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3 EXPERIÊNCIAS E CONCEPÇÕES DE TEMPO-ESPAÇO ESCOLAR PARA A EDUCAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL.

3.1 As matizes político-ideológias da educação integral: introduzindo o debate

3.1.1 A crítica liberal-pragmatista ao tempo-espaço escolar tradicional

Influenciado pelos postulados do Iluminismo, a discussão da escola pública estava associada à formação de um ser humano contrário aquele pensando no período da idade média (século V ao século XV).56 Pregava-se a importância da “razão

esclarecedora” como um instrumento de maturidade do ser humano que o permite controlar seu próprio destino. Ou seja, a consolidação plena da capacidade de raciocínio analítico se coloca como um elemento que expressa a maioridade do gênero humano na busca pela liberdade. E liberdade só é possível através da “autonomia plena da razão perante lógicas externas, heterônomas a ela. (BOTO, 2003, p. 737).

55 Há diversos trabalhos que discutem as matizes ideológicas que influenciaram o debate da educação integral no Brasil. No entanto na maioria deles, a concepção socialista-marxista quando não está incluída é tratada como sinônima da corrente socialista anarquista. Essa classificação em quatro concepções pode ser encontrada nos trabalhos de Nóbrega e Silva (2009); Barbosa e Silva (2012); e no livro: Educação integral no Brasil de hoje (SILVA E SILVA, 2012).

56 Influenciado pela hegemonia da igreja católica, formulou-se na idade média, também conhecida como idade das trevas ou obscurantismo, uma concepção que corroborava com a existência de uma instância superior ao ser humano, supra-sensível, supra-inteligível, real e perfeita que o condicionaria e o determinaria. Dessa forma, o sentido da vida dos seres humanos deveria estar subordinado a um tipo de plano metafísico traçado por Deus.

104 A centralidade do projeto iluminista que buscava superar o estado de menoridade do ser humano através de uma razão abstrata, centrada no intelectual e na consciência idealizada, culminou do ponto de vista educativo em uma pedagogia de caráter racionalista e unilateral.

No Brasil estes aspectos foram predominantes na pedagogia tradicional, expressa tanto na vertente religiosa como na laica (SAVIANI, 2005). A memorização e reprodução de conceitos pelo aluno, a ênfase no professor, métodos rígidos e acabados de planejamento e avaliação eram aspectos principais desta tendência pedagógica (Saviani, 2000). No ponto de visto do espaço físico, é possível identificar algumas relações entre a pedagogia tradicional (religiosa e laica) e o tipo de arquitetura escolar presentada nas escolas monumentais.

No período colonial em que era predominava o ensino jesuítico, a arquitetura escolar estava muito vinculada às edificações religiosas. Nesse tipo de arquitetura, como já foi dito no capítulo anterior, o que importava era o valor estético do espaço físico para a afirmação dos valores do idealismo religioso ligado à catequese. Os colégios tinham a aparências de grandes catedrais e igrejas, geralmente anexadas ànexadas à conventos. São exemplos atuais desse tipo de arquitetura as instituições confessionais. O aspecto monumental da infraestrutura escolar foi ainda mais afirmado na institucionalização do ensino jesuítico através do plano de ensino denominando Ratio Studiorium. Seus traços elitistas e formais acabam por informar a que público era destinado o novo plano de ensino: formação da elite colonial (SAVIANI, 2011).

O outro ciclo das escolas monumentais, correspondentes ao período da república velha, representa a vertante laica da escola tradicional. Influenciados pelos ideiais iluministas e republicanos burgueses, havia nesse contexto uma preocupação no Brasil em superar “a situação de opressão, própria do antigo regime, e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato social celebrado livremente entre os indivíduos” (SAVIANI, 2005, p. 5-6). Para tanto, era necessário vencer algumas barreiras culturais herdadas do período colonial e imperial. Na avaliação dos republicanos, a principal delas era a barreira da ignorância. Segundo Saviani (2011) acreditava-se que “só assim seria possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres porque

105 esclarecidos, ilustrados” (p. 6). Atribuir como causa dos problemas sociais, dentre eles a marginalidade, a falta de esclarecimento e a ignorância, colocou a escola como antidoto para a superação deste quadro. Daí a ênfase no ensino diretivo, na hierárquica dos conhecimentos, na ênfase do papel do professor, etc., para garantir a apropriação abstrata e racionalista do acervo cultural sistematizado pela humanidade.

