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As relações ambíguas entre “bandidos”, MCs e “otários”

DE 07 (SETE) ANOS DE RECLUSÃO E 21 (VINTE E UM) DIAS MULTA, NO VALOR MÍNIMO LEGAL, A SER CUMPRIDA NO REGIME

4. OS BAILES DE COMUNIDADE E O “PROIBIDÃO”

4.3. As relações ambíguas entre “bandidos”, MCs e “otários”

A presença de traficantes armados nos bailes de comunidade não demonstra necessariamente, a não ser em uma visão demasiadamente estreita, a associação dos traficantes com os MCs ou DJs. Um olhar etnográfico, que atente para as especificidades das tramas de relações sociais existentes nas comunidades, revelará que a amizade com traficantes não implica necessariamente em cumplicidade com a prática criminosa. Diante da falta de perspectivas colocada à juventude pobre, negra e favelada brasileira, é esperado que alguns jovens dessas comunidades não resistam à tentação de ingressar no tráfico para alcançar bens de consumo e status junto a mulheres.

É mais fácil, porém, acusar o funk de “arregimentar mão de obra para o tráfico” do que reconhecer que o próprio modelo econômico faz com que haja uma fila de jovens desempregados e sem qualificação profissional se oferecendo para trabalhar na estrutura de

industrial com altos índices de desemprego (SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 258).

279 MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii. Fala, galera: juventude, violência e cidadania no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Garamond, 1999. p. 173-174, 179. As violações e crimes dos estratos médios e altos da sociedade permanecem na invisibilidade, sob a imagem de que por natureza são sujeitos morais acima de qualquer julgamento, com direito de serem protegidos e salvos de humilhações, degradações e sofrimentos (Ibid. p. 190).

varejo do comércio de drogas.280 De acordo com Jock Young, a criminalidade é resultado da privação relativa e do individualismo, sendo que ambos os fatores foram realçados na pós-modernidade. A privação relativa consiste na sensação de injustiça em relação à desigualdade social, ou seja, na sensação de que a desigualdade social não decorre da meritocracia, mas, ao contrário, de sua falta. A contradição entre a incorporação das metas culturais de consumo de uma sociedade e a impossibilidade de se alcançar por meios lícitos estas metas, em decorrência da estrutura social, constitui uma motivação criminógena poderosa.281

Segundo a teoria da anomia, de Robert Merton, a contradição entre as metas culturais de ascensão social e consumo na sociedade capitalista e as capacidades socialmente estruturadas de atingi-las de forma lícita pode gerar cinco tipos de comportamentos individuais: o conformista, o tipo mais comum em uma sociedade, conforma-se tanto com as metas culturais quanto com os meios institucionalizados.; o ritualista, que renuncia aos objetivos valorados por ser incapaz de realizá-los, mas segue compulsivamente as normas institucionais; o retraído, como o mendigo e o toxicômano, que renuncia tanto às metas culturais quanto às normas sociais; o rebelde propõe novas metas culturais e a institucionalização de novos meios para atingi-las; e, por fim, o inovador, que adere às metas culturais de consumo e ascensão social, mas renuncia aos meios legítimos para atingi-las, ou seja, inova ao adotar meios ilícitos, criminosos.282

O comportamento humano é baseado em valores que guiam o indivíduo. Há, portanto, uma correlação inevitável entre os valores sociais de uma determinada comunidade histórica concreta e a criminalidade da referida comunidade. Por isso, qualquer projeto sério de prevenção criminal a médio ou longo prazo exige uma revisão profunda do marco axiológico ou da escola de valores sociais. A criminalidade dos jovens é “aprendida” na sociedade dos adultos, na qual há um flagrante divórcio entre os valores “oficiais”, ideológicos, e os praticados, como violência, corrupção, falta de solidariedade etc.

O culto ao êxito econômico rápido, a todo custo, e a baixa tolerância à frustração geram mensagens ambíguas, pedagogicamente negativas, suscetíveis de uma leitura criminógena. Em uma sociedade que investe mais em jogos de azar que me gastos sociais,

280 Cf. RIBEIRO, Manoel, op. cit. p. 292; MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii, op. cit. p. 162.

281 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença da modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 25 et seq.

é natural que os jovens acreditem mais no risco, na aventura, na audácia, em técnicas de empreendedorismo agressivas e heterodoxas ou em comportamentos delitivos mais rentáveis do que acreditem nos trabalho, no esforço pessoal e nas convenções. A criminalidade dos jovens é em grande parte subcultural justamente porque rechaça alguns valores da sociedade mais ampla, como o trabalho honesto, mas incorpora outros, como o consumismo. Uma política preventiva busca oferecer uma alternativa de valores ao jovem para que ele possa se comprometer com a mudança social, em detrimento de uma postura niilista.283

Parte da criminalidade contemporânea é gerada “de fora para dentro” da favela e pode ser resumida em necessidade de poder, lazer e consumo. “A indústria cultural criou jovens que desejam ter acesso aos bens especialmente fabricados para eles, desde vestimentas e estilos musicais a drogas ilegais”. Apesar de afirmarem que desdenham a vida dos “playboys” e das “patricinhas”, os funkeiros da favela têm como referência o estilo de vida dos jovens surfistas da Zona Sul de classe média e alta e idolatram, inclusive nas letras das músicas, suas marcas de tênis e roupas. Há um intercâmbio comercial dinâmico em que o “asfalto” consome a cocaína da favela e esta, à sua maneira, a moda do “asfalto”. O problema, todavia, não se resume à dimensão econômica.

