• Nenhum resultado encontrado

As décadas de 1970 e 1980 compreendem uma série aspectos políticos importantes que vão dar sinais de como o cenário internacional pode configurar-se de forma mais ou menos favorável à inserção de países de menor peso expressivo. Nesse momento, passa-se de uma condição de crise dos países centrais que permite uma margem de atuação maior de países semiperiféricos; para uma retomada da hegemonia norte-americana que trará novas implicações às relações entre os países. Nesse sentido, trataremos aqui de alguns aspectos da Guerra Fria e do contexto da bipolaridade, bem como das implicações do fim da União Soviética e da força que adquire o modelo neoliberal.

A Guerra do Vietnã é importante na compreensão do cenário político, por representar a ruptura do consenso nacional norte-americano em torno da política externa. Para grande parte da opinião pública norte-americana, a insanidade da guerra se mostrava cada vez menos aceitável.15

A estratégia da détente16 também funcionou internamente como uma tentativa de

escapar a esse impasse. Os Estados Unidos buscavam minimizar, o quanto possível, os custos simbólicos da saída do país do Vietnã, visando sempre remover esse grande fator de dissenso que a guerra representava. No mesmo sentido se dão os acordos Salt I e II com a União Soviética – reconhecendo a paridade militar e abrindo amplo processo de negociação, ao lado da normalização das relações diplomáticas com a China. As mudanças que compunham a

détente possibilitaram também a abertura de países do bloco socialista ao investimento do

capital privado europeu e norte-americano, contribuindo para mitigar as dificuldades

15

Nesse sentido, “a infindável [...] Guerra do Vietnã destruiu o consenso, deslocou o poder do centro para os extremos, e tornou a construção de maiorias uma tarefa penosa. Moderados e liberais se juntaram [...] numa coalizão de esquerda que, pela primeira vez, desfrutou de poder político real... Os liberais, conservadores e direitistas que continuaram a apoiar a guerra viam a defecção dos liberais e moderados como [...] traição. Por volta de 1965, o colapso sistemático do sistema de política externa norte-americano tinha começado, e cinco anos depois estava bem avançado. O centro, lastro da maioria e do consenso, estava estilhaçado. Os extremos tinham agora a preponderância no poder”(Destler, Gelb, Lake, 1988, p. 22 apud VELASCO E CRUZ, 2007, p. 376). DESTLER, L. M. et al. A breakdown: The impacto f domestic politics on American Foreign Policy. In: KEGLEY JR, C.W.; WITTKOPF, E.R. The Domestic Sources of American Foreign Policy: Insights and Evidence. New York: St. Martin’s Press, 1988.

16Détente: afrouxamento ou distensão nas relações tensas entre nações/governos. A détente funcionou como um

econômicas nos Estados Unidos – na medida em que diminuiu a pressão sobre o orçamento militar.17

No entanto, essas mudanças não conduziram a um equilíbrio estável. Ainda sob o impacto do Grande Embargo decretado pela Opep no final de 1973, a segunda metade da década de 1970 seria, para os Estados Unidos, marcada por uma série de acontecimentos alarmantes, que vão desde as diversas revoluções de cunho socialista em todo o mundo até os processos de descolonização da África. É possível, nesse período, ver a presença ativa da União Soviética e aliados no continente africano. E o que mais pesava nesse contexto, segundo Velasco e Cruz (2007, p. 378), era “o desconcerto causado pela transgressão da regra tácita, segundo a qual apenas os Estados Unidos podiam intervir em qualquer canto do planeta”. Soma-se ainda a esse cenário, a Revolução Portuguesa, a crise do regime franquista, a queda da ditadura dos coronéis e o avanço eleitoral do Partido Comunista na Grécia.

O que se quer mostrar com isso é que, no final da década de 1970 o mundo estava imerso em grande crise, que perpassava as esferas econômicas e políticas. Assistia-se assim à ruptura de equilíbrios antigos; o cenário de mudanças parecia abalar as estruturas de poder e criava-se a impressão, e de fato por um tempo assim aconteceu, de uma nova gama de possibilidades aos países periféricos (VELASCO E CRUZ, 2007). Isso é materializado na relação de oposição entre os cenários que se abriam entre as nações mais abastadas e as mais pobres neste momento. Enquanto as economias capitalistas avançadas “punham o pé no freio” antes do projeto de reafirmação hegemônica, os países em desenvolvimento continuavam crescendo por toda a década; tanto que um grupo de países nessas condições – incluindo Brasil, México, Taiwan e Coreia do Sul – ampliara em mais de 40% sua participação no produto mundial.18

