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A criação do primeiro organismo civil em meados do século

Em 1852, já num ambiente de acalmia política e social, dava-se finalmen- te uma viragem completa no panorama da Cartografia portuguesa, com a criação da Direção-Geral dos Trabalhos Geodésicos, enquadrada no Ministé- A primeira folha da carta corográfica

1:100 000 (Lisboa-Sintra), editada em 1856 pela Direção-Geral dos Trabalhos Geodésicos (Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, P100 (ANT)-23/1). O relevo era ainda representado nesta época por “hachures” ou normais, processo que seria substituído pelas curvas de nível a partir de 1861, altura em que se refizeram as três folhas já existentes. Esta foi também uma das três cartas gravadas em pedra por J. Lewicki, contratado três anos antes pelo governo português.

rio das Obras Públicas, Comércio e Indústria que surgia então pela primeira vez. Da imensa obra que foi realizada, sob a direção de Filipe Folque até 1874, sem dúvida que merece uma referência muito especial a carta 1:100 000, compreendendo 37 folhas levantadas durante cerca de 40 anos (1853-1892) e impressas ao longo de meio século (1856-1904).

Esta foi a primeira série cartográfica que se conseguiria concluir, embora longe do detalhe inicialmente desejado. A lentidão da sua esmerada gravura em pedra e, sobretudo, a necessidade de acudir a outras urgências explicam que a carta tenha demorado tantos anos a ser finalizada e quando muitas das suas folhas já estavam desatualizadas. Imagem de marca da primeira insti- tuição cartográfica civil, essa carta daria lugar, a partir de 1900, a uma outra mais detalhada, em escala dupla, embora inicialmente fosse a mera atualiza- ção dos levantamentos que Folque havia delineado e começara a dirigir. Por seu lado, os trabalhos geodésicos, reiniciados e interrompidos desde os anos 30 desse século, conheceram neste novo enquadramento institucional um impulso decisivo. A junção da rede portuguesa e espanhola, exigindo cooperação conjunta, mostrara já no terreno aos oficiais nacionais, em 1863, a grande abundância de meios no país vizinho e o resultado lisonjeiro obti- do na junção provisória das duas cadeias fundamentais. O diretor seria até publicamente louvado pelo rei, considerando que, quando estivesse concluí- da, essa obra seria “um verdadeiro padrão de glória para o nome português”. Após a adesão à Associação Geodésica Internacional (1864), apresentar-se- -ia um relatório sucinto dos trabalhos efetuados desde o tempo de Ciera (Folque, 1868), pondo à disposição da Comissão Permanente o novo Obser- vatório Astronómico de Lisboa, edificado (1861-1867) à semelhança do de Pulkovo, em S. Petersburgo. Na sua sequência, o governo português aceita- ria o convite, dirigido pelo governo prussiano, para tomar parte na grande empresa europeia da época, tendo recebido várias instruções para a execu- ção de experiências e de observações astronómicas. Os trabalhos eram então reformados, introduzindo-se métodos de observação mais rigorosos e instrumentos mais aperfeiçoados, de modo a obter medições de maior precisão. Mantendo o esquema da rede, projetou-se a triangulação funda- mental, assinalada com traços fortes na Carta da triangulação geodésica de 1.ª ordem, de 1876, enquanto a parte restante a complementava: a rede compunha-se de uma cadeia meridiana e de outras paralelas, com ligação às espanholas. As observações começaram em 1863 e terminaram em 1888, executadas em grande parte pelo oficial de engenharia Francisco António de Brito Limpo (1829-1891), que, para além de F. Folque, tanto prestigiou os trabalhos geodésicos no País. Aquele mapa, reduzido, foi integrado no relatório preparado para a Exposição Universal de Paris (1878), subscri- to pelo contra-almirante Francisco Maria Pereira da Silva (1813-1891), que sucederia a Folque na direção dos serviços, após a sua morte. Também o marégrafo, instalado em Cascais (1876), passou a funcionar com regulari- dade desde 1882, permitindo que se iniciassem os trabalhos de nivelamento geométrico de precisão; a sua posição seria depois ligeiramente modificada e o aparelho substituído em 1902.

Carta da triangulação geodésica de 1.ª ordem de Portugal, 1876 (1:1 000 000, no original). Aqui se distinguem, entre outros aspetos, os lados dos triângulos fundamentais em ligação com o sistema espanhol, a linha de fronteira interrompida (como ainda hoje) na região de Olivença e a base Batel-Montijo. De notar que as longitudes são referidas ao Observatório do Castelo de Lisboa (Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, AHA-GAV4-3).

