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A democracia participativa aplicada à realidade brasileira

2.3 Construção Histórica da Democracia no Brasil

2.3.8 A democracia participativa aplicada à realidade brasileira

A Constituição Federal de 1988, no seu art. 14, estabelece os mecanismos de exercício da soberania popular, preconizando que a vontade popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, bem como, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular.

21 ROSENN, Keith S. O Jeito na Cultura Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 51 e 52. 22 VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999.

Os instrumentos de participação popular possuem grande relevância no ordenamento jurídico (status constitucional e regulamentação na Lei nº 9.709/98), porém pouca efetividade na realidade brasileira, sendo pouco utilizados na prática.

A Constituição de 1988, no art. 2º do ADCT, estabeleceu a realização de um plebiscito para que os eleitores votassem na forma (república ou monarquia constitucional) e no sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que deveria vigorar no país. A consulta popular foi realizada em 21 de abril de 1993 e o povo escolheu a república e o presidencialismo.

Além desse, foram realizados, em 11 de dezembro de 2011, outros plebiscitos no Estado do Pará que consultavam a população sobre a possibilidade de desmembramento do respectivo Estado e a consequente criação de mais dois estados nessa região – Carajás e Tapajós. O resultado foi negativo para o desmembramento.

Quanto ao referendo, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, somente foi utilizado uma única vez para decidir sobre a proibição ou não da comercialização de armas de fogo e munições. O Estatuto do Desarmamento possuía uma cláusula determinando a realização do respectivo referendo sobre a liberação da compra de armas. Após a aprovação pelo Congresso Nacional, este foi então realizado em 2005. A maioria do eleitorado optou por não permitir a mencionada comercialização.

Os requisitos para a iniciativa popular encontram-se previstos na própria Constituição, no art. 61, § 2º, que dispõe o seguinte: a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Não obstante a clareza das formalidades impostas para a criação de lei por iniciativa popular, o atendimento a todas elas, por si só, já representa um obstáculo a ser ultrapassado. A rigidez e a complexidade dos quesitos estão na contramão dos ideais democráticos compartilhados ao longo do texto constitucional, gerando intensa desmotivação quanto à utilização deste instituto considerado de imensurável importância para a soberania popular.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 244 – RJ23, elencou outras

modalidades de participação popular na Administração Pública listadas na Constituição da

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 244/RJ. Relator: Min. Sepúlveda

Pertence. Data de Publicação: 31/10/2002. Brasília, DF. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/773084/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-244-rj>. Acesso em:

República, quais sejam: art. 5º, XXXVIII (instituição do Tribunal do Júri) e LXXIII (ação popular); art. 29, XII (cooperação das associações representativas no planejamento municipal) e XIII (iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros); art. 37, §3º (previsão de lei disciplinante das formas de participação dos usuários dos serviços públicos na administração pública direta e indireta); art. 74, §2º (legitimidade de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União); art. 187 (a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes na política agrícola); art. 194, parág. único, VII (princípio do caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados competentes para auxiliar na organização da seguridade social); art. 204, II (participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações governamentais na área da assistência social); art. 206, VI (princípio da gestão democrática do ensino público); art. 224 (instituição do Conselho de Comunicação Social).

Apesar dos diversos dispositivos legais vigentes que instrumentaliza a participação do povo, a construção de uma democracia participativa no país acontece a passos lentos, na medida em que não há interesse político em efetivá-los ou, se há interesse, este se encontra relegado ao segundo plano.

A concretização deficiente e/ou a ineficácia significativa desses dispositivos enfraquece a soberania popular e, consequentemente, a própria democracia, transformando a Constituição Federal em um mero pedaço de papel, desprovida de força vinculante e composta por um conjunto de normas programáticas sem qualquer eficácia.

3 A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE DO CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

Hipoteticamente, o controle judicial de constitucionalidade das leis propõe o que, em tese, pode parecer bastante antidemocrático: os membros do Tribunal (ocupantes de cargos não eletivos) possuem o condão de invalidar determinada lei (decisão política tomada pelo legislador representativo) em prol da manutenção da unidade e da harmonia que deve viger no ordenamento jurídico-constitucional.

Ante o conceito clássico de democracia, representado pela premissa segundo a qual numa democracia “as questões relevantes para o povo devem ser decididas em conjunto, respeitando a vontade da maioria”, esse sistema judicial de controle de constitucionalidade não seria democraticamente admissível, haja vista as decisões serem proferidas por um grupo seleto de magistrados que comumente julgam sem atentar para os anseios populares e sem se valer do imprescindível auxílio técnico de profissionais de outras áreas que possa contribuir para solucionar os impasses apresentados.

