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A cultura e o processo identitário do professor

2.2 DE PROFESSOR A PROFESSOR-ORIENTADOR

2.2.2 A cultura e o processo identitário do professor

Antes de abordar o processo identitário docente é importante situar o leitor do que considero como cultura, visto ser algo inerente ao ser humano, algo que constitui o sujeito em todas as suas dimensões e, por conseguinte, também faz parte do que chamamos de identidade. Não tenho a pretensão nesta pesquisa de um aprofundamento nas questões conceituais que circundam a cultura, uma vez que se trata de um tema amplo. Meu objetivo aqui é levantar aspectos que possam subsidiar

a compreensão de como ela perpassa a vida dos professores utilizando como aporte as ideias de Stuart Hall (1997; 2016), da cultura como valores compartilhados.

Existem muitas maneiras de se compreender a cultura. Hall (1997) diz que cultura está relacionada a um conjunto de significados partilhados por um grupo ou sociedade por meio da linguagem. O autor, no livro Cultura e Representação (HALL, 2016) menciona vários conceitos de cultura com vieses divergentes, indo de uma concepção mais tradicional (dividindo-a em “alta cultura” e “cultura de massa”) a uma visão mais social.

Para Hall a “cultura não é tanto um conjunto de coisas – romances, pinturas ou programas de TV e histórias em quadrinhos -, mas sim um conjunto de práticas” (HALL, 2016, p. 20, grifo do autor). Assim, afirmar que duas pessoas pertencem a uma mesma cultura significa dizer que elas fazem uma leitura do mundo de forma semelhante e expressam seus sentimentos e pensamentos de modo que se estabeleça uma compreensão entre ambos.

A cultura não está baseada apenas em elementos concretos, pois abrange também “sentimentos, emoções, senso de pertencimento, bem como conceitos e ideias” (HALL, 2016, p. 20). Sendo assim, os significados culturais são amplos, e quem dá sentido aos indivíduos, objetos e acontecimentos são os participantes de um grupo ou sociedade (HALL, 2016).

A cultura, podemos dizer, está envolvida em todas as práticas que não são geneticamente programadas em nós (diferentemente do movimento involuntário do joelho ao ser estimulado por um martelo), mas que carregam sentidos e valores para nós, que precisam ser significativamente

interpretadas por outros, ou que dependem do sentido para seu efetivo

funcionamento. A cultura, desse modo, permeia toda a sociedade. Ela é o que diferencia o elemento ‘humano’ na vida social daquilo que é biologicamente direcionado. Nesse sentido, o estudo da cultura ressalta o papel fundamental do domínio simbólico no centro da vida em sociedade (HALL, 2016, p. 21, grifos do autor).

Portanto, ao atribuirmos um sentido estamos relacionando-o a “todos os diferentes momentos ou práticas em nosso ‘circuito cultural’ – da construção da identidade e na demarcação das diferenças, na produção e no consumo, bem como a regulação e conduta social” (HALL, 2016, p. 22). De acordo com Hall (2016, p. 23), “membros da mesma cultura compartilham conjuntos de conceitos, imagens e ideias que lhes permitem sentir, refletir e, portanto, interpretar o mundo de forma semelhante”. Sendo assim, gostaria de dar foco ao que venho tratar neste estudo: os professores, em especial, os professores-orientadores que participam de FCs. Esses

professores, ainda que em determinadas circunstâncias estejam afastados geograficamente, constituem um grupo que compartilham elementos de uma mesma cultura, partindo de uma compreensão mútua dentro de uma linguagem própria a esse círculo social.

A linguagem emerge como uma prática fundante na constituição cultural. Hall (2016) menciona o ambiente museal, a música, e os jogos de futebol como modelos representacionais de uma linguagem. Podemos ir além e dizer que as FCs também podem constituir um tipo de linguagem, pois se trata de “uma prática simbólica que concede sentido ou expressão à ideia de pertencimento a uma cultura nacional ou de identificação de uma cultura local” (HALL, 2016, p. 25). São práticas comuns a todos os participantes, ainda que em cada grupo possa haver variações, a elaboração de um projeto, o processo de orientação estabelecido entre professor e estudante, a escrita de um projeto (mesmo que em moldes diferenciados em cada evento) e um material a ser exposto. Essa representação está atrelada à identidade e conhecimento, e o sentido é compreendido como algo a ser produzido (HALL, 2016). “Portanto, é por meio da cultura e da linguagem, pensadas nesse contexto, que a circulação de significados ocorre” (HALL, 2016, p. 25).

