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A crise do setor público e a “solução” democrática

CAPÍTULO 2 – A conjuntura interna brasileira e as perspectivas possíveis e passíveis de

2.3 A crise do setor público e a “solução” democrática

O esgotamento do financiamento externo explicitou internamente a crise do setor público. Combinadas às pressões e condicionantes externos, emergem, no momento, crescentes exigências internas, que, em conjunto, acabaram por ruir com o modelo desenvolvimentista. Ou seja, a uma questão primordialmente econômica, inevitavelmente somou-se uma ruptura do modelo político, uma vez que desconstruiu a base de fundamentação e legitimação do regime. A ruptura do financiamento externo, influenciada pelo 2o choque do petróleo (1979) e pela declaração da moratória mexicana, juntamente com a

49Os grifos são do autor.

50CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza: impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial.

exigida contrapartida interna da transferência de recursos reais ao exterior, abalaram e limitaram a esfera de atuação do Estado Brasileiro.

A questão da dívida bloqueou a rota que se traçava para o desenvolvimento, anunciando uma crise do modelo que culminaria em seu fim na década de 90. As contradições do modelo desenvolvimentista legaram-nos uma década perdida, impossibilitando a reprodução do modelo de inserção brasileira que encontrava nas “brechas” internacionais uma possibilidade de explorar suas potencialidades (GONÇALVES, 1992).

Coube ao Brasil, no novo contexto, viabilizar uma rápida geração de superavits comerciais por meio de renúncia fiscal e de um aumento no volume dos subsídios concedidos, ao mesmo tempo em que o devia arcar com o pagamento de uma elevada taxa de juros. Belluzzo (1988) traz a contradição à tona quando da maxidesvalorização efetuada em 1983, a qual desequilibra a capacidade de pagamento do Estado frente às suas receitas. Efetivamente temos que, trabalhando pelo superavit comercial, o governo deteriora ainda mais suas finanças públicas. Ao lado dessa política, o fato de o setor público ter assumido a dívida privada sem produzir bens comercializáveis para arcar com esse novo ônus só veio piorar a situação já deteriorada.

Internamente, a inflação que teve lugar pós-maxidesvalorização reduziu significativamente a carga tributária, levando então, a uma desvalorização nas receitas estatais. As medidas tributárias que se deram com vistas a aumentar o imposto direto não foram suficientes para compensar a queda na arrecadação e nem mesmo as isenções fiscais. Para autores como Teixeira e Biasoto Jr (1988), o problema da diminuição da carga tributária estava diretamente relacionado com a redução drástica nos impostos indiretos em razão do

drive exportador a que o Brasil foi imposto e ao qual se propôs.

O peso do pagamento da dívida externa em moeda nacional (maxi-desvalorizada) contribuiu para a elevação da mesma no período. Nesse sentido, deterioravam-se as condições externas do país que tinha sua autonomia reduzida e subordinava-se, cada vez mais, às potências centrais, uma vez que, esse aumento da dívida externa criava um compromisso entre as duas partes. Alterando assim, o direcionamento de suas relações com o meio externo.

Na segunda metade da década de 1980, a economia brasileira se encontrava comprometida pelo inchaço do Estado e a falência de sua capacidade de coordenar a esfera produtiva. O impacto interno da crise externa provocou um desgaste do regime autoritário no país, que aumentava ainda mais com a perda de eficiência do Estado.

Para Fiori (1995), o período Geisel foi sintomático nesse sentido – ao tentar impor um novo movimento de centralização estatizante, não encontrou mais os apoios políticos de

antigamente. Mas mesmo assim, a decomposição da coalizão governante foi lenta, devido em grande parte à completa falta de alternativa, para os defensores do regime, que impedia que o mesmo fosse substituído.

Quando o general Figueiredo assumiu o governo, tinha-se por esgotada a tentativa de seguir com políticas de crescimento e postergar ainda mais o ajuste externo que era exigido. A dependência do capital estrangeiro forçava então a adotar suas preferências. A crise interna reforça essa dinâmica e o governo acaba por adotar uma política ortodoxa de alinhamento ao FMI baseada no aumento da taxa de juros, no corte de subsídios e do gasto público e contenção da demanda interna para gerar excedentes exportáveis por meio do arrocho salarial.

Tais medidas não foram suficientes para conter a inflação. A estagnação do

crescimento ampliava o descontentamento interno51 e, pouco a pouco, o governo militar ia perdendo por completo sua legitimidade. Esse processo conduz ao aumento da oposição, culminando num ambiente desfavorável a novos planos do regime militar que enfrentassem eficazmente a crise econômica. Em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, a situação se apresenta menos agitada e, com a posse do seu vice Sarney, um cenário de confiança deu margem à criação de um novo plano econômico.

A equipe de governo montada por Sarney refletia a heterogeneidade da coalizão que apoiou a transição democrática – já havia nessa equipe, apesar da predominância de orientação nacional-desenvolvimentista, alguns críticos desse modelo de desenvolvimento que não mais se beneficiavam por ele. Estes eram favoráveis a uma revisão do nacional- desenvolvimentismo que se enquadrasse melhor na agenda liberal em consolidação na economia internacional (VELASCO E CRUZ, 1997).

