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3 EXPERIÊNCIAS E CONCEPÇÕES DE TEMPO-ESPAÇO ESCOLAR PARA A EDUCAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL.

3.1 As matizes político-ideológias da educação integral: introduzindo o debate

3.1.4 A pedagogia Marxista-Gramsciana e a “escola de Leonardo”: tempo-espaço da omnilateralidade

Segundo sua definição conceitual, a compreensão de ser humano omnilateral, perpassa a crítica ao acirramento dos processos de produção capitalista. Estes geraram uma cisão no trabalho, entendido aqui na perspectiva marxista como “criador da condição humana” (FRIGOTTO, 1998) que incidiu na fragmentação da sociabilidade

119 humana, unilateralizando sua relação com uma determinada forma trabalho estranhada (MANACORDA, 1991). Na perspectiva da unilateralidade, o trabalho é descolado de seu referencial ontológico e assume uma dimensão mecanizada, pragmática e parcial. Ou seja, perde seu caráter de síntese histórica das objetivações humanas (KOSIK, 1976). Além disso, ocorre hierarquias nos processos de trabalho, sejam intelectual ou manual, que aprofundam a divisão da sociedade em classes. Na metáfora de Marx (1952) citado por Manacorda (1991, p. 77), há uma sociedade dividida entre trabalhadores que são carregadores e trabalhadoras que são filósofos. Porém, ambos são unilaterais já que ambos são socialmente “treinados” e especializados para não poder fazer o que o outro faz.

O trabalho fragmentado e hierarquizado também recebe estigmatizações do que é trabalho e não-trabalho. Essa relação dual e contraditória denuncia as diferenças nas formas de apropriação cultural entre os que vendem sua força de trabalho e aqueles que dominam os meios de produção e exploram essa força.

No entanto, ainda segundo Manacorda (2007) é a partir da “realidade” unilateral entre indivíduo e trabalho tal como está posta que surge a “possibilidade” de transformação dessa relação na perspectiva do homem onilateral. Marx (1958) citado por Manacorda (2007) em seu livro A ideologia Alemã nos apresenta os pressupostos necessários para que essa expressão humana omnilateral ganhe materialidade afirmando que:

[...] enquanto nas revoluções precedentes, os homens se haviam apropriado de forças produtivas limitadas, na revolução proletária, uma totalidade de forças produtivas, desenvolvidas no modo histórico da divisão do trabalho e da propriedade privada, torna-se subsumida por cada indivíduo, e a propriedade por todos; e unicamente neste nível a manifestação pessoal coincide com a vida material, ou seja, corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos completos (Idem, p. 88).

E afinal de contas, qual o papel da escola nesse processo de transformação? Que modelo de escola entra em pauta para essa empreitada? Pensando a escola não como um instrumento de dominação absoluta do capital, e sim “aparelho privado de hegemonia”

120 (Gramsci, 1978) enxergamos que as imposições dessa organização do trabalho que dilui o papel da escola a mera (re)produção de filósofos e carregadores, abre possibilidades para pensarmos em uma escola pública a partir das contribuições do marxismo gramsciano.

Na tentativa de romper com esse contexto Gramsci traz como referência uma educação integral assentada nos pressupostos filosóficos do Materialismo Histórico e Dialético. Desse processo, toma-se como referência formativa a vivencia educativa de Leonardo da Vinci no período do renascimento e realizadas na Oficina de Verrochio. A tese defendida por Gramsci é a de que o caráter totalizante desse processo formativo traz importantes contribuições para se pensar educação integral.

No renascimento podemos identificar um processo de transformação do qual os remédios usados foram essenciais e não formais, utilizando a metáfora de Mészáros (2005). Ou seja, “um momento em que a estrutura econômica e social se transformou fazendo interagir as práticas sociais e culturais, alterando as concepções de mundo, de valores e de vida” (SCHELESENER, 2009, p. 29). Esse movimento de ruptura repercutiu positivamente em novos pressupostos para se pensar a educação partindo do princípio de que grandes mentes, emergentes da classe popular, surgiram nesse contexto, dentre eles, Leonardo: pintor, escultor, arquiteto, físico, engenheiro, botânico e músico. Segundo Gramsci: a referência elucidativa de homem onilateral, o carregador e o filósofo em uma só pessoa, um “ideal a ser alcançado no projeto socialista, para todos os homens” (SCHELESENER, 2009, p. 16). Logo podemos afirmar que o contexto supracitado acima nos faz refletir sobre os processos sociais totais presente nas “raízes da sociedade moderna e nas condições sociais e culturais para a formação humana que se perderam no curso de implementação do modo de produção capitalista” (SCHELESENER, 2009, p. 15).

