (GUIMARÃES, Eloísa. Escola, Galeras e

Narcotráfico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p. 152).

369 MEDEIROS, Janaína, op. cit. p. 13-14. Deize Tigrona tentou fazer carreira no hip hop e no funk melody, mas “é o duplo sentido que toca” (Ibid. p. 82-83). Cf. também FAOUR, Rodrigo. História sexual da MPB: a evolução do amor e do sexo na canção brasileira. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. A cultura corporal brasileira sempre teve como um marco a utilização do erótico-pornográfico. O que ocorre é que um gênero que era coadjuvante passou a ser protagonista recentemente, até por causa da globalização da lucrativa

programas de TV, na rádio e em festas das camadas mais abastadas da população, assim como músicas norte-americanas com letras repletas de palavrões e que apelam para os mais baixos instintos sexuais.

As MCs mulheres abandonam a posição de passividade sexual, compõem e cantam sem qualquer pudor para “dar o troco” nos MCs machistas e seus funks.370 As letras explícitas cantadas por mulheres, ainda vistas como pessoas frágeis e românticas, que não separam sexo de sentimento amoroso, chocaram muita gente. Enquanto alguns enxergaram vulgaridade, outros detectaram um discurso político neofeminista que incomoda tanto o movimento feminista tradicional quanto a sociedade machista, a qual não admite que a mulher exija dos homens a satisfação de seus desejos sexuais e reivindique o direito de também se divertir ou até de trair.371

Talvez haja ainda um componente racista na condenação do “pornofunk”. Ao contrário de grupos da militância negra, como os rappers, os funkeiros não afirmam expressamente sua identidade negra, mas a “sugerem, através de sua própria presença, da visibilidade que adquirem, colocando em cena seus corpos coreograficamente arranjados”. Haveria uma provocação não-verbal, provocando o conflito e levando à armadilha do estereótipo que associa o corpo negro à sexualidade e os negros à irracionalidade.372