As medidas econômicas implementadas no governo Sarney não foram capazes de, internamente, resolver o problema da dívida externa que havia se estabelecido – assiste-se, no período que vai de 1985 a 1989, a um explícito descontrole das finanças públicas

(CARNEIRO, 2002).Os sucessivos planos econômicos que seu governo implementou,52 bem

como a passagem de 4 diferentes Ministros da Fazenda no período, denotam que o abalo interno evidenciado e, de certa forma, provocado pela crise da dívida externa não mais poderia ser solucionado isoladamente.

51A partir de 1978 o crescimento do movimento social é cada vez mais patente, manifestando-se na Greve do

ABC, na efervescência dos Movimentos Estudantis, ao mesmo tempo em que surgia o novo sindicalismo, o movimento contra a carestia e outros movimentos populares. Esse forte clima de contestação social vai refletir na Constituição de 1988, à qual atende relativamente ao povo, também em decorrência deste cenário interno e dessa mobilização popular. Em parte, esse é um ponto que pode ser colocado nos porquês do Brasil acatar mais tardiamente as medidas sugeridas no Consenso de Washington que seus vizinhos.

52Plano Cruzado I e II, Plano Bresser e Plano Verão. Para uma discussão mais detalhada acerca de cada plano e

As políticas internas, ainda que seguissem o que lhes era ditado pelo FMI e pelo Banco Mundial, ou que se valesse de instrumentos mais heterodoxas de congelamento dos preços não mais conseguiam conter a inflação. A queda do superavit primário, além de levar a uma política fiscal contracionista, cobriu, ao longo da década, uma parcela cada vez menor da taxa de juros. Quatro Planos foram implementados no sentido de conter a inflação e sanear os desequilíbrios na balança de pagamentos. No entanto, conseguiram apenas propor um equilíbrio ou contenção temporários no curto prazo. A situação voltava a se reproduzir, representando um cenário instável interno que perdia, a cada Plano, sua credibilidade.

Apesar do enfoque dado no combate à inflação, a taxa anual da mesma quadruplicou do início de 1985 até o final de 1988. Os planos produziam nada mais que uma contenção temporária da inflação sem atuar sobre os desequilíbrios estruturais da economia. Tampouco foi possível reduzir a transferência de recursos reais para o exterior. O desequilíbrio das contas do governo se agravava. Os trabalhadores mostravam-se insatisfeitos com as desvalorizações salariais.

Ao fim de 1989, a sucessão de choques de congelamento já não mais se fazia eficaz enquanto instrumento de combate à inflação. O grau de desconfiança fez com que a taxa de juros se elevasse e os prazos fossem encurtados até o limite diário. Tal processo evidenciou a crise do financiamento público – levando a uma inevitável crise de confiança e decorrente fuga da riqueza financeira para ativos reais – crise esta que se iniciou em 1989 (MODIANO,1992).

Com o insucesso do governo Sarney, ao lado da ausência da retomada do crescimento, deram-se as condições necessárias para que a orientação econômica liberal (antes minoritária) se tornasse hegemônica no aparato burocrático do Estado brasileiro e no bojo da elite econômica.

Sendo assim, podemos afirmar que as medidas para arcar com o ônus da dívida externa e garantir os superavits necessários estavam deteriorando cada vez mais a situação interna – não controlaram (e até incrementaram) a inflação, tampouco conseguiram estabelecer um ambiente saudável para o crescimento econômico. A desaceleração do crescimento a partir de 1986 foi principalmente decorrente do mau desempenho da indústria53 e, ao lado das pífias taxas de investimento,54 o cenário que se estabelecia não se fazia animador.

53“cujo produto real cresceu apenas 1,8 ao ano entre 1980 e 1988.” (MODIANO, 1992, p. 382).

54A baixa taxa de investimento foi decorrente da insuficiência de poupança para tal; a base externa praticamente

Depois do surto de crescimento de 1968 a 1974, denominado milagre econômico, o II PND não foi capaz de superar as contradições internas inerentes ao próprio modelo desenvolvimentista e as recentralizações estatizantes e desenvolvimentistas já não encontravam mais respaldo na base heterogênea que o sustentara. Os militares, também divididos, já não encontravam mais solução possível numa “fuga para frente”. O Estado se vê paralisado e o velho remédio já não era viável. A base heterogênea interna em que o modelo se sustentava, não poderia acarretar em outro ponto que não a ineficiência do Estado, a qual impedia avanços na dinâmica econômica e social do país. O Estado se apresentava de tal forma desgastado que, com o encerramento do regime autoritário em 1989, na primeira eleição direta para presidente:

o povo não havia apenas votado por um político, até há pouco obscuro: Fernando Collor. O mandato era claro: o povo havia votado por um programa de governo, ou de sociedade, que se propunha a eliminar a inflação, a extirpar a corrupção, a redefinir o Estado, a inserir o Brasil no mundo moderno. (MOREIRA, 1996 apud CORREIA, 2005, p. 105).55

Para evitar um avanço da esquerda naquele contexto, diante da possibilidade da eleição de Lula, as classes dominantes apóiam em massa o candidato que tinha mais chances de vencê-lo. Estabelecem-se então, na década de 1990, com a eleição de Fernando Collor, as bases para uma transformação da economia brasileira, visando sua internacionalização. Decorrente da insustentabilidade e descontentamento interno, o projeto de industrialização com proteção do mercado interno foi abandonado em nome das políticas preconizadas pelo Consenso de Washington (CORDEIRO; SANTOS, 2005). O novo presidente fez-se valer das medidas neoliberais para selar o fim do modelo desenvolvimentista, desmantelando sua legitimidade, marcando assim a transição do modelo de inserção externa brasileiro.