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Arrastões e subcultura delinquente

O arrastão pode ser melhor compreendido se devidamente contextualizado no quadro teórico da subcultura delinquente. Os jovens participantes, em sua maioria, provêm

87 FRÚGOLI, Heitor. Centralidade em São Paulo. São Paulo: Editora Cortez/Edusp, 2000. p 24-25.

88 MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma antropologia urbana. In: RBCS, vol. 17, n. 49, junho 2002. p.14 et seq.

89 Ibid, p. 21.

90 BORGES, Ana Luiza Mendes; AZEVEDO, Clara de Assunção, op. cit. p. 92-95, 102-103, 109-111. 91 Cf. CARRANO, Paulo César Rodrigues, op. cit. p. 47.

de segmentos desfavorecidos da população, os quais sofrem com a discriminação, o desemprego, o sub-emprego, a falência do sistema educacional e a falta de perspectivas profissionais em uma sociedade consumista. Não foi à toa que o comportamento dos participantes do arrastão foi comparado pela mídia ao dos “rebeldes sem causa”, da “juventude transviada” dos anos 50.

No final dos anos 50, nos EUA, a estrutura social impedia alguns jovens de estratos inferiores de concretizar, pelo menos de forma lícita, as metas sociais impostas pela disseminada ética do sucesso, característica do American Dream. Formaram-se, assim, subculturas criminais como reação ao sentimento de frustração e humilhação. O grupo subcultural possui um padrão de valores próprio e aceita normalmente condutas como jogos de azar, algazarras nas ruas, obscenidades e vandalismo. Por outro lado, em grande parte, a subcultura reproduz alguns valores contidos na sociedade tradicional, porém com um sinal invertido. A lealdade, por exemplo, é valorizada e o traidor é considerado arquiinimigo do grupo. Nisso difere da juventude contracultural, que faz uma “negação mais compreensiva e articulada da sociedade”92.

Se, por uma lado, “funkeiros” rechaçam dogmas da cultura hegemônica, como o culto ao trabalho, por outro acolhem alguns valores da sociedade mais ampla, como o consumismo, o que fica evidente em algumas letras de funk que exaltam marcas de roupas e no gosto dos “funkeiros” em frequentar shopping centers. A percepção de que não realizarão as metas sociais no mundo do trabalho faz com que desloquem suas expectativas para o mundo do consumo, inclusive o do consumo cultural. Não há entre eles diretamente, assim como não havia entre a “juventude transviada dos anos 50”, nenhum projeto de transformação política, como o dos jovens contraculturais dos anos 60, o que não significa que seus atos não tenham uma conotação política importante, conforme será analisado no capítulo 5.93

92 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 245 et seq. A comparação entre os jovens participantes do arrastão e a juventude transviada da década de 50, que participava de conflitos colegiais e quebra-quebras de bondes, por causa de aumentos, e de cinemas, por ocasião da chegada dos primeiros filmes de rock´n´roll, também é feita pelo urbanista Manoel Ribeiro (Apud VENTURA, Zuenir. Cidade partida. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1994. p. 96-97). São conhecidos os versos de Rita Lee que afirmam que “roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”.

93 Enquanto a juventude de classe média pintou os seus rostos em 1992 para pedir o impeachment do Presidente Collor e foi saudada por isso, os funkeiros foram tratados pela mídia como rebeldes sem causa que exultavam com a sádica possibilidade de ver os moradores da Zona Sul em pânico nas praias (ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 126).

Os grupos subculturais ainda têm como referência os valores da sociedade mais ampla. Atacam justamente o que é valorizado pela sociedade, como a paz, o silêncio, a tranquilidade, a limpeza e a ordem. De acordo com Shecaira,

As condutas dos delinquentes são corretas, conforme os padrões da subcultura dominante, exatamente por serem contrárias às normas da cultura mais gerais (...) Algumas condutas que significariam degradação e desonra em um grupo convencional servem para engrandecer e elevar o prestígio pessoal e o status de um membro de um grupo delinquente. Este negativismo não tem um grande raio de alcance. É apenas um hedonismo com interesse de mostrar o rechaço deliberado dos valores correlativos da classe dominante.94

