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O aspecto lúdico do baile de corredor

DE 07 (SETE) ANOS DE RECLUSÃO E 21 (VINTE E UM) DIAS MULTA, NO VALOR MÍNIMO LEGAL, A SER CUMPRIDA NO REGIME

3.4. O aspecto lúdico do baile de corredor

É preciso salientar que mesmo o baile de corredor não é um território sem lei. A invasão do território do “alemão” é quase sempre controlada pelos seguranças que, além da enorme massa física e da habilidade em artes marciais, contam muitas vezes com armas brancas como instrumento de intimidação. Esses “mediadores do combate” procuram evitar que qualquer dos meninos seja arrastado para o território das galeras rivais. Introduzem-se constantemente entre os lutadores para separá-los e realinhá-los novamente no corredor quando passam dos limites ou não respeitam as regras. Dois ou três seguranças supervisionam 50 a 100 garotos em um baile, sem serem atingidos por um soco sequer.

188 VIANNA, Hermano, op. cit. p. 44-45, 81. O DJ Marlboro chegou a acatar essas recomendações da equipe de som, mas as brigas continuaram e o baile voltou, pouco a pouco, a ser o que era antes (Ibid. p. 81-82, 85). Uma música teria provocado a aparição do diabo no baile do Clube Vera Cruz, ficou conhecida como a música do incorporado e os DJs de todos os bailes da capital foram devidamente orientados para não tocá-la (CARRANO, Paulo César Rodrigues, op. cit. p. 68). Cf. também HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 151. 189 VIANNA, Hermano, op. cit. p. 45, 84-86; ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 190-191; SALLES, Lúcia (Org.).

DJ Marlboro: o funk no Brasil - por ele mesmo. Rio de Janeiro: Mauad, 1996. p. 43; HERSCHMANN,

Micael, op. cit. p. 152-153. Manoel Ribeiro sustenta que é com “bico, luz e som” que se administra um baile funk: acendendo a luz, mudando o ritmo do som e usando a conversa (Apud VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 223).

Os seguranças são muito respeitados pelas galeras, não só por sua força e truculência, mas principalmente porque ninguém quer ser descartado do jogo. Muitos esperam por aquele momento toda a semana. Quando eventualmente um dos garotos não respeita as regras e é arrastado para fora do baile pelos seguranças, entra em cena um dos líderes das galeras, em geral o mais diplomático e carismático, para negociar com o segurança sua permanência no baile. Ele e o líder mais destemido do grupo determinam o momento de a galera avançar ou recuar obedientemente, o momento de “zoar” ou não, seja no baile, ônibus, praia ou outros lugares.190

A revista na entrada do baile é muito minuciosa para impedir que as galeras entrem com armas que possam causar problemas mais sérios durante as brigas.191 No fundo, tudo parece ser um grande jogo. As paredes do corredor são formadas por pessoas de mãos dadas ou braços entrelaçados. O jogo consiste em desferir golpes rápidos no outro lado, com os pés ou com as mãos, de tal maneira que o combatente possa voltar logo ao seu campo. Se escorregar, cair no território inimigo e não for arrastado a tempo, ele corre o risco de ser trucidado.

Usando os pés, o combatente terá sempre a proteção dos companheiros, seguro pelos braços. Já os golpes de mão são mais perigosos, pois exigem desprender-se dos aliados. Mais ousado ainda é penetrar no território inimigo e sequestrar alguém que será espancado ou humilhado no território de base. Cabe à galera que teve o seu integrante sequestrado mobilizar-se para o resgate. Neste jogo em que a violência é ritualizada, cada

190 HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 136-138, 173-174; VIANNA, Hermano, op. cit. p. 36; CECCHETTO, Fátima, op. cit. p. 99-100, 107; DAYRELL, Juarez, op. cit. p. 128. Aparentemente, existem poucos níveis hierárquicos na galera. Em geral, toda galera tem dois líderes com diferentes áreas de atuação. O primeiro é uma espécie de “embaixador”, representante oficial da galera junto aos organizadores do baile e outras galeras. Sua função é negociar a integração nos bondes, articular, junto aos organizadores, a participação da galera nos festivais de galeras e intervir de modo a evitar ou minimizar a penalização do grupo ou de um membro dele em caso de infração nos bailes. Já o segundo líder é uma espécie de “grande guerreiro”, que impõe respeito nos embates que possam ocorrer nos bailes e na cidade. Nos bailes de “corredor”, sua atuação é mais marcante e é ele quem decide o posicionamento de cada membro no confronto. Se ele for ferido, assume temporariamente a sua posição o integrante mais forte ou o mais velho do grupo para garantir que o grupo não venha a ter o seu prestígio abalado junto às galeras rivais (HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 167-168) Alguns se referem ao chefe como o dono da galera, diretor e comando de frente (GUIMARÃES, Eloísa, op. cit. p. 80-81).

