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O financiamento e a segurança dos bailes de comunidade.

DE 07 (SETE) ANOS DE RECLUSÃO E 21 (VINTE E UM) DIAS MULTA, NO VALOR MÍNIMO LEGAL, A SER CUMPRIDA NO REGIME

4. OS BAILES DE COMUNIDADE E O “PROIBIDÃO”

4.1. O financiamento e a segurança dos bailes de comunidade.

Os bailes de comunidade, realizados em quadras, clubes e terrenos dentro das favelas ou bairros populares, também são conhecidos como “bailes do bicho” ou “bailes do contexto”, termos que remetem ao tráfico.255 Por serem geralmente gratuitos, pelo menos para as mulheres, ou terem seu preço bastante acessível, geraram-se suspeitas de que são financiados pelo tráfico local. Empresários e DJs do mundo funk alegam que tais bailes são financiados pela própria comunidade, seja pelos barraqueiros interessados na venda de bebidas e comidas, seja pela associação de moradores, e dizem também que se há traficantes vendendo drogas, basta colocar policiamento nos bailes para coibi-los.256 Quando os donos de equipes de som e DJs são pressionados a esclarecer as acusações de que são pagos por traficantes interessados em criar um ambiente que estimule o consumo de drogas, respondem que não cabe a eles investigar se a origem desse dinheiro é lícita ou ilícita, mas sim à polícia.

Por ser uma das únicas alternativas de lazer da juventude pobre e favelada, é natural que as associações de moradores tenham interesse em ajudar na realização dos bailes de comunidade, ainda mais porque tais bailes constituem um espaço de sociabilidade importante e muitos MCs da comunidade só têm espaço para cantar suas músicas nesses palcos, elevando a auto-estima da comunidade como um todo. Entretanto, há denúncias de que muitas associações de moradores das comunidades do Rio de Janeiro foram cooptadas pelo tráfico e constituem o seu canal lícito de atuação.

Por trás das acusações de condescendência com o tráfico, pode haver simplesmente a necessidade de a associação dos moradores conviver e negociar com o traficante, um relevante ator político do morro. Os líderes comunitários são os mediadores mais

255 VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 83, 111; VENTURA, Zuenir. Cidade partida. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1994. p. 61. O termo “comunidade” notabilizou-se especialmente com os movimentos eclesiais de base dos anos 70 e foi adotado para se contrapor ao estigma do termo “favela” e fortalecer o sentido comunitário do trabalho desenvolvido (HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. p. 168- 169, 181). Cf. também CECCHETTO, Fátima; FARIAS, Patrícia. Do funk bandido ao pornofunk: o vaivém da sociabilidade juvenil carioca. In: Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, ano 4, número 2. Rio de Janeiro: PPGCS/UERJ, 2002. p. 61; CUNHA, Olívia M. G. Conversando com Ice-T: violência e criminalização do funk. In: HERSCHMANN, Micael (Org.). Abalando os anos 90: funk e hip-hop – globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 106.

importantes de diversas relações: com os moradores, com os políticos, com as autoridades, com o tráfico, com a imprensa, com ONGs. Para ser um mediador, certamente é preciso ter algum tipo de vínculo com todos os lados.257 Alguns presidentes de associações de moradores têm vínculos de amizade e/ou parentesco com traficantes e intermedeiam as relações entre o tráfico e a polícia, fazendo os “acertos”.

O fato de a associação de moradores depender da palavra final do chefe do tráfico para realizar suas funções não indica necessariamente conivência ou uma aliança, mas simplesmente uma realidade que se impõe, independentemente da vontade da diretoria da associação. A política assistencialista adotada tradicionalmente pelos traficantes para se legitimarem perante a comunidade e efetuada muitas vezes em esforço comum com a associação dos moradores torna essa relação ainda mais ambígua e “institucionalizada” aos olhos dos moradores. É o que ocorre, por exemplo, quando o tráfico constrói a sede de uma associação ou uma piscina, administrada por ela.

Para alguns moradores, a própria autoridade dos líderes comunitários emana, em última instância, do chefe do tráfico de quem dependem. Eventuais reclamações dos moradores são levadas ao tráfico pelos líderes comunitários e, diante da repressão policial que impossibilita os chefes do tráfico de manter contato direto com os moradores, exercendo uma atividade ao mesmo tempo panóptica e clientelista, a associação passa a ser o canal intermediário pelo qual chegam várias benesses provenientes dos traficantes, principalmente durante festas.

