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O apoio cartográfico à Guerra Colonial (1961-1974)

Quando Oliveira Salazar, o então presidente do Conselho de Ministros que considerava os portugueses “orgulhosamente sós”, proferiu na televisão a célebre frase “andar rapidamente e em força”, que passou a marcar o início da Guerra Colonial (em Angola), os territórios africanos não dispunham ainda de uma cobertura topográfica relativamente detalhada que permi- tisse apoiar as operações militares. Só a Guiné constituía exceção, pois nessa altura levantavam-se, junto à costa, as últimas quatro folhas da sua belíssima carta 1:50 000, ao mesmo tempo que rapidamente se editavam a partir daí as mais de duas dezenas que ainda faltavam para a completarem (72 folhas, 1953-1966). Em Angola, apenas uma larga faixa litoral, desde o norte de Luanda até à fronteira sul, dispunha já da sua moderna cobertura 1:100 000, enquanto em Moçambique mal se acabara de principiar, pelo sul, os trabalhos da carta 1:50 000, que deveriam perfazer, se tivessem sido concluídos, mais de um milhar de folhas.

Verificando-se que os levantamentos existentes não cobriam por completo os territórios africanos ou não tinham o detalhe necessário, coube então ao Serviço Cartográfico do Exército implementar o apoio às operações mili- tares. Os fotomapas de Angola e de Moçambique, rapidamente executados com o auxílio das tropas que atuavam no terreno, abrangiam em poucos anos uma extensão muitas vezes superior ao território continental. Ao mesmo tempo, reimprimiam-se, reduziam-se ou ampliavam-se cartas já existentes, bem como se apoiavam trabalhos em curso nas áreas dos conf li- tos. E novamente a informação cartográfica mostrava ser tão vital quanto o fora no momento da partilha de África, só que, desta vez, o segredo militar impôs fortes restrições à sua difusão. Assim se explica que, em dezembro de 1972, algumas centenas de cartas e fotomapas da Guiné, de Angola e

Etapas da produção dos fotomapas de Angola e Moçambique: triangulação radial por processos mecânicos e desenho, salientando a rede hidrográfica e as estradas ou caminhos (extraído de um filme do Serviço Cartográfico do Exército, provavelmente de 1966).

de Moçambique – os principais palcos da Guerra Colonial – tivessem sido inesperadamente furtados das instalações daquele Serviço, situado ainda na rua da Escola Politécnica em Lisboa, e distribuídos aos movimentos de libertação. Nessa altura, Agostinho Neto, presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), agradeceria às ilegais Brigadas Revolu- cionárias portuguesas o envio das cartas militares, por contribuírem para a intensificação da luta a favor da independência.

Para a execução urgente de uma base cartográfica dos teatros de operações de Angola e de Moçambique, o Serviço Cartográfico do Exército adquiriu, no início da década de 60, a câmara Klimsch/Super Autohorica 101, com o objetivo de produzir fotomapas. As fotografias aéreas utilizadas, na escala aproximada de 1:40 000, foram fornecidas pela África do Sul e no Serviço procedia-se a um laborioso trabalho de triangulação radial por processos mecânicos. Depois de recortadas e meticulosamente coladas para formar o mosaico fotográfico, eram criados os painéis correspondentes à área de um fotomapa e destacados determinados pormenores. Para cada um dos painéis fotografava-se o mosaico de forma muito ténue, numa película transparen- te, a qual era justaposta com um ligeiro desfasamento para criar a perceção de relevo, sendo posteriormente reduzidos para a escala 1:100 000. Assim se preparavam as edições provisórias, depois localmente corrigidas pelas forças militares disponíveis no terreno, que indicavam as modificações a introduzir para a edição definitiva, segundo instruções precisas. Por essa contribuição, as Regiões Militares de Angola e de Moçambique figuram aí também com a sua quota-parte de responsabilidade.

A câmara fotográfica utilizada na produção dos fotomapas.

