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A carta geral do Reino: o ensaio da primeira cobertura topográfica do território

Quando os primeiros trabalhos geodésicos, que haviam marcado a Carto- grafia europeia do século XVIII, principiaram em Portugal, estavam a terminar os levantamentos da primeira série topográfica francesa, conhe- cida por carta de Cassini (1744-1793), que serviu de inspiração e de modelo aos outros países. As quase duas centenas de folhas desta carta, apoiada em trabalhos geodésicos inovadores e numa escala um pouco menor do que 1:80 000, foram estabelecidas com base numa divisão regular do território. À sua semelhança, tentou iniciar-se no País um projeto idêntico. A renova- ção do ensino, nomeadamente da matemática e militar, e o aparecimento de associações científicas, como foi o caso da Academia das Ciências de Lisboa (1779), criaram também as condições e o ambiente propícios para que este projeto pudesse ser desencadeado.

A carta geral do Reino delineava-se em Portugal no final da década de 1780. Os astrónomos, discutindo este assunto na Academia das Ciências de Lisboa, propuseram que os trabalhos geodésicos e os levantamentos topográficos decorressem ao mesmo tempo, mas separadamente. Vários astrónomos se deveriam encarregar da determinação exata de pontos para apoio aos levan- tamentos topográficos, enquanto estes, a cargo dos engenheiros militares, seriam executados por comarcas. Depois, a partir da carta topográfica levan- tada, obter-se-iam outras menos detalhadas, incluindo uma carta geral do País, que era então tão necessária (Dias, 2003).

tamento da carta da comarca de Setúbal, que deveria servir de modelo às restantes. Para tal, entregava a direção dos trabalhos a um dos seus sócios, um oficial de artilharia estrangeiro, auxiliado por oficiais engenheiros. Os desentendimentos com o responsável da comissão e as queixas da Academia pela lentidão do trabalho destes últimos podem ter estado na base da sua não conclusão. No entanto, a descrição geográfica, que deveria acompanhar a carta, chegou a ser publicada nas Memórias Económicas da Academia (1791), servindo também ela como norma a adotar. Mas as propostas de então acabaram por ser substancialmente diferentes das que, afinal, se vieram depois a concretizar.

Ao mesmo tempo o governo decretava, em 1790, o começo do projeto, mais consistente, que levaria à definição da primeira rede geral de triangulação e ao início do levantamento da carta topográfica sistemática do território nacional. Desta tarefa encarregava apenas o matemático e astrónomo portu- guês Francisco António Ciera (1763-1814), coadjuvado pelos oficiais do Real Corpo de Engenheiros Carlos Frederico Bernardo de Caula (1765-1835) e Pedro Folque (1746?-1848). Os objetivos definidos por Ciera eram, nessa altu- ra, também duplos, à semelhança dos empreendimentos europeus homólogos: para além da construção de uma carta do País, ele pretendia também contri- buir para esse movimento europeu de descrição da forma da Terra, medindo à nossa latitude o grau de meridiano. No outono daquele ano começaram as primeiras expedições de reconhecimento, para localização dos pontos altos mais significativos do território nacional que iriam servir de vértices à grande cadeia de triangulação e onde iriam ser realizadas as observações. Ciera procurava também duas planícies bem situadas, uma a norte e outra a sul, onde se pudessem medir as bases geodésicas. Contudo, foram enormes as dificuldades do projeto, perante a inexistência de informação cartográfi- ca credível para o planeamento das operações e o pouco conhecimento da Geografia do País.

À primeira expedição pelo sul de Portugal (1790), com uma duração de dois meses, seguiu-se o norte (1791), que apenas foi possível reconhecer até ao rio Douro, e, em seguida, a Galiza, para que a rede nacional se ligasse com a espa- nhola. Ficaram então definidos 12 grandes triângulos, que se estendiam no sentido norte-sul, ligando a Serra do Gerês à de Monchique. Durante os sete anos seguintes, em que os trabalhos prosseguiram sem interrupções, aden- sou-se a rede de triangulação, efetuaram-se numerosas medições de ângulos, com nova aparelhagem construída e adaptada em Inglaterra, e mediram-se duas bases geodésicas (Batel-Montijo, 1794 e 1795, e Buarcos-Monte Redondo, 1797). Quando o governo decretou a suspensão dos trabalhos (1804), alegan- do a difícil situação financeira do País, eles ainda não haviam ultrapassado a Serra do Caramulo para norte. Entretanto, os levantamentos topográficos tinham começado na região de Lisboa, executados por vários jovens oficiais do Real Corpo de Engenheiros, sob a direção de Ciera. No momento da interrupção dos trabalhos, pelo menos 17 papéis de prancheta haviam já sido levantados na região de Lisboa, na escala de 1:10 000, desde Odivelas e Loures até Oeiras e aproximando-se de Sintra.

