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5 SEXUALIDADE E GÊNERO: AS BASES TEÓRICAS PARA EXPLICAR A

5.3 A crítica genealógica e a produção da identidade por Judith Butler

A teoria crítica contemporânea sobre gênero tem, na atualidade, como principal ícone a professora de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Judith Butler.

Influenciada pelo pensamento pós-estruturalista, primordialmente de Jacques Derrida e Michel Foucault, assim como pela teoria psicanalítica, feminista e marxista, Butler desenvolve um projeto inovador de criação da identidade, que repercute nas diversas áreas de conhecimento e estudos em todo o mundo.

O pós-estruturalismo fundamenta-se em uma crítica desconstrutivista principalmente às premissas da metafísica ocidental, por questionar as oposições binárias. Como ela informa:

Meu próprio pensamento tem sido influenciado pela Nova Política de Gênero (New Gender Politcs), uma combinação de movimentos que englobam o transgênero, a transexualidade, a intersexualidade e suas complexas relações com a teoria feminista e queer.262

Em sua obra Problemas de gênero, Butler, ao se utilizar da crítica genealógica, desenvolvida por Nietzsche e reformulada por Foucault, busca compreender as categorias fundacionais de sexo, gênero e desejo como efeitos de uma formação do poder, que se encontra nas instituições, nas práticas e nos

262

discursos de maneira múltipla e difusa. Por isso, foca sua investigação no falocentrismo e na heterossexualidade compulsória.263

Butler questiona o sujeito do feminismo ―mulher‖ como categoria preexistente ao gênero. Argumenta que há, na verdade, um sujeito em processo, construído pelo discurso. Segundo a autora:

Se alguém ―é‖ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da ―pessoa‖ transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de ―gênero‖ das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida.264

Registre-se que essa formulação não exclui a existência de apenas um sujeito. Afirma que esse sujeito não se encontra obrigatoriamente antes dos seus atos.

Discute-se, como já retratado em tópico anterior, a vinculação do sexo com a natureza e do gênero com a cultura. Para a autora: ―Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado ―sexo‖ seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma‖. Em seguida, acrescenta que inserir ―a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas‖.265

Indiscutivelmente o que Judith Butler busca romper é a ordem compulsória que associa sexo ao gênero e ao desejo. Essa ordem se configura da seguinte maneira:

O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero - sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu - e um desejo - sendo o desejo heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A coerência ou a unidade interna de

263

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 9.

264

Ibidem, p. 20. 265

qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional.266

Desse modo, mostra-se socialmente lógico e inevitável o fato de, por exemplo, alguém nascer com órgãos sexuais femininos, comportar-se como mulher e possuir desejo sexual por homens.

Ela entende, portanto, que as normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas criam gêneros ―inteligíveis‖. Aqueles que instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo são aceitos socialmente. Ao mesmo tempo, essa mesma lógica desenvolve a ideia de seres cujo gênero é ―incoerente‖ ou ―descontínuo‖, os quais estariam fora da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas.267

É exatamente nessa ideia que surge a exclusão às pessoas que não se enquadram na condição de ―normalidade‖ instituída socialmente. De maneira que não é concebível ou ―inteligível‖, a existência de pessoas que nasçam com órgãos sexuais masculinos, comportem-se como mulheres e possuam desejo sexual por homens, por exemplo.

Conclui Butler que ―o gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um locus de ação do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada dos atos‖. Nesse contexto, surge o conceito de performance, o qual está associado à ideia de uma construção dramática repetitiva, na qual ―a repetição é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação‖268

.

Desse conceito, é importante inferir que a performance não é uma escolha, mas reiteração de normas já consolidadas, as quais os próprios sujeitos sequer percebem que estão reproduzindo.

Como ações públicas, temporárias e coletivas, a performance teria o objetivo de manter a estrutura binária. Sendo assim:

O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances especiais contínuas significa que as próprias noções de sexo

266

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 45.

267

Ibidem, p. 38. 268

essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória.269

As ideias de Butler influenciaram a perspectiva da existência de uma multiplicidade de gênero e da construção de novas identidades e movimentos sociais, assim como da Teoria Queer.270

269

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato. Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 201.

270

A teoria queer começou a ser desenvolvida a partir do final dos anos 80 por uma série de pesquisadores e ativistas bastante diversificados, especialmente nos Estados Unidos. ―O termo descreve um leque diverso de práticas e prioridades críticas: leituras da representação do desejo pelo mesmo sexo em textos literários, filmes, música e imagens; análise das relações de poder sociais e políticas da sexualidade; críticas do sistema sexo-gênero; estudos de identificação transexual e transgênero, de sadomasoquismo e de desejos transgressivos‖ (SPARGO, Tamsim. Foucault e a

6 GÊNERO E A EXPRESSÃO DA IDENTIDADE