Angola

Em meia dúzia de anos, um terço da área de Angola foi coberto por fotomapas de escala aproximada 1:100 000, abrangendo as províncias do norte e nordes- te, num total de mais de uma centena e meia de folhas, utilizando o mesmo seccionamento e identificação da carta que começara a ser produzida pela Junta de Investigações do Ultramar e pelos Serviços Geográficos e Cadastrais de Angola, na mesma escala (465 folhas, 1957-1969), e correspondente a uma área ainda não coberta por esta última. Para se fazer uma ideia do esforço despendido pelo Serviço militar, basta lembrar que o trabalho aqui realizado foi equivalente a cerca de cinco vezes a cobertura de Portugal continental. A Carta de Angola 1:100 000, publicada durante 13 anos sob a supervi- são da Junta de Investigações do Ultramar, começou a ser delineada em 1951, em conjunto com a 1:250 000, por uma comissão criada especialmen- te para o efeito. A essa comissão competiu definir as características das duas cartas e coordenar os trabalhos, realizados pela Missão Geográfica de Angola (1941-1975), no que respeita ao apoio geodésico e cartográfico, e pelos Serviços Geográficos e Cadastrais de Angola (1946-1975), na obten- ção da fotografia aérea, reconhecimento e apoio fotogramétrico, restituição e desenho; nas regiões litorais houve ainda a colaboração da Missão Hidro- gráfica de Angola e S. Tomé (1953-1975, que sucedeu à Missão Hidrográfica de Angola, 1936-1953) e nos trabalhos de inúmeras folhas participaram também as empresas ARTOP e TECAFO, que efetuaram voos fotográficos e trabalhos de restituição e desenho. A Junta das Missões Geográficas e

Fotomapa de Angola, cerca de 1:100 000, editado pelo Serviço Cartográfico do Exército entre ca. 1964 e 1969: folhas de Guilherme Capelo (n.º 5, hoje Lândana, Cabinda) e de Carmona (n.º 59, atualmente Uíge).

de Investigações do Ultramar, da qual dependiam as Missões Geográficas e Hidrográficas que atuavam nos territórios coloniais, que em 1951 suce- deu à Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (1936-1951, apenas por mudança de designação, já que a grande reforma dos serviços se operou em 1945) e esta à Comissão de Cartografia (1883-1936), veria o seu nome simplificado para Junta de Investigações do Ultramar. À carta 1:100 000, que deveria ser constituída por 472 folhas, ficaram a faltar as primeiras sete, correspondentes à região de Cabinda.

Superando a área de Angola 14 vezes a de Portugal continental, a cober- tura 1:100 000 concretizava-se em menos de 15 anos, editando-se em média 35 folhas em cada ano. Os trabalhos avançaram, quase em manchas concêntricas, a partir da região litoral em direção ao interior. Entretanto, começava também a ser produzida a carta 1:250 000 (1962-1970), delineada em conjunto com a anterior, da qual derivava: 134 folhas foram difundidas em oito anos, quase sempre em simultâneo com uma outra redução, na escala de 1:500 000. Ao mesmo tempo, o Serviço Cartográfico do Exérci- to publicava, por imperativos da Guerra Colonial, algumas folhas de uma carta 1:250 000, com a designação de Carta de Portugal — Angola, das quais umas eram meras cópias, a preto e branco, das folhas já difundidas pela Junta de Investigações do Ultramar e outras, por não existirem ainda, obti- das por redução da 1:100 000. Mas os serviços efetuaram ainda ampliações de levantamentos (como no caso de Nambuangongo) e apoiaram os traba- lhos locais, em curso.

Moçambique

Os Serviços Geográficos e Cadastrais, que resultaram da reestruturação dos Serviços de Agrimensura ocorrida em 1946, atuavam em cada coló- nia na dependência dos respetivos governos. Sucessivamente renovados em 1962 e 1969, foram sendo cada vez mais apetrechados em meios técnicos e humanos, chegando até a dispor de uma escola de Topografia. Em Moçam- bique, estes Serviços seriam responsáveis pelos trabalhos fundamentais da produção de uma nova série, na escala de 1:50 000, começada a editar a partir do final dos anos 50. No entanto, esta carta, que deveria ser consti- tuída por mais de um milhar de folhas, ficou incompleta. Embora hoje não seja fácil a reconstituição dos trabalhos, sabe-se que o Serviço Cartográfico do Exército chegou a participar na “separação de cores e impressão” de uma dezena de folhas mais recentes (1972 e 1973). Também, na provín- cia de Tete, levantamentos com características idênticas foram efetuados pela Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze (1957-1970), criada com carácter temporário no Ministério do Ultramar, integrada depois na Junta Provincial de Povoamento de Moçambique e fundida, após cinco anos, no Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Região do Zambeze.