Mesmo os líderes comunitários assumidamente mais “envolvidos” com traficantes procuram desfazer a poluição contaminadora que enfrentam todos os que mantêm relações com o tráfico e tratam de transmitir a ideia de uma inevitável relação respeitosa e

257 ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 132. Sobre a relação entre líderes comunitários e os políticos, cf. Ibid. p. 135 et seq. Segundo Marcos Alvito, traficantes financiam bailes espetaculares enquanto parte de um orgulho comunitário: “Mal comparando, é como o tirano Pisístrato, que teria sido o responsável pela grandiosidade do festival das grandes panatenéias, de onde veio a se originar o teatro. Ninguém pensava, em Atenas, postular uma relação entre a deusa Palas Atene e o tirano Pisístrato. Mas a relação entre o tirano Pisístrato e a comunidade, a intenção dele em reforçar esse vínculo, em se apresentar como campeão do orgulho comunitário, fazia com que ele engrandecesse as festas das grandes panatenéias (...) Um orgulho comunitário que não aceita mais as imagens que eram produzidas, da favela singela, ou da favela exótica, de barracão de zinco, ave-maria no morro, que agora diz assim: ´Também não queremos que ninguém produza as imagens, nós mesmos vamos produzir uma representação sobre nós`”. Olívia Cunha lembra, por sua vez, que o fato de os bicheiros financiarem as escolas de samba já foi de alguma forma legitimado e é consumido por nós todos como fazendo parte da estrutura ou do mundo do samba. Ninguém nunca se perguntou quem é que paga as rodas de pagode, de samba e outras atividades comunitárias (DEBATE 7 – Organizações comunitárias, cultura popular e violência II. In: ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ e FGV, 1996. p. 354-356).

complementar entre dois chefes que ocupam “espaços” distintos. Se os líderes comunitários representam o tráfico junto aos moradores, o inverso também é verdadeiro. Se determinados vínculos de parentesco e/ou amizade os tornam pessoas “de confiança” para o “traficante”, esses mesmos vínculos também são invocados para limitar o escopo da ação do chefe do tráfico.258

Traficantes, como Elias Maluco, já admitiram que são eles quem realmente financiam os bailes de comunidade, mas que não ganham nada com isso, apenas a “alegria dos moradores”. Dada a popularidade do funk, a realização dos bailes não passaria de mais uma ação empregada pelos traficantes para ganhar o respeito e o apoio da comunidade, mas não só, conforme será visto nas páginas seguintes.259 Já as milícias, grupos de policiais que expulsam traficantes de favelas para cobrar uma taxa compulsória de segurança dos moradores, além de controlar a venda de diversos serviços, como transporte, gás e TV a cabo clandestina, ora proíbem os bailes funk, ora o realizam, com o mesmo intuito de ganhar respeito na comunidade.260

Independentemente de o tráfico estar pagando ou não bailes comunitários, o que deve ser levado em conta é a evidente e ávida demanda por lazer nas comunidades. Quando a festa é de interesse da comunidade e promovida pelo poder público ou alguma ONG, “bocas” são fechadas para sua realização. O eventual custeio de um baile de comunidade por um traficante pode ser explicado pela dificuldade de soluções de mercado para o lazer de boa parte das populações jovens das periferias, pelas relações afetivas traficante/comunidade e pela ausência de ações sistemáticas dos poderes públicos nesse campo.

258 ALVITO, Marcos, op. cit. p. 151 et seq. Zuenir Ventura ilustra bem como era próxima a relação entre o presidente da associação dos moradores de Vigário Geral e o chefe do tráfico local (VENTURA, Zuenir, op.

cit. p. 101 et seq.), bem como a relação entre o presidente da escola de samba de Parada de Lucas e o chefe

do tráfico local (Ibid. p. 174-175). Os traficantes, entretanto, negam a interferência na associação dos moradores e dizem que só querem que ela “faça algo pela comunidade” (Ibid. p. 209, 245-246).

259 ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 183-184.

260 As Unidades de Polícia Pacificadora, implantadas em algumas favelas do Rio de Janeiro a partir de dezembro de 2008, também tiveram uma postura repressiva em relação aos bailes. Apenas em 2010 foi liberado o primeiro baile funk “pacificado”, na Ladeira dos Tabajaras, e mesmo assim, com diversas restrições. Estive neste baile no dia 1º de janeiro de 2011, não vi armas, drogas, pessoas fazendo sexo nem ouvi “proibidões”. No entanto, o sargento que comandava a tropa da UPP naquela noite me passou uma imagem muito negativa do funk. Disse que o baile da Ladeira dos Tabajaras havia sido proibido porque era financiado pelos traficantes e que, mesmo com a instalação da UPP, cuja sede fica ao lado da quadra onde é realizado o baile, são comuns as brigas e quebra-quebras na saída do baile, bem como o desrespeito às restrições impostas para que o baile seja permitido. Naquela noite, um dos organizadores havia sido levado à delegacia por furto de energia pública.