Imagens atuais do vértice geodésico situado no ponto mais alto do território continental português (1993 metros, Torre, Serra da Estrela): da primitiva pirâmide em alvenaria aqui colocada em 1802 por Ciera resta apenas a inscrição em pedra que aí se deixou incrustada numa das faces, mas hoje em profundo estado de degradação, pelo que se justapôs um fragmento de uma outra dos anos de 1960, onde ainda se liam os seus dizeres (fotografias atuais do Centro de Informação Geoespacial do Exército).

A situação inicial e final dos trabalhos geodésicos de Francisco António Ciera: à esquerda e com a sua assinatura, a primeira rede geodésica portuguesa, delineada por volta de 1791 (Direção de Infraestruturas do Exército, 4361/I- 4-49-82); à direita, o mapa final editado em 1803, mas na versão traduzida em inglês e impressa em Londres dois anos depois, à revelia do governo português (Universidade de Coimbra, O.A./UCFCT, G.3). Junto figura o marco geodésico idealizado por aquele matemático e astrónomo, representado na carta de medição da base geodésica Buarcos-Monte Redondo.

Após o início (1790) e a suspensão (1804) dos primeiros trabalhos geodési- cos, eles apenas seriam retomados três décadas depois, pelos oficiais Pedro Folque (1746?-1848) e Filipe Folque (1800-1874), o pai natural da Catalunha e o filho de nacionalidade portuguesa. A Guerra Peninsular (1807-1814) deixa- ra marcas profundas no País, pelo que só em 1834 se restaurava a comissão para a triangulação e o levantamento da carta geral do Reino. No ano anterior, ao ser determinada a reconstituição do que havia sido feito, veri- ficar-se-ia que parte substancial da informação não existia ou desparecera. Daí que aqueles oficiais decidissem refazer a medição da base Batel-Montijo (1835), anteriormente efetuada (1794-95) mas em que as pirâmides de madei- ra das extremidades tinham desaparecido e uma das marcas enterradas não se conseguia localizar. Após a descoberta da marca inicial, verificou-se que o erro era, afinal, reduzido face ao avaliado por Ciera, apesar dos instrumentos mais rudimentares utilizados por este último e, ainda, do comprimento da base (cerca de 10 km).

Tutelada a nova comissão pelo Ministério da Guerra (até 1849) e, a seguir, pelo Ministério dos Negócios do Reino (até 1852), seria interrompida em 1843-48, altura em que pai e filho foram substituídos por outro militar que não deixaria qualquer vestígio da sua ação. A agitação política e social do País, com as conse- quentes guerras civis, limitaria ou interromperia frequentemente os trabalhos,

Extrato de uma das folhas de prancheta (n.º 10) levantada em 1802, na região de Lisboa, sob a direção de Ciera, pelo capitão Bernardo José Pereira e pelo primeiro-tenente Francisco da Silva Freire, mostrando o lugar de Queluz (Direção de Infraestruturas do Exército, 4091/11º-4-49-82). Ao lado figura um esquema recente com a junção das folhas encontradas, respeitantes a esses levantamentos.

acabando por se começarem os levantamentos topográficos na região de Lisboa (1:10 000, como anteriormente), ainda antes que se concluísse a triangulação fundamental. Dada a idade muito avançada de Pedro Folque, que morreria com 102 anos segundo o seu registo de óbito (mantendo-se apesar disso duvi- doso o nascimento), ao filho incumbiria afinal a missão principal.

As dificuldades neste período agitado e os trabalhos executados encontram- -se narrados em extensa memória (Folque, 1843-1856). Nela o autor integraria a apresentação dirigida ao rei e publicada na Revista Universal Lisbonense (1848), relatando nesse ano as “revoluções continuadas deste malfadado país” e a desconfiança do povo “vendo-os pelas alturas com óculos e instrumentos”, presságios de “guerras ou de novos tributos”. Além disso, com pessoal e meios diminutos, acrescidos de instrumentos deficientes, não era para admirar que o “desgraçado estado” das finanças tocasse a todos e a tudo. Nessa altura, ia-se definindo uma rede mais densa, substituindo alguns triângulos por outros e escolhendo novos pontos que a prolongasse até ao norte do País, aonde Ciera não chegara. Pretendia-se sobretudo dar apoio à moderna cobertura cartográ- fica (Branco, 2003), tão desejada. Conquanto as observações não apresentassem ainda a precisão imposta mais tarde, ultrapassava, todavia, o que era exigido nos trabalhos cartográficos à época. Como consequência das reclamações do responsável, imediatamente se começaram a publicar as instruções (1850, com atualizações posteriores) e um dicionário (1851) para regerem os trabalhos, até se organizarem as atividades de forma estável em 1852, continuando essencial- mente desempenhadas por militares destacados do Ministério da Guerra.

As primeiras tentativas de institucionalização