Muitos pichadores afirmam protestar através da pichação, mas poucos sabem dizer claramente contra o quê. Se essa forma de protesto serve para mostrar como as coisas estão erradas, também se torna uma maneira de justificar as ações dos pichadores, que alegam ser um mal menor e um bode expiatório em um país em que todos praticam crimes.95 As mensagens políticas nas pichações da época da ditadura militar deram lugar a garranchos indecifráveis para quem não faz parte desta subcultura.96 É própria, aliás, de toda subcultura a existência de gírias que geram o reconhecimento mútuo e funcionam como barreira para quem é de fora. Em uma análise superficial, os pichadores teriam supostamente apenas o objetivo de sujar a cidade. Um olhar etnográfico mais apurado, porém, revela que eles possuem códigos de conduta, como, por exemplo, o de nunca pichar em cima da pichação alheia ou residências que contribuem com entidades assistenciais.

Além da polaridade negativa, os atos subculturais são caracterizados pelo não- utilitarismo e pela maliciosidade ínsita à conduta.97 Ao sair dos bailes e estádios promovendo arrastões, quebra-quebras e depredações, a intenção não é de ganho patrimonial ou qualquer outra de cunho utilitário, conforme já foi analisado. O que motiva os atos de vandalismo parece ser muito mais o gosto pela “zoação”, a aventura, a adrenalina de se expor ao perigo. Por outro lado, há um prazer em causar o desconforto alheio, como fica patente no depoimento de um dos participantes do arrastão do Arpoador,

94 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 253. 95 PEREIRA, Alexandre Barbosa. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. 2005. Dissertação (Mestrado)-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 112.

96 CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: Editora SENAC, 2001. p. 140; SHECAIRA, Sérgio Salomão, op. cit. p. 258-259.

de 16 anos, que admitiu ter feito aquilo “de sacanagem, pra arrepiar os bacanas, mostrar que a praia não é só deles”.98

Os atos subculturais só têm valor para seus autores por lhes assegurar status dentro de seu grupo subcultural e entre grupos rivais. O desafio é atingir metas proibidas e inatingíveis aos seres comuns. Quanto maior a façanha, maior o reconhecimento. Muitos adolescentes transgridem as normas não para burlar a lei, na esperança de escapar das consequências de seus atos, mas, ao contrário, para que a repressão corra atrás deles e assim os reconheça como pares dos adultos. A fase da adolescência é tradicionalmente uma fase de afirmação da personalidade e, não raras vezes, de revolta. Sob determinadas condições de insegurança e de ausência de crenças morais, esta revolta induz algumas pessoas à prática de atos de vandalismo e outros crimes. Nessas condições, a delinquência poderia ser uma sólida vocação da adolescência, tanto que pouquíssimos adolescentes se tornam propriamente delinquentes.99

Com efeito, Matza destaca como principais formas de tradições rebeldes juvenis a delinquência, a boemia e o radicalismo:

No caso da delinquência, um dos aspectos mais importantes é o culto da proeza. Seus adeptos buscam incansavelmente excitações, sensações, emoções, estabelecendo como estilo de vida apropriado à aventura, em contraponto aos padrões rotineiros de comportamento. Infringir as leis é o que torna, muitas vezes, uma atividade atraente. Além disso, a proeza é também realizada com o intuito de ter acesso fácil à riqueza e ao sucesso rápido expressando uma rejeição ao metodismo e à rotina implicados na trajetória da escola ao trabalho. O dinheiro é valorizado pelo que ele pode comprar, ou seja, o delinquente usa o dinheiro de forma perdulária, em gestos de prodigalidade e em consumo conspícuo. Outro aspecto próprio da delinquência é o comportamento violento, associado à masculinidade e ao ethos guerreiro. A delinquência é definida pelo código legal e envolve dois aspectos: furtos, assaltos e vandalismo, e a adoção de práticas consideradas inadequadas como o fumo, a vagabundagem, jogo, bebida, liberdade sexual.100

