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O componente racial na criminalização do funk

DE 07 (SETE) ANOS DE RECLUSÃO E 21 (VINTE E UM) DIAS MULTA, NO VALOR MÍNIMO LEGAL, A SER CUMPRIDA NO REGIME

5. CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK

5.5. O componente racial na criminalização do funk

O atual Código Penal revogou a criminalização da capoeiragem, do espiritismo e da magia, conservou os delitos de curandeirismo e charlatanismo. Mendicância e vadiagem passaram a ser contravenções penais. Apesar das mudanças legislativas, as práticas dos órgãos de segurança pública permanecem discriminatórias.457 Um grupo de negros, principalmente homens e jovens, é visto como perigoso e suspeito pela polícia, sendo forte candidato a revistas e blitz. As mesmas instituições que mantêm a ordem social tentam controlar a festa e a massa, mas todas as precauções não conseguem impedir que o aglomerado de pessoas, atingindo certa densidade, origine massas descontroladas, espontâneas, imprevisíveis, eufóricas e violentas.458

O perigo das aglomerações aumenta com a emergência da “multidão pós-fordista”, fruto do desemprego estrutural, que se configura como “totalidade produtiva indistinta, como conjunto de potencialidades cooperativas que escapam a qualquer regulamentação”.

455 CHALHOUB, Sidney, op. cit. p. 169-170. As maltas de capoeira no Rio de Janeiro do século XIX se dividiam em duas facções predominantes: os Nagoas e os Guaiamuns. Além de estarem envolvidos em constantes “desordens”, esses grupos serviam a políticos como cabos eleitorais, seguranças de comícios e controladores de “curral eleitoral”. Foram os alvos da primeira grande campanha policial da República e desapareceram do imaginário da cidade sendo substituídos pela figura do malandro e do vagabundo (Apud VIEIRA, Thiago Braga. Proibidão de boca em boca: gritos silenciosos de uma memória subterrânea: O funk proibido como fonte para o estudo da violência armada organizada no Rio de Janeiro (1994-2002). 2009. Monografia-Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. p. 30).

456 CHALHOUB, Sidney, op. cit. p. 185-186. 457 SILVA JR., Hédio, op. cit. p. 333. 458 VIANNA, Hermano, op. cit. p. 60.

Diante da incapacidade de governar, regular e disciplinar os comportamentos da multidão, os dispositivos de controle urbano se limitam à vigilância e contenção da massa em guetos para impedir a construção de laços e formas de cooperação social e política que possam dar corpo à rebelião.459

O funk carioca tem raízes no funk norte-americano de James Brown, um ícone negro condenado na adolescência por assalto à mão armada que cantava hinos à sexualidade aflorada e à busca por direitos iguais para os negros.460 A gíria funky, que remetia ao odor do ato sexual, deixou de ter um significado pejorativo para se tornar um símbolo do orgulho negro, de música “revolucionária”, de alegria.461 A equipe de som Soul Grand Prix, uma das pioneiras no mundo funk carioca, em um esforço didático e militante de introdução à cultura black is beautiful, entremeava em seus bailes slides de personalidades negras com cenas dos pilotos de Fórmula 1, a única forma de burlar a questão da censura.462

O Brasil vivia os anos de ditadura militar e a multidão de negros afirmando o orgulho negro não era bem vista, especialmente em um momento em que todos os conflitos sociais e raciais eram abafados por um espírito cívico e patriota. A resignificação de figuras arquetípicas de redenção racial pela população afro-brasileira e o questionamento do racismo geraram apreensões entre os setores dominantes, foram percebidos como ameaçadores à segurança nacional, subversivos. A polícia política acreditava que por trás das equipes de som existiam grupos clandestinos e radicais de esquerda. DJs e organizadores de baile contam que foram encapuzados e levados para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para interrogatórios, que pessoas estranhas ao movimento se infiltraram nos bailes, e que equipamentos de som foram destruídos pela polícia.

As entidades do movimento negro apoiavam os dançarinos para que os bailes e a música fossem um meio para a superação do racismo, mas no discurso das equipes, os bailes não tinham um fim em si, a não ser a pura diversão e as equipes não tinham nada a ver com qualquer espécie de movimento negro. Era a aglomeração de muitas pessoas

459 DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 79, 104, 114

460 ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 9 et seq.