A decisão definitiva pela (in)constitucionalidade das leis e atos normativos não deveria configurar um monopólio exclusivo de advogados e juízes. Idealiza-se uma maior democratização do debate constitucional mediante a colaboração de especialistas de outros ramos do conhecimento, não reduzindo o debate apenas ao que os operadores do Direito pensam sobre o assunto em questão. Outras implicações que advêm dessa democratização é a utilização de uma linguagem constitucional mais acessível aos destinatários das decisões judiciais, sem formalismos excessivos, e uma interpretação mais autêntica dos dispositivos constitucionais que registre os legítimos valores professados pela sociedade brasileira na atualidade.

Um dos pontos que comprova a evolução do processo democrático no Poder Judiciário é a obrigatoriedade da publicação e da fundamentação de todas as decisões proferidas pelos órgãos judiciários previstas no art. 93, inciso IX, da CF/88. É por meio dessa publicidade que a população pode, de alguma forma, controlar a atuação dos juízes que devem demonstrar razões plausíveis para o decisum, através de argumentos que possam ser respeitados e acolhidos pelos destinatários, independentemente da procedência ou não de seus interesses.

John Ferejohn e Pasquale Pasquino 24 apresentam os dois aspectos da

fundamentação. O primeiro pode ser definido como democrático, pois os juízes não foram eleitos e os argumentos sustentados em suas decisões – especialmente quando se trata de argumentos que se fundamentam em atos concretos de instituições que tenham sido eleitas – podem prover uma justificativa indiretamente democrática para os atos públicos. E mesmo quando não se consegue traçar o vínculo entre as deliberações jurídicas e os atos legislativos, se estas estão enraizadas em princípios morais e constitucionais que fundamentam o regime democrático ou que são pressupostos democraticamente pela população, a argumentação jurídica pode ser compreendida como democrática, de modo indireto ou transitivo. Os votos e a decisão judicial são, nesse sentido, o desdobramento dos princípios democráticos sob novas circunstâncias e particularidades de casos específicos. O segundo aspecto que torna a fundamentação importante para a autoridade judicial é o fato de que os argumentos jurídicos possibilitam a outros – representantes, outros juízes, cidadãos comuns, etc. – que antecipem as implicações de uma decisão atual para os casos futuros. A fundamentação da decisão, nesse sentido, potencializa a eficiência, pois os seus efeitos visam mais uniformizar e a predizer do que justificar a decisão. Assim, a fundamentação possibilita aos outros que escolham inteligentemente as ações a serem impetradas, conhecendo, de antemão, as prováveis consequências e ajuda a aperfeiçoar a norma ou a lei à luz da experiência. A fundamentação, nesse segundo sentido, tem como finalidade a eficiência.

O Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/15) elencou no parágrafo primeiro do art. 489 todas as ocasiões em que uma decisão judicial não é considerada fundamentada, são elas: se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

24 FEREJOHN, John; PASQUINO, Pasquale. Tribunais Constitucionais como Instituições Deliberativas. In:

BIGONHA, Antonio Carlos Alpino e MOREIRA, Luiz (orgs.). Limites do Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 45 e 46.

Essa inovação legislativa possui grande relevância para o ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que exclui do conceito prático de fundamentação aquelas decisões de conteúdo vago, impreciso e indeterminado. Por esse motivo, acredita-se que a democracia foi fortalecida com a inclusão desse dispositivo legal.

Não obstante a imposição da publicação e fundamentação das decisões judiciais, o sistema de tomada de decisões (em especial aquelas proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade) permanece ainda bastante fechado para as reivindicações populares. Se, em última instância, a palavra final cabe ao Judiciário, nada mais adequado que os membros deste dialogue com os destinatários das suas decisões.

Mais uma vez, John Ferejohn e Pasquale Pasquino25 apontam algumas

particularidades próprias dos sistemas de controle de constitucionalidade kelsenianos, sistema este que deu origem ao controle concentrado de constitucionalidade no Brasil e na Europa:

Nos sistemas kelsenianos ou nos sistemas pós-autoritários, as cortes tipicamente deliberam em segredo e raramente realizam uma audiência pública, as decisões proferidas representam a corte como um todo e não se registram os votos. Poucos destes sistemas permitem que se publiquem os votos dissidentes. (...). Todas essas cortes são internamente deliberativas no sentido de que grande parte de seu trabalho é feito em sessões do colegiado com encontros nos quais os juízes encontram-se presentes e visam de fato persuadir-se mutuamente e chegar a uma decisão que tenha sido coletivamente argumentada. (...)

Esse método fechado de julgamento constitucional deve ser amplamente superado para dar espaço a um método mais aberto, democratizado, no qual a corte constitucional dá início ao diálogo com diferentes órgãos e entidades representantes da sociedade civil e especialistas no assunto em discussão, além de fundamentar de forma coerente e publicar todas as decisões judiciais proferidas com os seus respectivos votos dissidentes.