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A teoria de Ronald Dworkin sustenta que os juízes podem anular uma decisão política tomada pelos legisladores representativos de forma a concretizar ainda mais a democracia.

No seu livro “O direito da liberdade”, Dworkin ilustra um método particular de ler e executar uma constituição, método esse denominado de leitura moral. À vista disso, todo dispositivo constitucional abstrato deverá ser interpretado e aplicado considerando os princípios morais de decência e justiça.

Destarte, Dworkin32 afirma que as pessoas encarregadas de formar uma opinião

sobre o assunto devem decidir qual a melhor maneira de compreender aquele princípio moral abstrato. A leitura moral, assim, insere a moralidade política no próprio âmago do Direito Constitucional. Mas a moralidade política é intrinsicamente incerta e controversa; por isso, todo sistema de governo que incorpora tais princípios a suas leis tem de decidir quem terá a autoridade suprema para compreendê-los e interpretá-los.

Para muitos cientistas políticos, o método da leitura moral aplicado pelos magistrados é considerado elitista, antipopulista e antidemocrático. Isso se dá pelo motivo de que o processo de escolha dos juízes não expressa nem de longe a vontade da maioria popular. Em alguns países, existem eleições para a escolha de magistrados, como na Bolívia por exemplo.

32 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução

Por consequência, a leitura moral propõe duas restrições que limitam a liberdade de ação dos juízes. A primeira delas dispõe que a interpretação constitucional tem de partir do que os autores disseram. Assim, a história é um fator relevante, porém deve-se levar em consideração o que eles pretendiam dizer, além da prática jurídica e da política do passado, e não quais outras intenções eles tinham. A segunda teoriza que a interpretação sob a leitura moral é disciplinada pela exigência de integridade constitucional. Busca-se a concepção dos princípios morais constitucionais que melhor se encaixe na história do país e nos valores emanados pela sociedade atual, em detrimento das concepções morais próprias dos magistrados. Resta, portanto, equivocada a crítica de que a leitura moral fornece aos juízes um poder absoluto para impor a todos as suas próprias convicções.

Diferentemente do que pensam diversos juristas, Dworkin sustenta que o método da leitura moral não ofende a democracia. Para se chegar a essa conclusão, é preciso examinar com cuidado os efeitos extraídos da premissa majoritária, premissa esta erroneamente confundida com a própria democracia.

Conforme o exposto no livro “O direito da liberdade”33, a premissa majoritária é

uma tese a respeito dos resultados justos de um processo político: insiste em que os procedimentos políticos sejam projetados de tal modo que, pelo menos nos assuntos importantes, a decisão a que se chega seja a decisão favorecida pela maioria dos cidadãos ou por muitos entre eles, ou seja, pelo menos a decisão que eles favoreceriam se dispusessem de informações adequadas e de tempo suficiente para refletir. As leis geradas pelo complexo processo democrático, para que sejam verdadeiramente democráticas, devem ser aprovadas pela maioria dos cidadãos. A mitigação da vontade da maioria em respeito à proteção dos direitos individuais não é vista com bons olhos pelos adeptos da premissa majoritária. Assim sendo, quando uma maioria política não pode fazer o que quiser, isso é sempre injusto, de tal modo que a injustiça permanece mesmo quando existem fortes razões que a justifiquem.

Para os defensores da democracia majoritária, os princípios morais abstratos não podem ser considerados objetivamente verdadeiros, por simplesmente reproduzirem os interesses próprios dos julgadores, ou de uma classe social específica. O único processo político justo é aquele que leva em conta a opinião da parcela majoritária da população.

Dworkin34 adota a concepção constitucional da democracia, que rejeita a

premissa majoritária. Significa dizer que as decisões coletivas devem ser tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os

33 DWORKIN, Ronald. Op. Cit., p. 24 e 25. 34 Ibid., p. 26 e 27.

membros da comunidade a mesma consideração e o mesmo respeito. A concepção constitucional de democracia preocupa-se com a igualdade de status entre os cidadãos, independentemente do procedimento (majoritário ou não-majoritário) empregado para alcançá-la. Enfim, a democracia encontra-se sujeita às condições democráticas.

As condições democráticas transparecem as condições de participação moral numa determinada comunidade política. A participação moral pressupõe a existência de um vínculo entre o indivíduo e o grupo governante, o indivíduo passa a se sentir responsável pelos atos praticados pelo grupo ao qual pertence. Conserva-se, assim, um sentimento de auto-respeito e pertença na comunidade a ser compartilhado com todos os membros, agora denominados de membros morais. A ideia de autogoverno somente é possível em uma comunidade que atenda às condições de participação moral.