O questionamento feito por Gramsci em relação ao período do renascimento diz respeito a contribuição da instituição escolar na formação omnilateral de Leonardo. Será que sua genialidade é fruto apenas de seu esforço e do contexto que favoreceu o florescimento de tantas habilidades práticas e intelectuais? Gramsci acredita que houve um tipo de “escola” que teve sim alguma contribuição nesse processo de formação

121 omnilateral de ser humano de Leonardo e tantos outros. É a partir da afirmação de Gramsci, que surgem alguns questionamentos que fazem com que esse debate ganhe ainda mais profundidade. Se a escola não foi a instituição exclusiva de formação das grandes mentes do renascimento, quais foram os espaços de aprendizagem que contribuíram para tal feito? E melhor ainda, qual a contribuição destes espaços do ponto de vista pedagógico no processo formativo de Leonardo da Vinci, e de tantos outros como Michelangelo, Donatello, Botticeli e Raffaello, para que possamos re(pensar) a escola nos dias de hoje?

No que tange aos espaços de aprendizagem desse homem omnilateral do renascimento Schelesener (2009) observa que um dos espaços frequentados por Da Vinci era a oficina de Verrochio onde conviveu com outros grandes talentos da época.

Na verdade Verrochio não era uma escola, mas é justamente a partir da sua configuração espacial e arquitetônica e sua relação com o princípio educativo da omnilaterlidade que apresentamos o pensamento de Gramsci acerca da educação integral.

Schelesener (2009) nos fornece alguns elementos para que possamos pensar a relação entre o espaço e o que era ensinado na oficina. Segundo a autora: muitos artesões “[...] formavam jovens profissionais em suas oficinas, que funcionavam como estabelecimentos comerciais e como escolas que aliavam o conhecimento dos métodos e a teoria com a atividade de produção” (ibidem, p. 42).

Esse tipo de ensino que tornava indissolúvel a relação entre trabalho manual e intelectual implica em um tipo de aprendizado que contava com a participação ativa “em todo o processo de trabalho, desde o mais simples aos mais complexos, como realizar a pintura “de um detalhe” da obra planejada pelo mestre e desenhada em um papel” (ibidem, p. 43).

As possibilidades desse tipo de formação omnilateral estavam intimamente interligadas ao tipo de ambiente em que aconteciam. Segundo Schelesener (2009):

A Bottega de um artesão da época não era propriamente uma escola nem se apresentava como atelier de um artista, mas era uma oficina na qual eram praticadas muitas atividades: pintura, escultura e outras obras de engenharia,

122 até a elaboração e reparo de objetos em ferro (fabbro), a fabricação de objetos de maneira artesanais, desde móveis em geral até estruturas em mandeira para fechar ou abrir casas e muros, como portas e janelas, bem como o reparo de móveis (falegname) (ibidem, p. 43).

O fato de esta experiência ter ocorrido nas oficinas de Verrochio, não implica dizer que há relações de proximidade com escolas de improviso ou espaços sem nenhum tipo de infraestrutura escolar. Se na versão imperial o surgimento das escolas de improviso se deu visando o barateamento dos custos com a educação pela coroa portuguesa e na anarquista como forma de negar qualquer forma de poder instituído, a educação omnilateral nas oficinas de verrochio, florescida em um contexto sócio- espacial, cultural e político propício, anunciam as possibilidades de um processo educativo total que supere a formação unilateral parte da cisão do trabalho humano entre trabalho manual e trabalho intelectual.

A configuração do espaço físico da oficina de Verrocchio em consonância com as atividades desenvolvidas (as mais variadas possíveis) apresenta-se como o local de formação onde a atividade técnica e manual exigia também a formação humana, ética e política necessária ao próprio processo de trabalho.

