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1.8 O ensino profissional no Brasil

1.8.3 A criação do Sistema “S” de ensino profissionalizante

O Governo de Getúlio Vargas intercedeu de forma efetiva e uniformizada nas relações entre capital e trabalho do país, reunindo em si as atividades de mediador, executor, legislador e juiz dos conflitos de classe. Muitas leis foram criadas e revigoradas, especialmente no que diz respeito ao trabalho do menor e à garantia de direitos aos trabalhadores, que já vinham se rebelando nas regiões industriais mais desenvolvidas do país.

Mas mesmo com a implantação dessas leis, muitas empresas não as cumpriam e procuravam um pacto entre a necessidade dos operários e a dominação dos patrões, fugindo ao controle do Estado. As empresas procuravam esconder os menores de quatorze anos, quando passavam os fiscais, e as famílias, por seu turno, preferindo ver os filhos dentro das fábricas, acreditavam que ocupando precocemente as crianças no processo fabril garantiriam um aumento da renda familiar, a aprendizagem e a conseqüente ocupação fixa do jovem. A fiscalização, na realidade, como comenta Herédia, era burlada tanto pelas empresas como pelas próprias famílias dos menores.81

80 VIDOTTI, 2004. Op. cit., p. 73. 81 HERÉDIA. Op. cit., p. 198.

Como se viu, a opção da sociedade era pelo trabalho do menor e, quanto à educação, parece que ficava em segundo plano, concentrando-se mais em instituições de “abrigo” aos jovens desvalidos da sorte, como forma de “saneamento social”.

Apesar desses episódios, ou mesmo por causa deles, o Governo Vargas experimentou um progresso considerável no ensino profissional, modelado em várias ações governamentais, embora todas elas continuassem a perpetuar o dualismo entre o ensino profissional e a educação geral.

A própria Constituição de 1937, em seu artigo 129, definia o papel do Estado, das empresas e dos sindicatos na formação profissional das classes menos favorecidas. 82 Para dar regulamentação ao dispositivo constitucional, o Ministério da

Educação elaborou dois anteprojetos para implemento da aprendizagem técnica da classe operária menos favorecida em âmbito federal, um destinado à classe patronal e outro aos sindicatos dos empregados.83

O anteprojeto não agradou à Confederação Nacional da Indústria (CNI) nem à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), devido às despesas com

82 CF/37. Art 129 –“ À infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado. Cumpre- lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais. É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado, sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo Poder Público”.

83 O primeiro estipulava a criação de escolas de aprendizes industriais que deveriam ser mantidas e dirigidas pelos sindicatos patronais e pelas indústrias. As escolas deveriam ter oficinas próprias destinadas à prática dos aprendizes trabalhadores entre 14 e 18 anos. Os cursos durariam de 8 a 16 horas semanais, em horário coincidente com o período de trabalho, remunerando-se a atividade produtiva do menor. Cada empresa industrial teria a obrigação de empregar um número de trabalhadores menores igual ou superior a 10% do efetivo total de operários. Ao Estado caberia a tarefa de manter escolas de aprendizes onde os sindicatos e as indústrias não fossem capazes de fazê-lo. Os Ministérios da Educação e do Trabalho fiscalizariam as empresas e aplicariam sanções às infratoras. Além desse projeto relativo ao aprendizado dos menores que trabalhavam, o Ministério da Educação elaborou outro, referente aos menores não trabalhadores, de 11 a 14 anos de idade, sob a responsabilidade dos sindicatos dos empregados. Projetava-se a criação de escolas pré-vocacionais destinadas aos filhos ou irmãos de operários sindicalizados que idealmente houvessem terminado o curso primário com 11 anos, e não tivessem atingido, ainda, a idade mínima para o ingresso na força de trabalho. As escolas seriam mantidas com recursos do imposto sindical, geridos conjuntamente por representantes dos sindicatos e dos Ministérios da Educação e do Trabalho (CUNHA. Op. cit., p. 36).

salários dos aprendizes e mestres e gastos com instalação de oficinas que seriam impostos às empresas. Segundo Cunha,

os líderes industriais não perceberam o quanto o anteprojeto atenderia aos seus interesses a médio e a longo prazo, ou priorizaram o lucro imediato – de um modo ou de outro, nada de contribuir financeiramente para a formação profissional da força de trabalho que eles próprios empregavam.84

Por outro lado, as indústrias dependiam dos favores governamentais em termos fiscais, alfandegários e creditícios, razão porque optaram em não responder à consulta ministerial para o anteprojeto, demonstrando uma resistência passiva.

Diante disso, o Governo baixou o Decreto-lei n. 1.238, de 1939, que obrigava as empresas com mais de quinhentos empregados a manter cursos de aperfeiçoamento profissional para adultos e adolescentes, cujo regulamento ficaria a cargo dos Ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde. Para tanto, as empresas deveriam reservar locais para a refeição dos trabalhadores aprendizes e promoverem o seu aperfeiçoamento profissional, não só de menores como também de adultos.

A reação dos empresários passou, então, da forma passiva para a ativa, recusando-se a cumprir as determinações do Decreto, por entenderem que tal obrigação seria do Estado, com a participação dos próprios trabalhadores, não devendo ser ônus das empresas. Mas diante da ameaça do próprio Presidente Getúlio de implementar o programa constitucional mediante o repasse de todos os recursos arrecadados do setor industrial à administração e gestão dos sindicatos dos trabalhadores, não houve alternativa ao CNI e à FIESP senão consentir e assumir, como criação sua, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), que resultou do Decreto-lei n. 4.048, de 1942.

O SENAI, então, deveria ser mantido e administrado pelas indústrias, porém com estrutura federativa, quer dizer, administrados no âmbito dos Estados e controlados pela União. As contribuições seriam estabelecidas pelo número de operários cadastrados em cada uma das empresas filiadas, cuja arrecadação seria de

responsabilidade dos respectivos órgãos previdenciários para posterior repasse ao SENAI de cada região.

Cabe salientar, portanto, que a criação do SENAI não foi iniciativa voluntária da classe industrial. Ao contrário, o que se viu inicialmente foi uma resistência à instituição de uma aprendizagem que associasse escola e trabalho, que só foi implementada pela ação arbitrária do Estado, embora em proveito também, e principalmente, da classe patronal. A esse respeito, Cunha comenta ser interessante o fato de se constatar que nem sempre os interesses de determinadas categorias nascem de forma consciente dentro delas: “Vale a pena focalizar um fato sócio-político importante: o suporte da consciência de uma classe social pode estar fora dessa classe”, como foi o caso do SENAI, mas uma vez constatada a funcionalidade do projeto para os interesses dos industriais, “eles reescreveram a história, de modo a colocar-se como os autores da idéia”.85

A vitória do Governo foi determinante para a aprovação de outros projetos que levaram o modelo de aprendizagem do SENAI também aos setores do comércio (SENAC, Decreto-lei n. 8.621, de 1946), da produção rural (SENAR, Lei n. 8.315, de 1991), dos transportes (SENAT, Lei n. 8.706, de 1993) e, por último, do cooperativismo (SESCOOP, Medida provisória n. 2.168-40, de 2001), compondo o chamado Sistema “S” de aprendizagem profissional, que é mantido por recursos privados e administrado pelas próprias entidades filiadas, mas sob o controle e a vigilância estatal.86