Não apenas economicamente, esse cenário esperançoso das economias em desenvolvimento também mostrava sua faceta na esfera política. Conquistavam novas posições, devido ao sucesso econômico que vinham conquistando, também na arena diplomática. Nesse sentido, temos a criação do Movimento dos Não-Alinhados, na Conferência de Bandung (1955); a nacionalização do Canal de Suez (1956); tendo em vista a Revolução Cubana (1959), Kennedy declara na 16ª Assembléia Geral da ONU (1960) “A Década do Desenvolvimento das Nações Unidas”, e decorrem daí as iniciativas de seu

17Entre os anos de 1968 e 1973 o governo Nixon reduziu em 1,2 milhões os efetivos de suas Forças Armadas

(VELASCO E CRUZ, 2007).

18Não se trata de um fato miraculosos, uma vez que, nesse momento esses países contavam com uma facilidade

enorme em conseguir créditos a preços bastante módicos, decorrente da liquidez desenfreada proporcionada pela necessidade de reciclagem dos “petrodólares”.

governo nesse sentido: Aliança para o Progresso, os Peace Corps; A Conferência de Cairo sobre o Problema dos Países em Desenvolvimento (1962); a Declaração Conjunta dos Países em Desenvolvimento, na 18ª Assembléia Geral da ONU (1963), dando origem ao “Grupo dos 77” e, por fim; a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, que viria a se transformar na organização permanente UNCTAD (1964), sob a liderança intelectual de Raúl Prebisch.19

Insere-se ainda nesse contexto de afirmação política de países em desenvolvimento, a postura da Opep, no final de 1973, que contava com países membros que há pouco ainda eram colônias. A partir de 1968, inicia-se uma pressão mais enfática por mudanças, por parte da Opep, que conduziu ao Acordo de Teerã, o qual, por sua vez, elevava o preço do óleo e previa aumentos futuros para acompanhar a inflação (ADAMS, 1993).

No entanto, esse período de esperanças e maiores espaços aos países em desenvolvimento deve ser compreendido como um momento complexo, repleto de indefinições e redefinições. Nesse sentido, face à profundidade da crise que permeava esse cenário, a reestruturação que se seguiu serviu para reforçar as hierarquias de poder,

criando um quadro incomparavelmente mais restritivo para aqueles países os quais, um a um, foram sendo compelidos a sacrificar suas veleidades de desenvolvimento nacional autônomo e a enquadrar-se na disciplina ditada pelos protagonistas da economia capitalista mundial (VELASCO E CRUZ, 2007, p. 380).

Acreditamos que essas palavras de Velasco e Cruz relativizem sobremaneira o fator interno da crise dos modelos de desenvolvimento, nos interessando aqui o caso brasileiro, e o papel do novo consenso que se forma internamente a respeito da maneira de implementar a adesão a essas reformas. Não desconsideramos o peso da pressão externa e da vulnerabilidade interna nesse processo, mas, como desenvolveremos mais adiante, não se tratou de uma imposição externa exclusivamente. De qualquer forma, essa reestruturação das hierarquias de poder internacional vai ser fundamental, mas não determinante, na definição de um novo quadro de possibilidades de ação aos países do globo, muito mais restritivo.

19O ponto mais alto, simbolicamente, desse questionamento da arquitetura econômica vigente, foi a unânime

aprovação do projeto de Declaração e Programa de Ação sobre a Nova Ordem Econômica Internacional, proposto pelos países em desenvolvimento na 6ª Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU – convocada sob pressão do Movimento dos Não-Alinhados. A força simbólica desse ato está comprovada pelo cuidado com que a questão foi tratada pelos representantes dos Estados Unidos – em que pese a ação moderadora de Kissinger, vencendo a resistência de países industrializados e permitindo a incorporação no discurso oficial da ONU de um conjunto de princípios que, se efetivados, acarretariam em mudanças significativas na estrutura das relações econômicas internacionais (ADAMS, 1993).

Para Velasco, esse processo de reviravolta resultou de mudanças “moleculares” nos países-chave – Estados Unidos principalmente, mas também Inglaterra – onde essas mudanças conduziram a uma ruptura política de grande estridência.