A centralidade da escola nesses períodos influenciou o olhar sobre seu projeto arquitetônico e infraestrutura. Grandes escolas foram construídas nos principais centros urbanos do Brasil, localizados no litoral, para afirmar a tendência progressista da sociedade brasileira.

A presença das novas escolas monumentais através de uma expressão estética imponente, diferentemente dos projetos coloniais que tinham funções simbólicas catequéticas, assumia-se enquanto instituições orientadoras da superação do atraso por meio do acesso à cultura erudita e clássica. Portanto, o caráter de sua monumentalidade é também uma conseqüência da preocupação em afirmar as escolas públicas como os edifícios mais “evidentes” e particularmente diferenciados da cidade, facilmente percebidos e identificados como espaços da esfera governamental república. Guardam, portanto, a insígnia da ordem, progresso e do desenvolvimento.

Os grupos escolares, por exemplo, representantes desse tipo de arquitetura, eram referência para a própria arquitetura das cidades. Eram prédios que pareciam estar a frente de seu tempo. Chamados também de “novos templos”, estes edifícios intencionalmente se diferenciavam dos demais para simbolizar as finalidades sociais, morais e cívicas da escola pública, entendida como tal, como instituição específica na formação do cidadão republicano.

No entanto, o caráter e elitista e a tradição erudita desse tipo da pedagogia tradicional e de seu modelo arquitetônico de escolas começaram a receber diversas críticas. Como movimento de renovação do próprio campo liberal, nasceu uma teoria da educação denominada de “escolanovismo”. Segundo o diagnóstico dessa teoria o modelo de escolas monumentais e seu ensino tradicional se revelaram inadequados acompanhar para os ideais de desenvolvimento e progresso de uma nação batendo na porta da industriação e da urbanização. A questão da marginalidade, por exemplo, não

106 poderia ser entendido como um problema de ignorância ou de falta de conhecimento das classes populares, e sim de exclusão da escola. Para o escolanovismo não era a sociedade que deveria se adaptar a escola, mas, a escola que deveria se adaptar a uma sociedade diversificada para integrar os excluídos, os rejeitados e os diferentes. Nessa perspectiva o escolanovismo afirma: “alguém está integrado não quando é ilustrado, mas quando se sente aceito pelo grupo e, por meio dele, pela sociedade em seu conjunto” (SAVIANI, 2005, p. 7).

Cunhada também pedagogia nova, o fato é que esse movimento muito rapidamente se espalhou nos discursos educacionais que se denominavam progressistas. Fora, inclusive, amplamente defendido por educadores de grande expressão na Europa e nos Estados Unidos, em fins do século XIX, como: Claparède, Montessori, Decroly, Dewey e Freinet. Estes educadores foram bastante influenciados pela ampliação das discussões da noção de democracia da filosofia pragmatista de John Dewey. Compreendiam que um modelo de escola democrática devia estar orientada muito mais para/pela experiência de cada sujeito, ao invés da busca frenética pela formação de um modelo ser humano simbolizado na capacidade de pensar aos moldes da tradição iluminista. É baseado nesse tipo orientação que estamos denominando essa concepção no debate da educação integral de liberal-pragmatista (SILVA E SILVA, 2012) (CAVALIERE, 2002).

A escola deveria formar um sujeito capaz de por si mesmo, pela pesquisa ou pela ação, encontrar os próprios caminhos para o seu lugar na sociedade. A individualidade no processo de ensino buscava superar a necessidade de se estabelecer noções universais previamente existentes como objetivos a serem alcançados. O mais importante não era aprender o que se estabeleceu como objetivo, o conteúdo em si, mas, vivenciar experiências de natureza distintas na escola, incorporando aquilo que se coloca como necessário para a vida em uma sociedade liberal-democrática e moderna. É mais importante aprender a estar sempre aprendendo do que aprender algo específico.