191 Vianna informa, contudo, que não existia, até o final de 86, nenhum tipo de fiscalização no corredor que vai do bar para a pista de dança. As garrafas podiam ser transportadas livremente e podiam servir de armas (VIANNA, Hermano, op. cit. p. 75-76). Minayo et alii relatam que as armas usadas para o ataque nos bailes de corredor são pedaços de canos, de madeira, correntes e, segundo dizem, “agora arrumaram até um aparelhinho de choque” (MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii, op. cit. p. 57). Já Herschmann, em sua pesquisa de campo, no final dos anos 90, constatou que há o cuidado para que nada se transforme numa arma nas mãos dos garotos. Nenhum objeto de vidro, como uma garrafa, era deixado no balcão do bar. Todos bebiam em copos de plástico (HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 140).

um dos membros precisa do apoio da sua galera. Há fortes laços de solidariedade e companheirismo permeando a conduta destes grupos.

Durante muito tempo alguns indivíduos simulam a situação de briga, sem que a briga realmente aconteça. Quando os seguranças interrompem a luta ao se postarem entre as galeras, elas passam a se provocar, dando chutes no ar e refugando. A violência, em muitos aspectos, longe de representar um fator de afastamento da participação no baile, funciona como um estimulante. Nessa luta não se usa qualquer tipo de arma, a não ser as mãos vazias e os pés calçados de tênis. Talvez isso explique o fato de que, mesmo após horas de combate, não seja comum ver-se um combatente sangrando.192 Talvez até porque saibam que há um controle, uma “administração” da briga, esses jovens se entreguem tão plenamente ao jogo, à luta.

Além disso, na ritualização da violência nos bailes funk, os grupos não visam à eliminação propriamente do inimigo, cuja permanência parece garantir o clima de excitação e competição, mas o reconhecimento de um território. A participação no jogo compensa um cotidiano que, em geral, os exclui.193 Tudo é muito arriscado, mas extremamente excitante. O ritual de embate pode ser uma importante válvula de escape para estes jovens e ser comparado a uma espécie de jogo perigoso, a uma modalidade de esporte radical dos segmentos privilegiados da população da cidade, como o kickboxing ou o jiu-jítsu.194

Tal como nesses esportes, a violência poderia ser regulamentada para tornar-se segura e não ferir ninguém. As lutas aconteceriam em uma arena maior e os lutadores contariam com equipamentos de proteção.195 Pode-se até afirmar que essa violência tornar- se-ia, juridicamente, um exercício regular de direito, excludente de ilicitude. Resta saber se o combate teria a mesma graça para as galeras, dado que o “gostinho pelo proibido” faz parte tradicionalmente de determinadas subculturas.

Não se pode esquecer que a capoeira, mistura de luta e dança dos ex-escavos negros, foi criminalizada no Código de 1890 e que as brigas dos bailes de corredor encontram muitas semelhanças com ela. Ambas são coreografias violentas e ritualizadas.

192 VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 122-123; CARRANO, Paulo César Rodrigues, op. cit. p. 64; HERSCHMANN, op. cit. p. 136-138, 159-160.

193 HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 174-175.

194 Ibid. p. 142. Depois das brigas, vários jovens chegaram excitados, demonstrando um prazer visível ao comentar casos de chutes e murros dados ou recebidos. Não deixa de ser uma forma de eles descarregarem emoções, além de reproduzirem uma cultura masculina baseada na valentia e na coragem (DAYRELL, Juarez, op. cit. p. 141).