Entretanto, em 1966, era retomada a produção de uma nova carta 1:250 000, que pretendia substituir a que se publicara nos anos 30 a 50, mas também Esquema de cobertura do Fotomapa de

Angola, do qual se editaram 154 folhas até 1969 (a vermelho), às vezes com uma ou mais edições ou até mesmo provisórias (Cabinda). Junto figura também o que se encontrava publicado, até ao começo da Guerra Colonial (a amarelo), da Carta de Angola, na mesma escala mas da responsabilidade da Junta de Investigações do Ultramar e dos Serviços Geográficos e Cadastrais dessa colónia, de um total que viria a compreender 465 folhas (1957-1969).

ela seria interrompida pela independência. Naturalmente, a Missão Geográ- fica de Moçambique continuou a prestar aos trabalhos a sua contribuição, cada vez mais restringida ao apoio geodésico, tendo ficado sediada na coló- nia a partir de 1962 (tal como aconteceu em Angola) e evitando-se assim as contínuas deslocações da equipa que, findo em cada ano o trabalho de campo, retornava a Lisboa. Nesta altura, estava já consagrada a autonomia dos serviços cartográficos locais, tanto em Moçambique como em Angola. Anteriormente, com a organização da Missão Geográfica de Moçambique em 1932, haviam sido recomeçados os trabalhos geodésicos, que se foram ligar aos que Gago Coutinho principiara a executar a sul (1907-1910). Ao mesmo tempo, levantava-se a topografia da área correspondente na escala de 1:250 000. Em 20 anos, as 60 folhas da primeira cobertura completa de Moçambique estavam terminadas (1933-1953, levantamento), demorando mais do que as quase cinco centenas da primeira cobertura de Angola, mais detalhada e mais tardia mas que pôde contar com outros meios técnicos. Para a carta, na qual colaboraram ainda os técnicos dos Serviços de Agri- mensura de Moçambique (ou os Serviços Geográficos e Cadastrais, a partir de 1946), o orçamento da própria colónia e destes serviços excedeu larga- mente a contribuição financeira atribuída pelo Ministério do Ultramar à Missão Geográfica, como o demonstrou então o seu diretor (Soares-Zilhão, 1941), ao estimar o preço do levantamento de uma folha. A mudança do título de Carta da colónia de Moçambique, até 1951, para Carta da província de Moçambique, após essa data, acompanharia a mudança de designação do principal organismo responsável, ao passar de Junta das Missões Geográ- ficas e de Investigações Coloniais para Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, mais tarde simplificada.

Enquanto a edição da primeira carta 1:250 000 avançava desde a região de Tete em direção ao mar, ao mesmo tempo progredia também mais a sul, junto a Lourenço Marques (atual Maputo), a Inhambane e à região de Manica, para o que foram fulcrais nestes polos a existência de trabalhos anteriores da responsabilidade dos Serviços de Agrimensura e da Compa- nhia de Moçambique. O levantamento começou com os processos clássicos à prancheta, tendo nas zonas litorais já o apoio da fotografia aérea execu- tada pela Missão Hidrográfica desde o final dos anos 30, restituída depois em Lisboa. A compilação das pranchetas e o desenho das folhas efetuavam- -se inicialmente nos Serviços de Agrimensura de Moçambique, quando as cartas eram ainda gravadas em pedra; depois, por questões de economia, os desenhos originais passaram a ser enviados para Lisboa para serem repro- duzidos por fotolitografia.

