• Nenhum resultado encontrado

8 OS SENTIDOS DO TRABALHO PARA ALÉM DA CULTURA E PODER NAS

9.1 Os direitos fundamentais e a proteção por identidade de gênero

A existência de direitos fundamentais360 em um Estado de Direito é a principal garantia que os cidadãos possuem da manutenção de um sistema jurídico e político orientado a respeitar e a promover a dignidade humana.361

Os direitos fundamentais, assim, são ―proposições jurídicas que investem o ser humano de um conjunto de prerrogativas, faculdades e instituições imprescindíveis a assegurar uma existência digna, livre e fraterna de todas as pessoas‖.362

No intuito de classificar os direitos fundamentais conforme as transformações históricas, o titular desses direitos e o papel do Estado, convencionou-se denominá- los e separá-los em dimensões.363

A história dos direitos fundamentais está totalmente associada à história do moderno Estado constitucional, cuja essência se desenvolve na limitação do poder e proteção da dignidade humana.

360

Para Ingo Sarlet, ―direitos do homem‖ seriam os direitos naturais não positivados, ―direitos humanos‖, os positivados internacionalmente, e ―direitos fundamentais‖ aqueles reconhecidos e guardados pela ordem jurídica interna de cada Estado (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos

fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 36.)

361

PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales: temas clave de la Constitucion Española. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1995, p. 20.

362

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 522.

363 Anteriormente, era comum a utilização da nomenclatura ―geração‖. Segundo Flávia Piovesan, o primeiro a utilizar a expressão ―gerações de direitos do homem‖ foi o jurista tcheco Karel Vasak, em 1979, quando, ao proferir uma aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, na cidade de Estranburgo, usou o referido termo como forma de comparar a evolução dos direitos humanos e as bandeiras de luta da revolução francesa - liberdade, igualdade e fraternidade (PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p.28). A nomenclatura ―gerações‖ ganhou notoriedade em todo o mundo, tendo em vista sua visão histórica e seu valor didático para os estudos dos direitos fundamentais. Entretanto, a moderna doutrina compreende que a nomenclatura ―geração‖ remete a um conjunto de direitos surgidos e existentes apenas em determinadas épocas. Há, portanto, uma negação do processo cumulativo e complementar desses direitos. Dessa forma, partindo do pressuposto de que os direitos fundamentais se realizam simultaneamente, o ideal é examiná-los e compreendê-los em diversas ―dimensões‖ que existem em uma mesma realidade dinâmica, não havendo qualquer hierarquia entre elas. Essa nova concepção garante a prevalência da unidade, da interdependência e da indivisibilidade entre esses direitos.

Em contraposição ao Estado Absolutista, surge, no séc. XVIII, a primeira face do Estado de Direito: o Estado Liberal. Sob a governança dos burgueses e dos ideais iluministas, principalmente da Separação de Poderes, foi propagada a limitação do poder do Estado. O objetivo era resguardar a liberdade do indivíduo contra o arbítrio estatal. Nesse contexto, surgem os direitos humanos de primeira dimensão, os quais, designados também como direitos civis e políticos, constituem- se como direitos de defesa do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado, impondo sua abstenção na seara privada dos cidadãos.

A abstenção total do Estado, a igualdade meramente formal e o excesso de liberdade acabaram por gerar desigualdades sociais. Assim, os burgueses, que tanto se sentiram oprimidos em tempos de Absolutismo, oprimiram impiedosamente a grande massa, legitimados pelo arcabouço jurídico da época.

Profundas mudanças surgiram com o advento do Estado Social, solução encontrada para impedir o avanço das ideias socialistas e acalmar os movimentos sociais. Nessa nova fase do Estado de Direito, reivindicaram-se a interferência do Estado no mercado, a consagração do princípio da igualdade material e a busca pela justiça social.

Nesse contexto, exigiu-se do Estado uma atuação positiva em favor dos grupos sociais que se encontravam à margem da sociedade. Dessa maneira, aparecem os direitos humanos de segunda dimensão – sociais, culturais e econômicos –, que, pautados em um ideal de igualdade material, adquirem foros constitucionais, principalmente, no Pós-Segunda Guerra Mundial.