Enquanto berço do processo de “reconversão liberal”, a Inglaterra tem uma trajetória interessante. Este país ocupa um papel pioneiro nas políticas do Welfare State e o mesmo se segue na esfera das políticas sociais desde a Segunda Guerra Mundial, consagrando experiências avançadas, como o sistema público de saúde. No mesmo sentido, o TUC (Trade

Union Congress), ao lado de uma central sindical forte, ao conquistar o governo nas primeiras

eleições gerais depois da derrocada da Alemanha nazista, foi responsável por um amplo programa de nacionalização, sob a bandeira do socialismo democrático (VELASCO E CRUZ, 2007). No entanto, a trajetória econômica da Inglaterra não fora uma das mais bem sucedidas nesse momento, uma vez que, a pioneira da revolução industrial saía da Guerra com um sistema produtivo envelhecido e uma estrutura empresarial defasada frente aos desafios da concorrência internacional intensificada pós-descolonização e liberalização comercial internacional sob o regime do GATT.

Nesse ínterim, ensaiaram-se alguns programas de política industrial visando à superação desses entraves, no entanto, diferentemente do que se verificou em todo o continente – onde, por diferentes vias, funcionou a conexão finanças-indústria necessária para sustentar os grandes investimentos no projeto de modernização da economia em curso – na Inglaterra, o consenso em torno de “finanças industrializantes” nunca chegou a se realizar. Outro ponto importante para a Inglaterra no período foi a tentativa de manutenção da herança da posição de Londres como o principal empório e praça financeira do mundo. O esforço para preservar essa condição provocou duas consequências relevantes: a) A fim de atrair mais dólares, induziu a um afrouxamento nas regulações sobre as operações financeiras que acompanhavam o fluxo de investimentos dos Estados Unidos na Europa – levando à constituição do mercado de eurodólares, um dos antecedentes principais da liberalização financeira, que figura como central no processo de reestruturação da economia mundial sob os auspícios do neoliberalismo; b) Transformou a Inglaterra em um país que figurou entre os críticos (das teorias e práticas) das políticas intervencionistas do Estado de Bem-Estar Social. Nesse sentido, ocupando cátedras na academia e valendo-se da influência que tinha na imprensa especializada e com auxilio dos think tanks criados para atuar como “órgãos de luta”, os neoliberais fizeram de Londres o quartel-general da guerra que travaram contra as ideias “coletivistas”. Contaram para tal, com o decidido apoio dos interesses que estavam sediados na cidade de Londres (VELASCO E CRUZ, 2007).

A economia inglesa, influenciada por esses elementos, exibiu no período um desempenho medíocre e em meados de 1970 a configuração política estava prestes a explodir. O Partido Trabalhista de Harold Wilson estava novamente no poder em 1974, carregando na memória os infortúnios da política de estabilização adotada seis anos antes, em defesa da libra esterlina que sofrera ataques especulativos consideráveis. Nesse momento, divididos que estavam devido aos altos índices de desemprego e da recessão, contavam ainda com dissidências no relacionamento entre o partido e sua base sindical – pressões que acabaram fazendo o Partido pender para a esquerda, culminando na plataforma “Contrato Social”, que anunciava expansão econômica e geração de empregos como condição necessária para a retomada de investimentos e reconversão da indústria. Somavam-se a isso as tensões inflacionárias que pressionavam a libra, influenciando o governo sucessor de Wilson, a comprometer-se com as medidas de austeridade acordadas com o FMI (HARMON, 1997

apud VELASCO E CRUZ, 1997).20

O novo contexto internacional de câmbio flutuante, ao lado dos choques do petróleo, garantiu a essa estabilização recessiva um desenrolar distinto. Margareth Thatcher, no comando do Partido Conservador desde 1975, lança-se nas eleições de 1979 em

[u]ma cruzada não exatamente contra o governo, mas contra as instituições e as políticas que os trabalhistas e os velhos dirigentes de seu próprio partido administraram conjuntamente nas décadas precedentes. Sob o efeito exasperante de greves prolongadas que paralisavam os serviços públicos, com o sentimento de estarem vivendo um processo de decadência já em fase avançada, os eleitores ingleses foram chamados a escolher entre um programa com fórmulas conhecidas, e uma campanha flamante que prometia a regeneração por meio de um corte radical com o passado. (VELASCO E CRUZ, 2007, p. 383).

A vitória de Tatcher em 1979 vai marcar o início da reviravolta neoliberal. No entanto, as mudanças mais enfáticas e profundas nesse sentido ocorreram nos Estados Unidos.

Uma série de transformações anteriores caracteriza essa nossa afirmação, considerando para tal o novo ciclo de inovações tecnológicas que compreende as revoluções da tecnologia da informação, os supercomputadores e o desenvolvimento da internet – intimamente ligado à pesquisa para fins militares. Outro processo fundamental fora a liberalização financeira, condicionada pela emergência de um mercado livre de capitais em conexão com a constante internacionalização do capital industrial nos Estados Unidos a partir dos anos 1950. A dianteira do processo de liberalização foi tomada pelos norte-americanos, em decorrência da dificuldade de implementar os controles administrativos vigentes, em face

do aumento das atividades dos agentes privados. A iniciativa se deu em 1974, com a decisão oficial de abolir os controles de capital, a qual só foi seguida pela Inglaterra cinco anos depois.