Para Dewey, sendo a escola uma instituição social integrada à sociedade, sua função social está em ser o espaço da vida em sociedade ao invés de prepara-la para algo que virá depois. Segundo Cavaliere (2002, p. 258), no escolanovismo a experiência

107 em si já é “aprendizagem, é transformação, é um modo de existência, não sendo possível dissociar tais elementos. A vida humana é uma teia de experiências e, portanto, de aprendizagens variadas”.

Em relação às rupturas, as teorizações da pedagogia nova estão ambasadas pelos avanços científicos no campo da educação advindas das contribuições da biologia e da psicologia. Esses campos disciplinares possibilitaram a formulação de “uma nova visão da criança, da aprendizagem, da educação em geral e da educação escolar” (CAVALIERE, 2002, p. 252). Ocorre nesse modelo segundo Saviani (2011, p.8) um processo de biopsicologização da sociedade, da educação e da escola. Essa ideia levou a seguinte conclusão: os homens são essencialmente diferentes (idem).

A individualidade, a diferença, a experiência, a particularidade, dentre outras categorias que referenciam o ensino escolanovista não romperam com a velha crença no poder “salvacionista” da escola em termos de justiça social presente na escola tradicional. No entanto, isso só seria possível se a escola se adaptasse aos próprios anseios, desejos e interesses dos alunos. A ideia era que os espaços escolares pudessem servir de espaços de sociabilidade destinados aos “rejeitados” e, crescentemente, excluídos do acesso à equipamentos sociais urbanos pelas reformas urbanas que lhes empurravam para os morros e para as periferias e subúrbios da cidade. Essa concepção acredita que a escola, quando conscientemente preparada, é o principal espaço para a inclusão, guiada pelo respeito às diferenças. Nesse caminho se põe como desafio para a escola:

[...] ser capaz de favorecer o mais diversificado e intensivo compartilhamento da experiência (...) [ser] comunidade intersubjetiva, democraticamente estruturada, na qual se possibilitará, por meio da comunicação da experiência, a construção de alguma identidade coletiva. (CAVALIERE, 2002, p.266).

Essa crença na escola como o espaço propício para a multiplicação de identidades e experiências se dá pela ideia de que esta instituição seja um espaço privilegiado, “livre de pressões e disputas econômicas imediatas. Um contexto propício

108 à conscientização e reelaboração por meio de novas formas culturais que podem assim encontrar espaço para emergir” (CAVALIERE, 2002, p. 267).

Essas premissas eram indicativos para afirmar que as escolas monumentais e sua estética sombria, disciplinadora, imponente, silenciosa, rígida, não eram funcionais ao tipo de educação que a teoria escolanovista buscava oferecer. Pensava-se no contrário: uma escola que funcionasse de maneira alegre, movimentada, flexível, barulhenta, multicolorida e multidiversificada, ou seja, que espelhasse o universo infantil tal qual era entendido. No movimento escolanovistas a arquitetura escolar passara a se preocupar menos com a questão estética e mais com a funcionalidade dos espaços físicos e da arquitetura. Daí a relação indissolúvel entre escolanovismo e escolas de arquitetura funcionalistas.

Várias experiências de influência dos ideais pragmatista foram difundidos pela Europa e EUA, este último contexto de maior adesão dessas práticas, a saber: na Europa: “escolas de vida completa” na Inglaterra; os “lares de educação no campo” e as “comunidades escolares livres” Alemãs; as “casas das crianças” na Itália; a “casa dos pequenos” em Genebra; a “escola para a vida” em Bruxelas. Nos EUA temos: a “escola universitária” (CAVALIERE, 2002).

