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Arrastões, espaço público e tolerância zero

A repressão aos arrastões que ocorrem nas praias, nas saídas de estádios de futebol e de bailes funk, para ser compreendida, deve ser devidamente articulada às chamadas políticas urbanas de tolerância zero, inspiradas na teoria das janelas quebradas, divulgada, por sua vez, em um artigo de James Q. Wilson e George Kelling, em 1982. Segundo tal teoria, o crime mais grave é resultado de um continuum de pequenas desordens e incivilidades, que, se toleradas, geram a sensação de abandono do espaço público e, consequentemente, de anomia. Se janelas quebradas em um edifício não são consertadas, as pessoas que gostam de quebrar janelas terão a impressão de que ninguém se importa com seus atos de incivilidade e continuarão a quebrar mais janelas.

Para evitar que a sensação de impunidade em relação às infrações menos graves crie um ambiente de desamparo e anomia, as políticas de tolerância zero atribuem ao Poder Público o dever de punir com rigor os distúrbios contra a “qualidade de vida”, pequenas desordens e incivilidades do cotidiano praticadas no espaço público, como atos de vandalismo, brigas entre vizinhos, pichações, violações de leis de trânsito e de toques de recolher, etc.81 Os primeiros efeitos desta política republicana em Nova York fizeram com que em um só trimestre de 1994 subisse em 38% o número de prisões de mendigos, bêbados e limpadores de pára-brisas. Promoveu-se um “colossal arrastão punitivo” contra a prostituição, a mendicância, as festas de rua, guardadores de carro, baderneiros em geral, pessoas que pulavam as catracas do metrô e que faziam barulho excessivo na rua.82

Ao invés de investir em políticas públicas de combate à pobreza e de revalorização de um espaço público democrático em que a integração comunitária seja estimulada, as políticas de tolerância zero optam por um caminho excessivamente repressivo, ainda que não tenham apresentado resultados convincentes que justifiquem sua adoção. A necessidade de se estar atento em um espaço público, democrático, de “convivência de identidades heterogêneas que compartilham igualdades de direito” não corrobora o

81 BELLI, Benoni, op. cit. p. 64; SHECAIRA, Sérgio Salomão. Tolerância Zero. In: Revista Internacional de

Direito e Cidadania. n. 5, v. 2, 2009. p. 166 et seq.; BATISTA, Vera Malaguti. Intolerância dez, ou a

propaganda é a alma do negócio. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, 1997. p. 219.

82 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 98.

discurso daqueles que identificam nas ruas da cidade “apenas a presença da violência, do crime e da morte eminente”.

Os toques de recolher para menores a partir de determinado período da noite, por exemplo, parecem pressupor que a violência está condicionada a horários, ou que se reduziriam a ingestão de drogas e bebidas alcoólicas forçando o recolhimento dos jovens. Essas iniciativas, na realidade, “instauram um movimento de legalidade heterônoma que, simultaneamente, se afasta da orientação democrática de estímulo à cidadania responsável e desconfia da autonomia e capacidade das escolhas dos jovens na cidade”.83

As políticas de tolerância zero, assim, reprimem seletivamente aqueles acusados de “privatizar”, degradar o espaço público e gerar a sensação de insegurança que fez com que as camadas médias e altas da população se enclausurassem em seus enclaves. Os principais alvos da teoria das janelas quebradas são os excluídos da economia capitalista, os não- consumidores, o sub-proletariado que vive do mercado informal e representa uma ameaça, aqueles que antes eram objeto do assistencialismo ou de políticas reabilitadoras e que hoje são considerados irrecuperáveis e, desse modo, devem ser de alguma forma neutralizados.

A luta contra a insegurança e a “perturbação da ordem pública”, pela restauração do sentimento de ordem, pela aplicação da lei ao pé da letra e pela moralização do comportamento das classes inferiores é um pretexto para uma política de limpeza de classe dos espaços públicos da cidade. Mais do que restabelecer a qualidade de vida dos nova- iorquinos, as políticas de tolerância zero buscam restabelecer a qualidade de vida dos nova- iorquinos de classe média e alta, as que ainda votam, pois estas supostamente sabem se comportar em público. O “policiamento intensivo” visa grupos e não delinquentes isoladamente.