No mesmo ano em que se concluíam os levantamentos da primeira cobertura cartográfica (1892), que haviam sido ordenados logo que os serviços foram criados e executados durante quase meio século, iniciavam-se os trabalhos preparatórios para a medição de uma nova base, com uma localização mais central no território. Se a do Batel-Montijo fora suficiente à época, não tinha agora, nem a precisão exigida, nem a situação mais adequada. Com cerca de 4 km de comprimento, a Base Central foi medida em 1893. Com efeito, a evolução científica e os acordos internacionais impunham aos diferentes países retificações de muitos trabalhos já efetuados.

Todavia, sobretudo a partir da última década de Oitocentos, os serviços, progres- sivamente reduzidos nas suas competências, entraram num período de grande instabilidade que perduraria até aos anos 20 do século seguinte, enquanto, no Ministério da Marinha e do Ultramar, se organizavam os trabalhos urgentes nas extensas colónias africanas. “Querer efetivar os complexos trabalhos geodésicos com quatro oficiais e fazer a corografia do País e ilhas adjacentes com outros quatro é absolutamente absurdo, dando lugar a que de algumas ilhas dos Açores não haja ainda hoje nenhuma carta levantada por portugueses, sendo as estran- geiras que existem mais croquis que outra coisa” (no preâmbulo do decreto que criou, em 1926, o Instituto Geográfico e Cadastral, que finalmente asseguraria a estabilidade necessária até quase ao final do século). Por aqui se vê a necessidade de uma profunda remodelação, atendendo até às brilhantes memórias passadas e aos prémios de reconhecimento internacionais.

Ligação da Base Central com o lado da triangulação fundamental, Aire-Melriça, cuja carta 1:250 000 foi desenhada e construída por A. E. do Vale Souto em 1895 (Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa).

A partir do final do século XIX iniciavam-se os trabalhos geodésicos nos Açores e na Madeira (hoje, Regiões Autónomas): em 1895 foi a vez da primeira das várias ilhas daquele arquipélago (São Miguel, 1895-1896), a que se segui- riam apenas duas outras (Santa Maria e Terceira, 1898), enquanto na Madeira datariam de 1913-1914. Mas a difusão de grande parte dos primeiros mapas modernos seria, nestes espaços insulares, inaceitavelmente tardia (Dias, 2014). Entretanto, poucos anos depois de ter sido criada a Direção-Geral dos Traba- lhos Geodésicos (que mudaria várias vezes de designação), aqui se iriam progressivamente integrar quase todas as diferentes áreas da Cartogra- fia. Assim, a recente e promissora Cartografia geológica passava para este organismo cinco anos depois de ter sido fundado, nele se organizando e aí permanecendo durante quase 30 anos (1857-1886), com uma infeliz interrup- ção de permeio. Começou então o levantamento da primeira carta geológica detalhada, projeto inacabado e só retomado a partir de 1935. Por ele passaria também a Cartografia hidrográfica (1856-1892), bem como a agrícola, esta em finais do século XIX e após a morte do general Gerardo Augusto Pery (1835-1893), o seu impulsionador, quando os serviços geodésicos apresenta- vam já problemas. Extintos os serviços da carta agrícola com a implantação da República, quando todo o País estava levantado mas só se haviam publica- do ainda as folhas respeitantes a grande parte do sul de Portugal, mais de 40 anos decorreriam até ao aparecimento de um serviço autónomo.

O organismo que havia mobilizado com enorme brilho, na segunda meta- de do século XIX, os grandes projetos da Cartografia nacional, conhecia há muito dificuldades. As reformas institucionais sucedem-se no virar do século, sem que, no entanto, trouxessem a pujança dos tempos idos, os de Filipe Folque. Como consequência, os trabalhos de atualização da antiga carta corográfica, iniciados em 1893, foram-se arrastando e, mais de 40 anos depois, ainda continuavam. Mas, entretanto, lançavam-se novos projetos, que não sairiam da fase de ensaios, sem que, nalguns anos pelo menos, houvesse algum trabalho de relevância. Faltavam os técnicos, mas faltavam sobretudo os recursos materiais para manter a atividade prestigiada de outrora. A carta dos Açores é paradigmática: algumas ilhas apenas tiveram as suas primeiras folhas publicadas na década de 1960!

Demarcação, levantamento cartográfico e manutenção da