Estas observações podem ser aplicadas, sem grandes dificuldades, aos pichadores, um grupo subcultural criminalizado, que apresenta o gosto pela adrenalina, o alcance de

status dentro do grupo por meio de proezas, o rechaço aos policiais e à sociedade como um

todo, bem como o flerte com a criminalidade. Entre os pichadores, a criação dos riscos

98 VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 63; CARMO, Paulo Sérgio do, op. cit. p. 168.

99 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 250 et seq. 100 QUEIROZ, Tereza Correia da N. Culturas juvenis, contestação social e cidadania: a voz ativa do hip hop. In: ALVIM, Rosilene; JUNIOR, Edísio Ferreira; QUEIROZ, Tereza (Org.). In: (Re)construções da

juventude: cultura e representações contemporâneas. João Pessoa: Editora Universitária-PPGS/UFPB, 2004.

produz excitação. Aquele que pratica a maior proeza e enfrenta os maiores desafios, como pichar em locais difíceis, recebe o maior reconhecimento dentro do grupo. Desafiar a polícia é apontado por eles como um grande fator de motivação para a prática da pichação. Ao tratar os pichadores de maneira violenta em suas abordagens, a polícia acaba por tornar esta opção pela criminalidade ainda mais interessante.

Entretanto, ao invés da noção de delinquência, o melhor termo para analisar os pichadores seria o da transgressão, uma vez que há a valorização de uma postura marginal presente em diversos momentos de seu cotidiano e não apenas no ato de atentar contra a propriedade alheia: ao passar debaixo da catraca para não pagar o ônibus, no consumo de drogas, em furtos ou em ações mais graves, como o narcotráfico e o assalto à mão armada.101

Assim como os pichadores, as galeras funk não empreendem o enriquecimento de seus membros através de práticas ilícitas. Se os membros das galeras praticam atividades ilícitas, o fazem de maneira transitória e intermitente, mais próxima da “deriva” da qual saem com o crescimento, do que da delinquência assumida e desejada como meio de vida.102

101 PEREIRA, Alexandre Barbosa, op. cit. p. 110-112. A pesquisa de Minayo et alii constatou que a pichação é um lazer primordialmente masculino. Na pesquisa domiciliar uma proporção maior de jovens de classe média do que de classe popular afirmou participar desses grupos (4,1% contra 2%, respectivamente). Esse dado é confirmado em outra questão em que 4,6% dos jovens de classe média contra 3% de classe popular disseram que se reúnem com sua turma para pichar muros e patrimônios. A pichação não se reduz a “funkeiros”, mas vários deles explicitaram que apreciam pichar os muros da cidade e fizeram associação entre as duas atividades. Da mesma forma que nos bailes, grupos rivalizam a capacidade de transgredir, de assumir riscos e de acumular assinaturas. Consideram que pichar longe do bairro, em lugares bem altos e arriscados confere fama. Quando apanhados, costumam sofrer experiências de violência tanto por parte da polícia como de seguranças particulares (MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii. Fala, galera: juventude, violência e cidadania no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p. 59).

102 ZALUAR, Alba. Gangues, Galeras e Quadrilhas: globalização, juventude e violência. In: VIANNA, Hermano (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. p. 48-49. Para David Matza, a delinquência juvenil teria um caráter intermitente e transitório, já que “o compromisso dos jovens com as ´subculturas` que requerem o desrespeito à lei não é nem uma poderosa coação nem uma obrigação” (Apud Ibid. p. 53-54). De acordo com Alexandre Pereira, o grande motivo que faz com que os jovens parem de pichar “é o aumento de determinadas responsabilidades, o que para muitos significa o ingresso na vida adulta. Existem os que param por pressão das namoradas, ou quando se tornam pais e precisam trabalhar para sustentar os filhos ou porque têm que ajudar a mãe com as despesas de casa. Mas há também aqueles que entram definitivamente na criminalidade e muitas vezes acabam sendo presos. Este último fator também representa a passagem para a vida adulta de alguns deles que já alcançaram a maioridade penal (...). Podem ainda surgir outros interesses que façam com que a pixação (sic) perca um pouco o sentido para alguns destes jovens. O empenho em uma outra forma de manifestação cultural é um deles” (PEREIRA, Alexandre Barbosa, op. cit. p. 114).