Essa segunda dimensão, particularmente, interessa o presente estudo, uma vez que a ordem jurídica internacional elevou os direitos dos trabalhadores à dimensão dos direitos humanos.

No fim do século XX, a repartição mundial em países desenvolvidos e subdesenvolvidos ensejou o aparecimento de uma nova dimensão dos direitos que se pautassem na fraternidade e solidariedade. Assim, surgem os direitos de terceira dimensão, que buscam preservar o direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente livre, sadio e equilibrado, à conservação do patrimônio histórico, cultural e paisagístico.364 Os titulares desses direitos não são mais a pessoa na sua esfera individual, mas sim os grupos humanos, destinando-se,

364

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 569.

pois, à proteção de toda a sociedade, sendo, consequentemente, direitos de titularidade coletiva ou difusa, possuindo implicações universais, transindividuais e exigindo esforços e responsabilidades em escala mundial para sua efetivação.365

Paulo Bonavides ainda reconhece a existência de direitos oriundos da globalização, os quais se enquadrariam numa ―quarta dimensão". Estes correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social, compreendendo, dentre outros, o direito à democracia (democracia direta), à informação e ao pluralismo político, étnico e cultural.366

É essencial que os direitos humanos reconhecidos internacionalmente incorporem nas Constituições dos diversos Estados como verdadeiros direitos fundamentais.367

Destaca Vieira Andrade:

Os direitos fundamentais previstos na Constituição são muitas vezes, quanto ao seu conteúdo, mais concretos e específicos. A sua maior proximidade do real, pelo fato de serem normas de aplicação imediata, obriga a formulações mais claras e de mais perfeita intencionalidade, bem como uma interpretação mais densificada. Acresce que os direitos se desdobram em novos aspectos ou mesmo em novos direitos perante a pressão das necessidades práticas de proteção jurídica dos particulares.368

O autor realça a importância da consagração dos direitos fundamentais de forma expressa nas Constituições, a fim de que haja uma adaptação positiva desses direitos à realidade da comunidade, buscando, pois, que essas proteções jurídicas não sejam meras palavras bonitas, mas sim que possam se efetivar socialmente.

Daniela Muradas acrescenta que a incorporação das regras internacionais, especialmente voltadas aos direitos humanos laborais, possuem a peculiar regra de vedação do retrocesso social, sendo inerente a essa categoria a progressividade dos direitos.369

365

SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., pp. 58-59. 366

BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 571. 367

Sobre as discussões acerca da hierarquia e incorporação dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, vide: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito

Constitucional Internacional. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2008; SARLET, Ingo Wolfgang. A reforma

do judiciário e os tratados internacionais de direitos humanos: observações sobre o §3º do art. 5º da Constituição. In: NOVELINO, Marcelo (Org.). Leituras Complementares de Direito Constitucional: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2008.

368

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de

1976. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 39.

369 REIS, Daniela Murada. O princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2010, passim.

O princípio do não retrocesso social busca inibir a atuação negativa do legislador, visando a ―[...] evitar que, atendendo a interesses momentâneos, pessoais ou de grupos não legitimados, o criador da norma jurídica positiva proceda a uma mudança provocadora de retrocesso para a coletividade‖.370

Os direitos fundamentais podem adquirir nas Constituições estatais um conceito material ou formal. Na concepção formal, os direitos fundamentais são aqueles adotados expressamente nas Constituições por decisão dos legisladores, já no sentido material, compreende-se que outros direitos que não estejam delimitados na Constituição podem ser também reconhecidos como direitos fundamentais em razão de seu conteúdo e sua importância.371

A Constituição Federal brasileira de 1988, no seu art. 5º, § 2º, não excluiu a existência de outros direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, bem como dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Assim, observa-se que a Carta Magna não limitou os direitos fundamentais aos descritos pelo Título II de seu texto, ao contrário, adotou, conforme afirma Ingo Sarlet, uma concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais.372

Desse modo, não há como negar a fundamentalidade dos direitos das pessoas transgêneras, seja na proteção dos direitos de primeira dimensão, como à intimidade, à vida privada, ao direito ao nome, à afirmação de sua identidade de gênero, seja na esfera dos direitos de segunda dimensão, direito à saúde, à educação e, especialmente, o direito ao trabalho.

9.2 A supremacia da constituição e os princípios de combate à discriminação