Ao contrário do que ocorre nas brigas de hooligans, na fisionomia dos “jovens guerreiros”, que extravasam a agressividade, não há ódio, mas satisfação, excitação, sorrisos ou um ar de deboche. No fundo, eles estão “brincando”. O humor é um aspecto lúdico bastante ativo nos bailes. O “grotesco” é uma referência estética fundamental. Não basta enfrentar a galera rival, é preciso “zoar” dela. 196

Os jovens comentam que durante as brigas sentem medo, mas o momento de espera pelo conflito gera prazer e serve como pano de fundo para as “paqueras”. As agressões frequentemente sofridas deixam cicatrizes, mas não desestimulam o retorno dos grupos. Questionados se tal situação vale a pena, as respostas são afirmativas, enfatizando que “quanto mais apanhar, mais você vai querer brigar” e que são “viciados em briga”. A excitação da violência suplanta o temor das dores físicas. A “falta de outras opções” de lazer alegada pelos jovens se junta a um sentimento de aventura próprio da idade, que se escoa para uma brincadeira muito agressiva.197

Muitos abandonam suas namoradas e vão aos bailes para brigar. Para algumas galeras e outros tantos grupos juvenis subculturais, as brigas representam uma forma de curtir, uma grande aventura, fonte de emoção e de excitação inerentes à adolescência.198 O prazer do confronto e a emoção de ver a cara do “alemão” não se encontram nos bailes que não têm briga. Para muitos desses jovens, baile sem briga e “alemão” não tem “zoação” nem graça.199 Se essas “brincadeiras”, danças e jogos são violentos, deve-se considerar que

196 HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 136, 159-160; VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 125. Para o DJ Marlboro, crítico dos bailes de corredor, “a imprensa não entende o que os funks chamam de embate. Durante o baile, há um contato físico muito forte entre os que vão para a pista dançar. É um contato que obedece a certas regras e que não é, de forma alguma, violento. É uma coisa parecida com a capoeira, onde não se vê raiva e sim todo um movimento marcado pela ginga e pela alegria” (ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 132). Algumas músicas do baile sugerem uma violência ritual. É o caso de uma que lembra o toque do berimbau do jogo da capoeira. Logo nos primeiros acordes os jovens, muitos verdadeiramente praticantes da capoeira, iniciam a ginga (CARRANO, Paulo César Rodrigues, op. cit. p. 67-68).

197 MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii, op. cit. p. 57-58. Os jovens de classe média que colocaram fogo em um mendigo declararam que queriam apenas fazer uma “brincadeira”.

198 GUIMARÃES, Eloísa, op. cit. p. 185-186. MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii, op. cit. p. 57. 199 CECCHETTO, Fátima, op. cit. p. 97, 108. Cf. ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 164; HERSCHMAN, Micael,

op. cit. p. 142. “O que ocorre dentro do baile- os limites e a ausência de limites que definem a economia da

guerra – é tratado como recurso legítimo e motor do desejo de lá estar e do prazer (para alguns) em ir de bonde. Para outros, bater e apanhar são situações que fazem parte de um jogo, cujas regras são definidas pela origem da galera, pelo rosário de alianças que uma espécie de adscrição territorial implica, pela fidelidade aos amigos da galera, pela imagem e fama daqueles que ‘têm disposição’ entre as meninas e, sobretudo, pelo prazer em participar do ‘baile de briga’. Mais uma vez o prazer de zoar” (CUNHA, Olívia M. G. “Conversando com Ice-T: violência e criminalização do funk”. In: HERSCHMANN, Micael (Org.).

Abalando os anos 90: funk e hip-hop – globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

o jogo não se constitui como um espaço social de suspensão da realidade cotidiana, tal como a atividade lúdica é apresentada nas análises idealistas. O jogo nasce da realidade das condições de vida que traduzem o mundo no presente (Elkonin, 1985). Nas práticas culturais da juventude se pode compreender que determinadas relações, consideradas simplesmente como violentas, são verdadeiros jogos rituais referidos às condições de vida social dos jovens que os põem em movimento. As brigas entre as galeras nos bailes funk não se constituem como uma esfera dissociada do ritual de brincadeira da festa. É nesse sentido que se pode afirmar que os jovens participantes dos bailes funk não apenas oscilam entre o lúdico e o violento (Ceccheto, 1997), mas vivem uma realidade de violência social que os impulsionam para a realização de também violentas formas lúdicas de sociabilidade.200