Há em jogo elementos culturais e simbólicos extremamente importantes. Os jovens rejeitam a disciplina do trabalho embrutecedor e são seduzidos esteticamente pela revolução pós-moderna da alta tecnologia e do show-business. É preciso, pois, substituir o fascínio causado pela tecnologia de uma AR-15 pela tecnologia de um laptop.284 Neste ponto, grande parte dos jovens atribui à propaganda televisiva o incentivo ao consumo

283 GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. 7. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 380-381.

284 Segundo Alba Zaluar, a globalização e cultura de massa difundem novas necessidades. “A imagem do menino favelado com um AR-15 ou metralhadora UZI na mão, as quais considera como símbolos de sua virilidade e fonte de grande poder local, com um boné inspirado no movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína produzida na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro do ano, não pode ser explicada, para simplificar a questão, pelo nível do salário mínimo ou pelo desemprego crescente no Brasil, nem tampouco pela violência costumeira do sertão nordestino” (Apud CARMO, Paulo César do, op. cit. p. 216). Cf. HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 153-155; VIANNA, Hermano, op. cit. p. 74; VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 141, 179, 216-217; DEBATE 7, op. cit. p. 365-366. As roupas e aspirações de consumo dos jovens bandidos pouco a pouco se distinguem das mantidas pelos demais moradores. “Uma identidade geracional entra em ação e aproxima os bandidos dos jovens ricos no consumo de certos objetos, que marcam um estilo, e no gosto pelo tóxico” (ZALUAR, Alba, op. cit. p. 158). José Júnior, coordenador da ONG Afroreggae, declara que os jovens entram para o tráfico não só pelo dinheiro, mas porque o lugar mais legal numa favela à noite é a boca-de-fumo, onde “o som é maneiro, a galera é bem vestida...” (MORETZSOHN, Sylvia, op. cit. p. 300).

supérfluo e, consequentemente, à entrada de muitos jovens pobres no mundo do tráfico de drogas para comprarem aquilo a que não teriam acesso pelos meios legais.285

Os jovens do tráfico são cientes de que a meritocracia é uma farsa e de que nunca conseguirão atingir suas metas de consumo por meios lícitos. São imbuídos pela sensação de privação relativa, de que não têm nada a perder, consideram “otário” quem vive de “salário mínimo escravo” e preferem viver como reis, embora cativos no morro e com a perspectiva de que morrerão jovens. Já para os trabalhadores, o trabalho, ainda que mal remunerado, lhes confere uma dignidade e superioridade moral de provedores.286 Entre o trabalho incessante que os consome lentamente e o crime que destrói rapidamente, escolhem o mal menor. Procuram a liberdade na revolta coletiva, como em eventuais saques, na amizade e no lazer, quando este não é criminalizado.287

Na sociedade pós-moderna os freios sociais representados pela família e a religião perdem força. O indivíduo não está mais tão disposto a fazer sacrifícios em nome do coletivo e suas aspirações de realização pessoal se elevam, diminuindo o aspecto “controle” que, conjugado com o aspecto “motivação”, propiciam a criminalidade.288 Diante do contexto sócio-econômico e cultural em que vivem estes jovens, talvez o aspecto controle ainda explique o que impede alguns de entrar no tráfico. As leis de imitação de Tarde não explicam a razão pela qual, em iguais condições, uma pessoa cede à influência do modelo desviante com o qual convive, e outra, nas mesmas circunstâncias, não.289

Muitos dos jovens traficantes compartilham com jovens “otários” e MCs histórias de vida. Alguns são amigos de infância que seguiram caminhos opostos. As identidades são fluidas e nem sempre é fácil distinguir o informal, o marginal e o ilegal, principalmente

285 MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii, op. cit. p. 144. Cf. SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 244; BATISTA, Vera Malaguti; BATISTA, Carlos Bruce; BORGES, Rafael C., op. cit. p.10.

286 Cf. ZALUAR, Alba, op. cit. p. 145-146, 160. Cf. BATISTA, Vera Malaguti; BATISTA, Carlos Bruce; BORGES, Rafael C., op. cit. p. 13, 19.

287 ZALUAR, Alba, op. cit. p. 160. Bandidos e malandros têm em comum o horror ao trabalho, mas se no imaginário popular o malandro é aquele herói idealizado que repele o “batente”, a disciplina do trabalho, as obrigações familiares e sobrevive por ter como armas a malícia, a lábia e a habilidade, o bandido é aquele que optou pelo tráfico ou assalto como meio de vida e possui uma arma de fogo, fonte de seu poder e desgraça ao mesmo tempo (ZALUAR, Alba, op. cit. p. 149-150).