461 VIANNA, Hermano, op. cit. p. 20; HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 19. Nos EUA, o blues era tocado somente em algumas estações de rádio e em horários específicos para os afro-norte-americanos. Era música proibida para a juventude branca, cujos elementos mais progressistas a escutavam às escondidas dos pais (ARCE, José Manuel Valenzuela. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. p. 85). Muitos bluesmen foram acusados de pacto com o demônio (VIANNA, Hermano,

op. cit. p. 19).

negras juntas que assustava e conferiu um tom político aos bailes. Foi o Jornal do Brasil que inventou o nome “Black Rio” e acabou chamando a atenção para o “movimento”. Segue abaixo o testemunho de Ivanir dos Santos, Secretário Executivo do CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas) na época:

A ditadura (...) criou uma demagogia que se voltou contra ela: ao mesmo tempo em que incentivou o consumismo, abriu espaços para a venda de música negra produzida naquela época no Brasil, de James Brown, entre outros, e, por outro lado, mobilizou a identidade da população negra. (...). Assim surgiram os grandes bailes black. Isso levou o pessoal a se vestir como se vestiam os negros norte-americanos. A partir disso, a atenção voltou-se para o que acontecia nos Estados Unidos e, junto a isso, para a luta de libertação da África que estava se desenrolando nesse período. Então, se eles o incentivaram como forma de consumo, eles mesmos tiveram de infiltrar o pessoal do SNI (Serviço Nacional de Informação) para destruí-lo, quando perceberam que aquilo era uma forma de aquisição de consciência (...) Quando se percebeu o potencial explosivo que poderia ter (o Black Rio), foi desarticulado. Todo mundo sabe que o SNI pressionou para que não se fizessem os bailes. O pessoal acabou em movimentos mais organizados, mais “comportados”, e, por fim, acabou desintegrando-se (...). Mas o Black Rio não tinha projeto, era uma questão muito mais de diversão e identidade do que um projeto político.463

As tentativas de se desenvolver, naquele momento, qualquer movimento étnico foram enterradas com a repressão implementada pelo regime militar e o boom da moda da discoteca, uma música apreciada tanto na Zona Sul quanto na Zona Norte da Cidade, de espírito mais hedonista, comercial e despolitizada, mais europeizada, domesticada e adaptada ao gosto branco. Os militantes esqueceram os bailes, pois não mais o consideravam um espaço propício para a conscientização.464

Hoje, se por uma lado, a etnicidade não é tão tematizada ou celebrada nos bailes, por outro, as representações criminalizantes construídas sobre os frequentadores de baile, principalmente na mídia, estão calcadas numa sutil, mas poderosa “racialização” do discurso que se produz sobre a desordem, a barbárie e a violência.465 Se “no funk tem gente de toda cor” e o baile propicia uma mistura de “raças”, como procuraram realçar quase

463 ARCE, José Manuel Valenzuela, op. cit. p. 87 et seq.; RIBEIRO, Manoel, op. cit. p. 287; ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 35-36; VIANNA, Hermano, op. cit. p. 27-29.

464 HERSCHMANN, Micael, op. cit. p. 22; ESSINGER, Silvio, op. cit. p. 42-44; VIANNA, Hermano, op.

cit. p. 32.

465 CUNHA, Olívia M. G. Conversando com Ice-T: violência e criminalização do funk. In: HERSCHMANN, Micael (Org.). Abalando os anos 90: funk e hip-hop – globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 93.

todos os organizadores de bailes, DJs e “funkeiros”, quando o funkeiro é vítima de algum tipo de perseguição, as vítimas são “quase tudo da cor”.466

Ainda que enfatizando a “democracia racial” do funk, tanto organizadores como frequentadores do baile salientam que existe uma associação entre a cor negra e o funk, entre dança e o ser negro. O baile não é um reduto de construção de identidade negra diacrítica, mas é um lugar onde o negro pode se sentir à vontade, onde o corpo e o visual negro não são criminalizados, mas sim muitas vezes premiados. A forma pela qual se dá a desinibição do negro está expressa nas experimentações com o visual, no uso do corpo e não nas formas sugeridas pela militância negra.467 Os funkeiros não afirmam expressamente sua identidade negra, mas a “sugerem, através de sua própria presença, da visibilidade que adquirem, colocando em cena seus corpos coreograficamente arranjados”. Há uma provocação não-verbal do conflito, que leva à armadilha do estereótipo que associa o corpo negro à sexualidade e os negros à irracionalidade.468