Ainda que as galeras não estejam necessariamente vinculadas às quadrilhas, no baile percebe-se “a representação simbólica de processos complexos que organizam a vida social das favelas, segundo uma lógica antagônica, territorial e guerreira”, uma recriação dos códigos de violência no âmbito do lazer e da sociabilidade juvenil.201 A violência cotidiana que toma conta da periferia do Rio de Janeiro imprimiria sobre esses jovens um modelo violento de se divertir. Os conflitos do baile são “uma maneira de o cara aparecer”, de “ser alguém”.202

O lazer é um momento privilegiado para os jovens afirmarem laços de amizade, desenvolverem sua criatividade e confrontarem-se consigo mesmos. Cabe ao Poder Público investir em alternativas de lazer para a juventude das periferias e favelas, cujas possibilidades de entretenimento é são muito mais escassas, pobres e controladas (pela igreja, família e polícia). Para muitos desses jovens, “lazer e violência se misturam em proporções elevadas, criando-se assim uma cultura de inter-relação humana e social perpassada muito mais pela medição de força física do que pelo cultivo do diálogo”.203

Um dos objetivos das galeras, gangues e várias outras organizações juvenis é justamente explicitar a violência dissimulada do sistema.204 Uma sociedade violenta dissemina uma cultura da violência, que se reflete em seus jogos, danças e “brincadeiras”.

200 CARRANO, Paulo César Rodrigues, op. cit. p. 65. 201 CECCHETTO, Fátima, op. cit. p. 114.

202 GUIMARÃES, Eloísa, op. cit. p. 183.

203 MINAYO, Maria Cecília de Souza et alii, op. cit. p. 60. Muitos rapazes assumem a violência nas relações interpessoais e entre grupos rivais como normais, evidenciando que o seu exercício é parte de sua vida e de sua dinâmica social (Ibid. p. 183).

204 Ibid. p. 103. “Nessa cultura da violência convém lembrar que ela não se limita apenas ao emprego da força física, mas também à possibilidade ou à ameaça de empregá-la. Deve-se associar também a violência à ideia de poder, à possibilidade de alguém impor sua vontade ou intenção sobre o outro. Assim, o aumento da violência da nossa sociedade não está hoje apenas na desigualdade econômica, mas também se alia ao esvaziamento de conteúdos culturais. Isoladamente, a pobreza não pode ser considerada a única responsável pela perda de referências éticas que sela a convivência social entre grupos e indivíduos” (CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: Editora SENAC, 2001. p. 213). A violência nos bailes é muito mais resultado, e não causa, da violência social (Ibid. p. 220).

A violência no futebol, por exemplo, apenas dá visibilidade a um processo geral de desagregação social mais ampla, no qual todas as instituições brasileiras estão mergulhadas e que cria condições propícias à violência. Na segunda década do século XX, os negros não podiam esbarrar nos jogadores brancos, sob pena de os outros jogadores e até policiais baterem no infrator, enquanto os brancos eram, no máximo, expulsos de campo. Esta redução dos espaços, subproduto de sua situação social, obrigou os negros a jogarem com mais ginga, evitando o contato físico e inventando o drible, um futebol que “lembra passos de dança e fintas de capoeira”.

No passado, as torcidas eram “instituições familiares e coreográficas” carnavalizadas, que, apesar de embates esporádicos, marcavam sua atuação com cânticos, ritmos, alegorias e festejos. As torcidas organizadas violentas surgiram na década de 1970, auge da ditadura militar, seguindo as doutrinas e os padrões de organização do militarismo então vigente: visão de mundo intolerante, competitividade selvagem, antagonismo repressor, invasão territorial, eliminação das diferenças pelo uso da força. Os confrontos passaram a agudos, programados, generalizados e institucionalizados.

Estas torcidas se estruturam em “pelotões”, “destacamentos”, “esquadrões”, “tropas-de-choque”, “comandos”, “exércitos”, “facções de gladiadores” e muitas são treinadas em artes marciais. Seus líderes são chamados “capitães”, “tenentes”, “sargentos”. Seus cantos são cantos de guerra. Seus símbolos, comportamentos grupais e relações de poder hierárquicas são militares. Dividem as grandes cidades em territórios dominados, cujas fronteiras são demarcadas por grupos de ação e força. A violência estrutural e a crise permanente da década de 90, por sua vez, potencializaram a emergência de atitudes antis- sociais e acrescentaram à história das torcidas organizadas uma infraestrutura bélica, com tecnologia avançada na fabricação de armamentos, bem como a articulação com setores marginalizados da vida urbana brasileira.205