No Brasil, as ideais escolanovistas e a preocupação com a arquitetura escolar na perspectiva funcionalista, foram trazidos pelo educador Anísio Spínola Teixeira (1900- 1971), um dos mentores intelectuais do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932. Anísio e outros educadores ligados ao movimento da Escola Nova, buscavam (re)organizar a instituição escolar para formar o “cidadão”, com a oferta de “atividades intelectuais, profissionais, artísticas, físicas e ainda de saúde, congregando, paralelamente, ações de cunho ético-filosófico, com a: formação de hábitos, atitudes e o cultivo de aspirações” (MATOS, 2011, p. 33). Desta forma, vista como mecanismos de integração social, a educação pública pautada na cidadania democrática-liberal, “deveria assumir-se como fator constituinte de um mundo moderno e democrático (...)” (CAVALIERE, 2002, p. 252).

Para Anísio a escola era o equipamento público principal na mudança social e modernização do país das amarras do atraso. Na década de 1930, Anísio diagnosticou

109 dois problemas em relação a arquitetura e a infraestrutura dos espaços: a) era preciso superar o padrão arquitetônico das escolas existentes (coexistência de poquíssimas escolas monumentais e a expansão das escolas de improviso) pelas funcionalistas; b) era preciso ampliar quantitativamente o número de escolas. Construir mais!

Para solucionar o problema da não-funcionalidade das escola existentes, Anísio projetou um modelo de escolas que incluía um:

[...] programa completo de leitura, aritmética e escrita, e mais ciências físicas e sociais, e mais artes industriais, desenho, música, dança e educação física (...) saúde e alimento à criança, visto não ser possível educá-la no grau de desnutrição e abandono em que vive. (TEIXEIRA, 1959, p. 79).

As escolas seriam compostas por espaços heterogêneos, orgânicos os mais diversos interesses dos alunos na qual o professor tinha a mera função de estumulador do processo de ensino-aprendizagem. O ambiente deveria ser estimulante e agradável, com uma infraestrutura bem equipada, grande variedade de recurso didático-pedagógico com bibliotecas, parques, salas de música, etc. e funcionar em tempo integral. Anísio acreditava ser esta o modelo de escola conscientemente planejada para educar (ANÍSIO, 1959). Arquiteturas, tempos e recursos específicos postos em funcionamento para uma educação democrática e equalizadora.

Apesar dos ideais progressistas, veremos mais adiante de que forma esta concepção foi esvaziada nas experiências materializadas em vários momentos da história educacional brasileira sob orientações desse ideal. Ainda segundo Cavaliere (2002), a forma controversa deu estas experiências, além de distorcerem os seus ideais orientadores,

[...] deu-se em bases de um esvaziamento das responsabilidades da escola expresso, entre outros fatores, pelas instalações precárias de seu ambiente físico, pela redução da jornada e multiplicação dos turnos, pela desorientação didático-pedagógica e pela baixa qualidade da formação dos professores (p. 248).

110 Como razões causais de tal fenômeno, vem sendo apontado a descaraterização da escola obrigada a atuar em funções que não são tipicamente escolares ou associadas à instrução. Segundo Saviani (2005) ao analisar a efetividade do ensino escolanovismo:

[...] vê-se, assim, que paradoxalmente, em lugar de resolver o problema da marginalidade, a “Escola Nova” o agravou. Com efeito, ao enfatizar a “qualidade do ensino” ela deslocou o eixo de preocupação do âmbito político (relativo à sociedade em seu conjunto) para o âmbito técnico-pedagógico (relativo ao interior da escola), cumprindo ao mesmo tempo uma dupla função: manter a expansão da escola em limites suportáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipo de ensino adequado a esses interesses. (p. 10).

Como iremos ver em outras seções, houveram experiências materializadas com esses traços, mas de forma “experimental ou como núcleos raros, muito bem equipados e circunscritos a pequenos grupos de elite” (SAVIANI, 2005, p. 10). Um dos motivos para caracterizar o baixo alcance das escolas funcionalistas entre as classes populares e, posteriormente, seu abandono como política pública é o custo bem mais elevado que nas escolas monumentais.

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