O trabalho coletivo era outro aspecto potencializado no espaço da oficina. Isso ficava evidente quando a produção de obras "não vinha com a assinatura do mestre, mas com o nome da instituição, precisamente por se tratar de uma produção coletiva" (Ibidem p. 44).

Portanto, o tipo de espaço e convivência pedagógia vivida na oficina também informa sobre a necessidade e possibilidade histórica da formação de um novo tipo de "homem-coletivo", contrastando com as características individualistas e subjetivas própria da sociedade liberal que se punha como mediação necessária ao avanço do metabolismo do capital nesse período.

Mas qual é o lugar do espaço escolar na formação omnilateral? Que mudanças deveriam ser feitos no tempo e nos espaço escolar/educativo? É possível formar novos Leonardos na escola pública brasileira?

123 Primeiro devemos considerar que Gramsci nas palavras de Schelesener (2009, p. 160) assinala que “o que orienta e delimita o processo educativo é a questão da hegemonia e a importância da formação política no contexto da luta por uma nova ordem social e política”. No caso das sociedades atuais, vivendo sob a égide das formas de trabalho unilaterais e da organização social baseado na exploração e dominação dos não-trabalhadores sobre os trabalhadores a escola desempenha papel estratégico na manutenção da hegemonia capitalista. Há um quadro de formação unilateral de um lado representada pela força intelectual e do outro pela força técnica-produtiva.

No entanto, no mesmo movimento de legitimação hegemônica o sistema do capital cria possibilidades de superação desse contexto pela classe trabalhadora à “medida que necessitam unificar-se para subverter os mecanismos de dominação e de conformismo que predominam na sociedade capitalista [...] pensar em novas estratégias de luta pelo socialismo” (SCHELESENER, 2009, p. 160). Uma “educação para além do capital” (MÉSZÁROS, 2005, s/p).

Segundo as conclusões de Gramsci, nos espaços educativos extraescolares do período renascentista foi possível perceber princípios da educação omnilateral. Esse tipo de educação só foi possível porque esteve implicado com as expressões da Escola Única e Unitária. Segundo (SCHELESENER, 2009, p.117) esse modelo de escola é considerada única porque:

[...] apresenta-se como uma das instâncias fundamentais de formação integral do homem moderno, iniciando as crianças para o trabalho, por que este e o principio educativo, mas sem descuidar das suas tendências iniciais, a fim de possibilitar fazer “tudo o que quiserem”, como se propunha o homem do renascimento.

De igual forma que é única (contrária a divisão societária em classes) também é unitária quando nega a divisão dicotômica do conhecimento entre teoria e prática, (re)estabelecendo sua unidade orgânica em uma perspectiva omnilateral. Nesse caminho, do ponto de vista pedagógico, a oficina nos fornece os elementos de uma educação sob a lógica da Polítecnia que “partiria da vivência prática dos conhecimentos

124 para alcançar a teorização dos mesmos, nos quais a generalidade precederia a especialização” (PINHEIRO, 2009, p. 31).

Tomar a escola pública a partir destas referências significa considerar a superação das tendências educacionais que orientadas para a conservação da hegemonia burguesia de caráter unilateral. Em seus pólos mais contrários, implica superar tanto a radicalidade das pedagogias tradicionais (essência) quanto das de influência escolanovistas (existência) que em seus diagnósticos pendulares dos problemas educacionais comprometem qualquer possibilidade de desenvolvimento integral (MANACORDA, 2007). Além disso, em sua dualidade deslocam o debate educacional do campo político-hegemônico para o âmbito meramente técnico-pedagógico.

O projeto de superação dessa dualidade pedagógica nas escolas públicas (escolas enciclopedistas e escolas pragmatistas) também se reflete também na forma como se configura seus tempos e espaços.