A carta 1:500 000, publicada aproximadamente no mesmo período (18 folhas, 1939-1956), resultou do agrupamento e redução da carta homó- loga, em escala dupla, com a qual naturalmente se aparenta. Da mesma carta 1:250 000, o Serviço Cartográfico do Exército faria uma outra edição em 1961-1962, a preto e branco, designando-a por Carta de Portu- gal — Moçambique, certamente para distribuição entre os militares em

operações. E, no fim dos anos 60, seria iniciado então o empreendimento de uma outra cobertura na mesma escala, agora totalmente da responsa- bilidade dos Serviços Geográficos e Cadastrais de Moçambique, partindo da informação obtida para a nova carta topográfica 1:50 000: intitulada Carta de Portugal 1:250 000: província de Moçambique (até 1971) ou Carta 1:250 000: estado de Moçambique (após essa data), dela só se teriam chega- do a publicar duas dezenas de folhas.

Em Moçambique, os fotomapas do Serviço Cartográfico do Exército pare- cem ter abrangido apenas uma parte das áreas onde decorriam as ações militares diretas, isto é, as províncias mais setentrionais (Cabo Delgado, Niassa e Nampula); em Tete, teria havido eventualmente o recurso a outras fontes de apoio, relacionadas com os trabalhos no vale do Zambeze. De um

Fotomapa de Moçambique, cerca de 1:100 000, editado pelo Serviço Cartográfico do Exército entre 1966 e 1973: folha de Mueda (n.º 1139-D, 1968).

Cobertura do Fotomapa de Moçambique figurando, a vermelho, as folhas com edição conhecida (provisória ou definitiva).

total de mais de seis dezenas de folhas conhecidas, das quase três centenas e meia que teria a cobertura completa, produziram-se, segundo o que foi possível apurar, 45 edições provisórias (1966-1971), em ozalide, contendo instruções para completamento e reconhecimento, e 40 edições definitivas e coloridas (1966-1973), pelo que algumas folhas ficaram provavelmente naquela primeira versão. As coberturas fotográficas datam de 1962 a 1966 (enquanto em Angola são na sua maioria de 1960). Em menos de uma déca- da, 20 % da área de Moçambique foi coberta por fotomapas, o que equivale a mais do dobro do território continental português. Ao mesmo tempo, o Serviço Cartográfico do Exército apoiava também os trabalhos de edição da carta 1:50 000, no norte de Moçambique, e reimprimia ou reduzia e editava folhas já publicadas para distribuição entre os intervenientes portugueses nos conf litos.

Guiné

Na Guiné, pelas suas particularidades geográficas, a opção foi agregar os trabalhos geográficos e hidrográficos, já que estes últimos englobariam mais de metade do território. Mas, apesar da mais reduzida dimensão da colónia, a sua linha de costa não era inferior à de qualquer outra, devi- do às numerosas ilhas e aos longos canais e rios navegáveis. A primeira Missão Geo-hidrográfica da Guiné organizou-se precocemente (1912-1914, reativada em 1925 para colaborar na revisão da fronteira), embora para ela tenham sido nomeados apenas dois oficiais, mas os primeiros trabalhos sólidos derivam da que foi constituída bastante tempo depois (1944), cuja ação se prolongou por 30 anos, altura em que, já integrada no Instituto Hidrográfico (desde 1960), tal como as Missões Hidrográficas das outras colónias, foi extinta.

Constituída por brigadas específicas, entre as quais a de Geodesia, esta Missão efetuou a triangulação fundamental da Guiné, cuja rede se desenvol- veu de Bissau, a oeste, até Piche, perto da fronteira leste, em cujos extremos foram medidas as bases. Pelas características orográficas do terreno e pela densa e alta vegetação, houve que recorrer nesses trabalhos a torres metáli- cas, de 35 metros de altura (e extensíveis a mais cerca de 20 m), que levavam cada uma delas 8 horas a montar e um pouco menos a desmontar, chegando numa campanha a ser armada meia centena de torres.

Levantadas as 72 folhas da excecional carta topográfica 1:50 000 da Guiné entre 1949 e 1962, progredindo aproximadamente de norte para sul e de oeste para leste, a sua edição estendeu-se por um período de 13 anos (1953- 1966). Esta série, da responsabilidade da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar ou da Junta de Investigações do Ultramar, contou com a participação do Serviço Cartográfico do Exército nos traba- lhos de restituição. Mais tarde, parte dessas folhas seriam reeditadas por este Serviço, numa denominada série G745, cujas folhas tinham uma nume- ração simplificada e algumas outras modificações.