As suspeitas são baseadas no vestuário, no comportamento, no modo de ser e, principalmente, na cor da pele. Muitas detenções são efetuadas sem motivo e as queixas contra abuso policial aumentam consideravelmente entre a população negra, que perde em “qualidade de vida” e segurança, enquanto os nova-iorquinos brancos se consideram beneficiários e louvam essa política repressiva.84

Verifica-se que a relação das elites com o espaço público é bastante ambígua. Por um lado, há aversão ao convívio plural, democrático e heterogêneo da rua moderna e resistência quanto a se submeter a regras cívicas básicas de convivência que afrontem seus

83 CARRANO, Paulo César Rodrigues, op. cit. p. 48.

84 BELLI, Benoni, op. cit. p. 68; WACQUANT, Loïc. A globalização da “Tolerância Zero”. In: Discursos

privilégios de classe. A forma como os jovens de classe alta lidam com as regras de trânsito e as convenções dos condomínios fechados é emblemática.85 Por outro lado, nota- se, por trás das demandas por tolerância zero, uma vontade das camadas altas e médias de reconquistar o espaço público das ruas, em uma atitude nostálgica. A retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público é o

instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda- a que se vê, a que causa incidentes e problemas no espaço público, alimentando assim um sentimento difuso de insegurança ou mesmo simplesmente de tenaz incômodo e de inconveniência. Facilitando o amálgama com a imigração, os delinquentes (reais ou imaginários), os sem-teto, os mendigos e outros marginais são assimilados como invasores estrangeiros, elementos alógenos que devem ser expurgados do corpo social, o que acaba trazendo resultados eleitorais positivos nos países varridos por fortes correntes xenófobas.86

O arrastão de Ipanema promovido por “invasores” teve um grande impacto, entre outros motivos, porque aconteceu em um local onde não era esperado que acontecesse, ou seja, em uma área nobre da cidade do Rio de Janeiro, não degradada, ocupada por membros das classes abastadas, em plena luz do dia. A reconquista do espaço público pelas classes médias e altas muitas vezes vem dissociada da busca por um espaço heterogêneo e democrático. O que se observa nas políticas de valorização das regiões centrais das metrópoles é muito mais um esforço higienista em varrer a pobreza perigosa para fora dos espaços públicos. O centro é encarado como um lugar estratégico e alvo de especulação imobiliária. A iniciativa privada pressiona o Poder Público para que os espaços públicos centrais, degradados por mendigos, prostitutas e toxicômanos, sejam resgatados e destinados, por meio de incentivos fiscais, a projetos comerciais e residenciais de classe média e alta, revalorizando-se.

Por um lado, observa-se a repressão a movimentos sociais de sem-tetos, a construção de rampas antimendigo, a diminuição do número de banheiros públicos, a vedação do acesso à água potável, a proibição de bebidas alcoólicas, o policiamento ostensivo, o cercamento de parques e uma série de outras medidas que visam a tornar os espaços públicos centrais inóspitos para membros das classes baixas. Por outro lado, observa-se nesses espaços a instalação de bares, cafés, salas de concerto e o fomento de

85 CALDEIRA, Teresa, op. cit. p. 275 et seq., 321-323. 86 WACQUANT, Loïc, op. cit. p. 113.

eventos culturais que tenham como público-alvo pessoas de classes médias e altas.87 Paradoxalmente, se invoca a “privatização” do espaço público por pobres para legitimar sua “privatização” por ricos.

Em uma visão limitada a uma perspectiva sociológica, surge inevitavelmente a impressão de que as pessoas, e mais precisamente os jovens de classes sociais diferentes, estão isolados e fragmentados na metrópole, uma vez que a rua, o espaço de encontro, foi abandonada. Porém, adotada uma perspectiva de perto e de dentro, própria da etnografia, fenômenos não percebidos dentro da perspectiva macro chamam a atenção. A dicotomia público-privado é muito pobre e pouco segura para explicar a metrópole pós-moderna. Por outro lado, a rua não pode ser considerada o único espaço público de convivência da cidade. A partir dessas considerações é que Magnani formula novas categorias de sociabilidade na cidade, como as de pedaço.88

Não se pode mais pensar, como as políticas de tolerância zero fazem, a dicotomia público-privado por meio da dicotomia rua-casa. O pedaço é justamente o espaço territorial demarcado que se torna “ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações”. Trata-se do “espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade”.89 Em alguns

pedaços do bairro da Vila Olímpia, em São Paulo, colocar o som do carro no volume

máximo ou passar com o carro cantando pneu, por exemplo, é uma forma de se comunicar, reconhecer iguais, transmitir mensagens e valores, estabelecer relações, conferir status, etc.90 A interrupção do trânsito, longe de significar um transtorno, representa algo positivo, pois possibilita um tempo maior para a paquera.91