A proposta da escola única e unitária não descarta a luta histórica de educadores reinvidicando melhores tempos (jornada ampliada das escolas funcionais) e boa infraestrutura e espaços amplos e bem equipados para aprender (espaços bem equipados como as monumentais e funcionalistas). No entanto, é preciso superar tanto o caráter elitista e conservador da arquitetura e tempo escolar das escolas monumentais, quanto o caráter meramente técnico da arquitetura e da ampliação da jornada escolar das escolas funcionais, ambas necessárias aos ajustes das classes subalternas ao projeto político e econômico liberal. Também é preciso superar a unidade dialética de ambas: a função salvacionista da escola. Essa unidade a-histórica e naturalizante cai:

[...] na armadilha da “inversão idealista” já que, de elemento determinado pela estrutura social, a educação é convertida em elemento determinante, reduzindo-se o elemento determinante à condição de determiando (SAVIANI, 2005, p. 64).

Portanto a escola única e unitária não perde de vista o conjunto de relações sociais que constituem a escola e por ela são constituídas. Reconhecendo que a escola é um dos mecanismos de formação do homem, inserida em processos mais amplos de organização política, a formação omnilateral acontece de fora pra dentro e de dentro pra

125 fora da escola. Logo, uma arquitetura escolar que expressem os princípios da omnilateralidade, do homem-coletivo, da politécnica e da escola única e unitária constituída e constuínte das transformações mais amplas da sociedade no contexto da luta de classes. Sobre essa questão vale lembrar uma das máximas de Guevara quando diz: “[...] transforme-se ao homem e com ele se transformará a arquitetura” 58.

É nesse sentido que a proposta de escola única e unitária e sua perspectica de formação integral omnilateral para a escola pública à luz da metáfora de formação integral leonardiana. A estética da arquitetura escolar nessa proposta tem como fundamentos os princípios humanistas que afirmam a ação humana através do trabalho como fonte e possibilidade de controle do seu destino. O espaço físico escolar é um dos espaços de formação humana que expressam o poder "fazer-se" e "criar a sua própria vida".

Um grande esforço de síntese das prerrogativas aqui trabalhadas pode ser observado na obra Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações (SAVIANI, 2011) uma vez que, apoiada na corrente filosófica do Materialismo Histórico e Dialético, nega qualquer prerrogativa unilateral, dualista e salvacionista do ensino escolar e a escola pública. (SAVIANI, 2008, p. 413-414). Tendo como pressupostos básicos o reconhecimento da situação de desigualdade em que se encontra a classe trabalhadora e a possibilidade de sua superação por meio da apropriação do saber historicamente acumulado, a pedagogia histórico-crítica pode ser definida como:

[...] tributária da concepção dialética, especificamente na versão do materialismo histórico, tendo fortes afinidades, no que se refere às suas bases psicológicas, com a psicologia histórico-cultural desenvolvida pela Escola de Vigotski. A educação é entendida como o ato de produzir, direta e indiretamente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Em outros termos, isso significa que a educação é entendida como mediação no seio da prática social global. A prática social põe-se, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí ocorre um método pedagógico que parte da prática social em que o professor e aluno se encontram igualmente

58 GUEVARA, Ernesto C. Discurso de clausura del encuentro de profesores y estudiantes. In: Arquitectura / Cuba, Cuba, n. 331, La Habana, enero-marzo, 1964, p. 13-14.

126 inseridos, ocupando, porém, posições distintas, condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e no encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social. Aos momentos intermediários do método cabe identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse) (idem, p. 420).

Após o debate sobre as matizes ideológicas, trataremos de discutir a realização de algumas experiências de ampliação do tempo-espaço escolar/educativo sob a insígnia da educação (em tempo) integral. Em um primeiro momento trataremos das primeiras experiências de educação (em tempo) integral a partir do pioneirismo de Anísio Texeira que influenciou outras experiências com caraterísticas muito próximas. Estas foram bastante influenciadas pelos ideais da concepção liberais-pragmatistas, que mais tarde assumiu outros percursos (des)configurando a proposta original. Isso porque as ampliações e modernização do espaço-tempo escolar foram acompanhadas por formas de encurtamentos em outros aspectos da escola. Mudanças precárias que desviam a proposta de seus projetos originais. Esse fenômeno como já vimos, longe de ser algo ocasional ou fruto de um momento histórico, são marcas ou recursos de ação inerentes à política educacional brasileira e que se revigoram em novas formas de modernização do atraso.

3.2 O tempo-espaço escolar em experiências do século XX e XXI no Brasil: as

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