288 YOUNG, Jock, op. cit. p. 25 et seq.

289 SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 211. Cf. VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 178. Um mesmo ambiente social, por exemplo, deu origem, em Vigário Geral, ao sociólogo Caio Ferraz e ao traficante Flávio Negão, amigos de infância. A relação mantida entre os dois era delicada, difícil de ser entendida por quem não fosse de lá. De alguma maneira, os dois representavam a convivência de dois poderes distintos, o intelectual e o militar, e o acordo tácito de poderes garantia espaço para os dois. A utopia de Caio não era derrubar o chefe do tráfico, mas fazer com que em um futuro próximo houvesse mais sociólogos do que traficantes na comunidade (Ibid. p. 168-169, 180).

quando eles vivem próximos.290 Alguns MCs, seja antes, seja depois do sucesso, se envolveram ou tiveram parentes e amigos envolvidos na criminalidade, possuindo intimidade com este mundo. Outros foram executados por criminosos e policiais.291 Traficantes e MCs compartilham algumas características, o que pode gerar uma identidade entre eles, facilitar uma aproximação simbólica e contaminar todos com o mesmo estigma da marginalidade. Ambos se julgam representantes de suas comunidades, onde nasceram e cresceram, são fiéis a certos preceitos morais, valorizam o ethos da masculinidade e o domínio territorial, possuem fama de conquistadores, procriadores e uma forte relação com os santos ou com os orixás.292

Assim como jogadores de futebol, os MCs buscam um caminho rápido e alternativo à rotina estafante do trabalhador “otário” para ganhar dinheiro e prestígio junto às mulheres. Porém, da mesma forma como a vida dos traficantes é curta, a carreira de um MC é efêmera. Neste ponto, mais do que aproximar os jovens do tráfico, o funk pode representar uma alternativa a ele e o fechamento dos bailes, por sua vez, acarretar no aumento da criminalidade por muita gente perder o seu ganha pão. Vários funkeiros afirmaram que por causa do funk abandonaram o tráfico e voltaram à escola, já que “a galera tira sarro de MC analfabeto”.293 De uma forma muito parecida com a dos traficantes,

290 “A facilidade proporcionada pelo espaço da favela para a produção de “identidades plurais” (...) e para a mudança fluída entre as várias identidades (...) deram aos músicos do funk condições para navegarem entre o ´ser bandido` e ´ser MCs`, entre o cantar o cotidiano da favela e exaltar as façanhas do comando que domina a comunidade (...) O estudo das letras do ´proibidão` evidencia a complexidade das práticas sociais na favela, e aponta a proximidade dos estilos de vida nesse contexto com a ilegalidade. Essa ilegalidade, por sua vez, caracteriza o espaço social e engendra subjetividades específicas. A convivência com o informal, com o ilegal, com o arbitrário, com o violento, torna-se pré-condição para construção de ´identidades marginais`. O ´proibidão` é fruto da subjetividade construída nesse contexto, por sujeitos que transitam entre os mundos da legalidade e da ilegalidade, do asfalto e do morro, do ´funk normal` e do ´funk proibido`” (GUEDES, Maurício da Silva. A música que toca é nós que manda: um estudo do proibidão. 2007. Dissertação (Mestrado)-Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2007. p. 93-94). 291 Cf. ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 106, 144, 146, 160-161, 208, 226; MACEDO, Suzana. DJ Marlboro na

terra do funk- Bailes, bondes, galeras e MCs. Rio de Janeiro: Dantes Livraria e Editora, 2003. p. 24, 105;

BATISTA, Vera Malaguti; BATISTA, Carlos Bruce; BORGES, Rafael C., op. cit. p. 20-22. É importante, porém, sob o risco de estigmatizar o funk, levar em consideração que diversos outros artistas, de diversos gêneros musicais distintos, já estiveram, de alguma forma, envolvidos com comportamentos rotulados como criminosos, tais como tráfico e porte de drogas, desacato, lesão corporal, vadiagem e até homicídio.

292 RUSSANO, Rodrigo. "Bota o fuzil pra cantar": o funk proibido no Rio de Janeiro. 2006. 124 f. Dissertação (Mestrado)- Centro de Letras e Artes, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2006. p. 22-23, 37 et seq. Sobre a representações do banditismo romântico na figura dos MCs, cf. Ibid. p. 50 et seq. Um aspecto importante da chefia comunitária é, sem dúvida, a virilidade ou, ao menos, a coragem e conquistas amorosas. À semelhança dos traficantes, os líderes comunitários são grandes reprodutores (ALVITO, Marcos, op. cit. p. 143 et seq.). Rômulo Costa, dono da equipe de som Furacão 2000, é conhecido como “pai”.

293 HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 170, 255-256. Cf. BATISTA, Vera Malaguti; BATISTA, Carlos Bruce; BORGES, Rafael C., op. cit. p. 20, 22. Sobre a efemeridade da carreira de MC, cf. DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 149 et seq. SALLES, Lúcia (Org.). DJ Marlboro: o funk no Brasil - por ele mesmo. Rio de

os MCs de sucesso permanecem na favela, equipando suas casas com milhares de equipamentos de som, televisão etc.294