Dois são os tipos de condições: as estruturais e as de relação. As estruturais são condições que determinam o caráter que a comunidade como um todo tem de ter para que possa ser considerada uma verdadeira comunidade política. Já as condições de relação determinam como um indivíduo deve ser tratado por uma comunidade política verdadeira para que possa ser um membro moral dessa comunidade. Uma comunidade política não pode fazer de nenhum indivíduo um membro moral se não der a essa pessoa uma participação em qualquer decisão coletiva, um interesse nessa decisão e uma independência em relação à mesma decisão.35

A primeira dentre as condições de relação implica dizer que toda pessoa deve ter a oportunidade de modificar de algum modo as decisões coletivas, e a magnitude do seu papel não deve ser estruturalmente fixa ou limitada na suposta proporção do valor, do talento ou da capacidade da pessoa, nem da suposta integridade de suas convicções ou gostos. É nesta condição que se sustenta o sufrágio universal e a representação. A segunda condição dispõe que o processo político de uma comunidade deve expressar alguma concepção de igualdade de consideração para com os interesses de todos os membros da comunidade. Logo, um indivíduo não pode ser um membro se este não for tratado pelos outros como tal, ou seja, as consequências de qualquer decisão coletiva para sua vida devem ser consideradas tão importantes quanto as consequências dessa mesma decisão para a vida de todas as outras pessoas. A terceira condição, representada pela independência moral, estabelece que a comunidade política não pode determinar o que os seus cidadãos devem pensar a respeito de política ou ética, mas deve, por outro lado, propiciar circunstâncias que lhes permitam chegar

a crenças firmes em matéria de ética e política através de sua própria reflexão. Para que um indivíduo se torne verdadeiro membro, a comunidade não pode determinar as convicções e os pensamentos do indivíduo, em respeito à autonomia moral. Enfim, a liberdade individual deve ser respeitada e promovida pelo autogoverno coletivo.36

É imprescindível entender que nem sempre as leis e regulamentos criados pelos legisladores majoritários respeitam o princípio democrático. A partir disso, surge a possibilidade de levar tal suspeita para uma acurada análise da corte constitucional. No caso em tela, a decisão do tribunal que aponta para a invalidade da lei, quando esta realmente era antidemocrática, realiza o ideal democrático sem que haja qualquer perda de autogoverno. Por outro lado, Dworkin37 também afirma que a democracia de fato fica prejudicada quando um

tribunal dotado de autoridade toma a decisão errada a respeito das exigências das condições democráticas – mas não fica mais prejudicada do que quando uma legislatura majoritária toma uma decisão constitucional errada que continua em vigor. A possibilidade de erro é simétrica. Assim, a premissa majoritária é confusa e deve ser abandonada.

Outro ponto que merece importante destaque é fato de que os legisladores são bastante suscetíveis de sofrerem pressões políticas, tanto na seara financeira quanto na política, o que gera uma certa desconfiança com relação ao Poder Legislativo no papel de protetor dos direitos das minorias. Essa constatação enaltece, de certa forma, a atribuição do Poder Judiciário de defender os direitos dos grupos menos populares, em razão do caráter mais independente e das garantias institucionais atribuídas aos juízes.

Conrado Hübner38 sintetiza a ideia de Dworkin da seguinte maneira:

As cláusulas morais da Constituição forçam o debate por meio de argumentos de princípio e isto sofistica a política. O Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de policy – decisão sobre quais direitos tem o indivíduo (quais os trunfos sobre decisões majoritárias), e não sobre como promover o bem-estar geral. Não deve se basear numa teoria procedimental da representatividade, segundo a qual o Tribunal se subordinaria às decisões dos órgãos majoritários, que espelham fielmente a pluralidade de interesses da sociedade, mas numa “teoria substantiva da representatividade”, extraída do princípio básico de que o governo deve tratar as pessoas como iguais.

Essa questão da igualdade de consideração e respeito remete ao âmbito de proteção da minoria, perfeitamente concretizada pelo Poder Judiciário, determinando que as decisões de princípio não devem se sujeitar à vontade da maioria. Ficarão a cargo do legislador as decisões de policy.

36 Ibid., p. 38 a 40.

37 Ibid., p. 50.

38 MENDES, Conrado Hübner. Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Campus

O controle de constitucionalidade seria, portanto, uma arma eficaz na proteção dos direitos individuais frente aos excessos de poder da maioria. Dworkin atribui aos tribunais a missão de operacionalizar e equilibrar esses direitos, sempre buscando a melhor resposta do ponto de vista moral. Também reconhece ser falaciosa a pretensão de que os juízes interpretam os dispositivos constitucionais de forma neutra, sem levarem em conta a sua concepção de justiça. Contudo, esta concepção própria é tolerável, desde que seja identificada e defendida por argumentos baseados em princípios e não na política.