Assim, estabelece-se uma concepção de cultura como um conjunto de significados compartilhados, compreendidos dentro de um determinado grupo como algo aplicável aos professores e ao contexto das FCs.

Numa construção social, situada em uma cultura e vinculada a um contexto histórico, produzimos nossas identidades, sejam elas as muitas que nos aproximam dentro de determinados grupos, como o ser mulher, feminista, pesquisadora, professora, como aquelas que nos diferenciam, por meio das marcas que produzimos em nós mesmos (PEREIRA, 2013).

Nessa direção, Nóvoa (2000, p. 16, grifo do autor), ao tratar sobre o que considera como identidade, afirma:

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão. Por isso é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um sente e se diz professor.

Lapianski (1990 apud MOITA, 2000) diferencia a identidade social da identidade individual. A identidade social, para ele, consiste em características que poderiam identificar o sujeito visto de fora, enquanto a identidade pessoal está

atrelada à percepção do sujeito sobre si mesmo, sobre como ele se define (LAPIANSKI, 1990 apud MOITA, 2000). De acordo com Woodward (2000), a representação, vista como um processo cultural, contribui para a construção dessas identidades individuais e coletivas. E nesse jogo do “pertencer” e “não pertencer” a determinados fatores, como nacionalidades, grupos, religiões, podemos dizer que a identidade é marcada pelo que nos diferencia (Woodward, 2000). Silva (2000, p. 76) conclui que “a identidade e a diferença são criações sociais e culturais”.

Na dimensão profissional, enfocando na identidade docente, Imbernón (2010, p. 82) coloca:

Quando falamos de ‘identidade docente’ não queremos apenas vê-la como traços ou informações que individualizam ou distinguem algo, mas como resultado da capacidade reflexiva. É a capacidade do indivíduo (ou do grupo) de ser objeto de si mesmo que dá sentido à experiência, integra novas experiências e harmoniza os processos, às vezes contraditórios e conflituosos, que ocorre na integração do que acreditamos que somos com o que queríamos ser; entre o que fomos no passado e o que hoje somos.

Pimenta (1997) se refere à identidade profissional como um processo de construção historicamente situado, intrínseco a cada professor. Emerge de uma significação social da profissão, em um estado constante provisório, sendo constituído por crenças, tradições, percepções, valores estabelecidos em um dado um período historicamente contextualizado (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002).

Do confronto entre as teorias e práticas, da análise sistemática das práticas à luz das teorias existentes, da construção de novas teorias, constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor confere à prática docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus valores, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem sua vida: o ser professor (PIMENTA, 1997, p. 7).

Em suma, a identidade docente emerge de uma significação social da profissão, tradições, práticas pedagógicas, conflitos entre a teoria e a prática e a desconstrução e reconstrução de novas teorias (SANTOS; RODRIGUES, 2010). Moita (2000, p. 114) coloca que compreender como cada pessoa se formou é perceber as relações entre as “pluralidades que atravessam a vida”.

Nesse sentido, compreendo a identidade docente como uma formação singular, constituída por uma intersecção indissociável entre identidade profissional e a identidade pessoal, sendo essa marcada pela visão do sujeito sobre si mesmo e a visão do outro sobre ele.

Nesta pesquisa, faço a opção pelo uso do termo processo identitário (NÓVOA, 2000), buscando estabelecer conexões com o viés profissional do sujeito e o modo como cada um se percebe professor (orientador). Essa percepção sobre si mesmo é oriunda da capacidade reflexiva do sujeito, situado no tempo e no espaço, influenciado pela cultura, por suas experiências vividas – profissionais e pessoais - e naquilo que o aproxima e o diferencia de outros professores.