Coroando essa tendência, o governo norte-americano adota um unilateralismo agressivo na esfera do comércio internacional, definindo uma nova agenda que compreendesse mudanças fundamentais no regime vigente. A administração Reagan nessa fase é marcada por seu fundamentalismo de mercado; computando denúncias constantes de práticas comerciais unilateralmente consideradas desleais e aplicando sistematicamente sanções contra parceiros acusados de se valerem dessas práticas. Na esfera multilateral, a ofensiva mais representativa dessa nova política fora a da inclusão dos “novos temas” na agenda da nova rodada do GATT (VELASCO E CRUZ, 2007). Mais adiante veremos de que forma essa postura norte-americana vai influenciar os posicionamentos externos brasileiros ao longo da década de 1980.

No entanto, as premissas dessas políticas norte-americanas foram esboçadas ao longo da década de 1970, com a institucionalização do princípio da defesa contra o “comércio desleal” (unfair trade), na Seção 301 da Lei de Comércio de 1974; ao lado de todo o arcabouço técnico e conceitual que deu suporte às negociações da Rodada Tóquio do GATT sobre barreiras não tarifárias (normas técnicas, compras governamentais e subsídios) que ultrapassavam os limites nacionais e passavam a visar à harmonização de políticas domésticas. Segundo Velasco e Cruz (2007), essas negociações desembocaram na aprovação de códigos voluntários – de implementação duvidosa – que tinham a adesão de poucos países além dos Estados Unidos, Japão e Europa. Ainda que se considere os resultados dessa rodada pouco expressivos, ela preparou, conceitual e tecnicamente, o terreno para as negociações mais contundentes que seriam introduzidas na rodada Uruguai, posteriormente.

Meses após o encerramento da Rodada Tóquio em abril de 1979, Paul Volcker anunciava o aumento dos juros norte-americanos, visando conter uma inflação que já estava na casa dos 14% ao ano. Ao lado da política econômica, o período Reagan marca um momento de associação automática com uma enorme elevação nos gastos militares, envolvendo apoio material e financeiro aos Contra na Nicarágua e aos fundamentalistas no Afeganistão. Data também desse período a noção de “Guerra nas Estrelas” e a retórica belicosa que definia o adversário como “o Império do Mal”. A noção de détente via-se ultrapassada.

A possibilidade de Guerra, no entanto, afastava-se proporcionalmente na medida em que os gastos aumentavam. A União Soviética adentrava a década de 1980 com uma

economia que evidenciava sinais de crise e carecia de mecanismos que assegurassem a sinergia entre os investimentos militares e a produção civil. Ao mesmo tempo em que, enfraquecida pelo peso da burocracia de sua organização político-econômica arcava com os custos de sua rigidez e intolerância política, perdendo gradativamente seu poder de irradiação ideológica, posicionando-se na defensiva (VELASCO E CRUZ, 2007).

Ainda que a União Soviética estivesse debilitada também pelo aumento da vulnerabilidade externa, devido ao aumento da flexibilidade nas transações econômicas com o ocidente, através dos sócios do Comecon21, e mergulhada na crise da dívida nos anos 1980, sua derrocada não estava clara. No entanto, no ano de 1986, o mundo fora surpreendido pelo anúncio da Perestroika e Glasnost. Três anos mais tarde, a Guerra Fria era encerrada com a queda da União Soviética.22

Ao lado, então, da reestruturação da economia mundial, a ser tratado no item que segue, a dissolução do bloco socialista vai influenciar principalmente em dois escopos o novo cenário internacional. O argumento neoliberal ganha força com a derrota do modelo alternativo, evidenciada pela derrocada do próprio Estado Soviético. Num segundo momento, a dissolução do bloco socialista, ao por fim à lógica política ditada pela bipolaridade, incita uma nova configuração de poder mundial que evidencia a potência e o modelo norte- americano como hors concours.23

A queda do Muro de Berlim e o fim do bloco socialista tiveram implicações consideráveis aos países do sul, especialmente os situados na área de influência direta da potência global. O fim do contrapoder soviético ao poder norte-americano esfacelou a coalizão do Terceiro Mundo, que se valia dessa dualidade como elemento de barganha (LIMA, 2005).