Conforme aponta Manoel Ribeiro, enquanto o Estado não ocupar esses espaços, é complicado dizer para a senhora viúva que não coma da cesta básica que o “dono do morro” distribui, dizer para a comunidade para não participar de bailes, shows e distribuição de brindes, pagos “não se sabe por quem” e dizer às equipes de som “vejam lá de onde vem o dinheiro que paga os seus serviços” ou “vai lá e diz que você não toca pra bandido”.261 Todavia, ao invés do Estado financiar ele próprio a realização dos bailes, no

contexto de uma política cultural e recuperar uma função que, diante de sua omissão, acabou sendo preenchida pelo tráfico, adotou-se uma política repressiva, de proibição desses bailes, encarados como caso de polícia.

Outras evidências de que os bailes de comunidade seriam financiados pelo tráfico são a ausência de brigas, como as ocorridas nos bailes de clube, a presença de traficantes armados na pista, o consumo livre de drogas e os chamados “proibidões”, funks que supostamente fazem apologia ao crime e que são cantados nestes espaços. A presença de traficantes armados nos bailes funk de comunidade também se explica pelo simples fato de as identidades não serem rígidas. Os frequentadores de baile funk não constroem necessariamente para si mesmos a identidade de “funkeiros”, haja vista que gostam de outros ritmos musicais e que o funk é apenas o ritmo preferido para dançar, razão pela qual não se deve tomar as letras “como narrativas fidedignas do universo e do cotidiano do jovem que frequenta o baile funk e mora na favela”.262

Da mesma forma, os traficantes possuem múltiplas identidades: pais, filhos, amigos, surfistas, namorados, funkeiros, pagodeiros, cristãos, etc. Se o traficante é um jovem como qualquer outro da comunidade, que também gosta de funk e de se divertir, por que deixará de ir ao baile? Conforme explica Vianna, esses grupos têm estilos de vida híbridos. As roupas e gírias usadas nos bailes são também parte integrante do estilo de vida

261 RIBEIRO, Manoel. "Funk'n Rio: vilão ou big business?" In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, n. 24. Ministério da Cultura, IPHAN, 1996. p. 291.

262 CUNHA, Olívia M. G. Conversando com Ice-T: violência e criminalização do funk. In: HERSCHMANN, Micael (Org.). Abalando os anos 90: funk e hip-hop – globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 93; VIANNA, Hermano, op. cit. p. 91-92. Quem frequenta o baile não é um único tipo de jovem. Entre os funkeiros, existe uma maioria que estuda e/ou trabalha e que curte também outro tipo de música. O funk não é uma unanimidade entre os jovens da comunidade, pelo menos entre os “alternativos” (SANSONE, Livio. Funk baiano: uma versão local de um fenômeno global? In: HERSCHMANN, Micael (Org.). Abalando os anos 90: funk e hip hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 173). Zuenir Ventura menciona em diversas passagens de Cidade Partida o gosto dos traficantes e dos jovens de Vigário Geral, como um todo, pelas músicas de Raul Seixas (VENTURA, Zuenir, op. cit. p. 62, 74 et seq., 112).

das gangues de traficantes e ladrões cariocas. Nem todos os bandidos do Rio frequentam o mundo funk, mas existem relações entre os dois mundos, como entre o funk e o pagode.263 Tanto a identidade de traficante quanto a de funkeiro são estigmas que parecem querer, sem sucesso, englobar todos os momentos de vida desses jovens e que só foram assumidos como identidades por eles como resultado do processo de rotulação social. Frequentando os bailes funk, é natural que o traficante ande armado. Primeiramente, para fazer a segurança da favela e pela própria necessidade essencial de andar sempre armado para “garantir o cumprimento dos contratos” em um mercado ilegal e se proteger de eventuais traições na cadeia hierárquica do tráfico.264 Em segundo lugar, a arma demonstra poder, confere status aos jovens, segundo o ethos de masculinidade, e exerce um verdadeiro fascínio em algumas meninas, inclusive de classe média, as “caça-fuzil”, que sobem o morro atrás de “bandidinhos”.