• Nenhum resultado encontrado

Jurisdição constitucional e a dificuldade contramajoritária

Inicialmente, a jurisdição constitucional “compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição”26. Ocorre que, devido a alguns

fatores político-sociais, o Poder Judiciário passou a se exceder no cumprimento de suas funções típicas, ultrapassando a tênue linha que o separa dos outros poderes.

25 Ibid., p. 59 e 60.

26 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática

Foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que houve a incidência do fenômeno da judicialização no Brasil. A ascensão institucional do Judiciário, principalmente depois da Emenda Constitucional n. 45/2004; o aumento da demanda por justiça; a desilusão com a política, em razão da crise da representatividade e da funcionalidade dos parlamentos; a constitucionalização abrangente e analítica de diversas questões de cunho estritamente político; e o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro adotado são as principais causas para a judicialização de questões políticas, sociais e econômicas.

A ascensão institucional do Poder Judiciário decorreu do resgate das liberdades democráticas e das garantias da magistratura, permitindo, desse modo, que os juízes e tribunais desempenhem também um papel político na sociedade brasileira. A certeza do cumprimento das decisões judiciais traz também uma segurança para aqueles que levam suas pretensões a juízo.

É cediço destacar o significativo aumento das demandas que são levadas aos magistrados nos dias atuais. Isso se deu, em primeiro lugar, pelo fortalecimento da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Além desses, a criação de novos direitos pela Carta Magna de 1988 e a ampliação da legitimação ativa para a tutela de interesses próprios e coletivos também colaboraram para o incremento das demandas judiciais.

Cada vez mais, percebe-se uma clara insatisfação da sociedade brasileira com os parlamentares. Poucos são aqueles que, de fato, exercem seu munus publico atentando aos interesses da população que os elegeram. Conforme visto anteriormente, a democracia representativa apoia-se em lânguidos alicerces, cedendo lugar a uma democracia em que o povo pode falar por si só, sem a intermediação do discurso deturpado dos representantes. Tendo em vista essa crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos, a população passa a enxergar no Poder Judiciário uma verdadeira rota de fuga para a concreta efetivação de seus direitos.

Segundo Luís Roberto Barroso27, a constitucionalização expressa a irradiação dos

valores constitucionais pelo sistema jurídico que se dá por meio do amplo exercício da jurisdição constitucional. Resulta, assim, na aplicabilidade direta e imediata da Constituição a determinadas situações, na declaração de inconstitucionalidade de normas com ela incompatíveis e na interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição. Enfim, “constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo

27 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a

para o universo das pretensões judicializáveis”28.

O modelo de controle de constitucionalidade instaurado no Brasil é misto, isto é, combina o controle difuso de constitucionalidade, de origem americana – em que todo juiz ou tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto – e o controle abstrato de constitucionalidade, de origem austríaca, em que apenas um único órgão, a Corte Constitucional, é legitimado para pronunciar a (in)constitucionalidade da norma. Assim sendo, há um número maior de instrumentos processuais (ações diretas) que favorece a judicialização das relações sociais e da política.

Em um sistema democrático de governo, a lei expedida pelo Parlamento é considerada majoritária por excelência. Por conseguinte, a invalidação dessas leis por órgãos e agentes públicos não eleitos e irresponsáveis perante o eleitorado evidencia um papel contramajoritário. Conceitua-se a dificuldade contramajoritária como sendo a possibilidade dos juízes e membros de tribunais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos, desempenhando, por sua vez, uma função inequivocamente política.

Luís Roberto Barroso aponta três críticas à expansão da intervenção judicial no Brasil: a crítica político-ideológica, a crítica quanto à capacidade institucional e a crítica quanto à limitação do debate.

A primeira delas de cunho político-ideológico questiona a legitimidade democrática e a eficiência na proteção dos direitos fundamentais. Imputa ao Judiciário a imagem de uma instância tradicionalmente conservadora das distribuições de poder e de riqueza na sociedade.

A crítica quanto à capacidade institucional apoia a limitação da ingerência judicial sustentada em duas ideias: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. A capacidade institucional envolve a determinação de qual poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em certa matéria. Dessa forma, demandas que envolvam aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade requerem mais cautela durante o julgamento, haja vista que o magistrado na grande maioria das vezes não possui o conhecimento técnico necessário para a melhor resolução do caso. Os efeitos sistêmicos também podem ser bastante sentidos, pois os juízes são preparados para realizar a justiça do caso concreto, muitas vezes sem levar em conta o impacto de suas decisões sobre um determinado segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.

28 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática

A terceira crítica ataca a elitização do debate e a consequente exclusão daqueles que não dominam o jargão técnico e formal dos tribunais, resultando na enorme probabilidade de “se produzir uma apatia nas forças sociais, que passariam a ficar à espera de juízes providenciais”29.

A questão da elitização do debate pode ser tranquilamente resolvida com a admissão mais frequente de terceiros interessados (amicus curiae) no processo constitucional. A convocação de audiências públicas e a ampliação do direito de propositura das ações diretas colaboram para a pluralização desse debate. Isso engloba também a utilização de uma linguagem menos formal por parte dos magistrados, de tal forma que a compreensão dos julgados esteja ao alcance de um número mais abrangente de destinatários.

A crítica quanto à capacidade institucional pode ser rebatida com a inserção de profissionais técnicos nos processos que exigirem conhecimentos científicos de grande complexidade. Esses profissionais devem sem admitidos na figura do amicus curiae. Em uma síntese definição, amicus curiae são interventores interessados na causa que, possuindo representatividade (pertinência temática) satisfatória, manifestam-se sobre a controvérsia judicial relacionada ao processo, possibilitando que os julgadores profiram um voto com respaldo técnico adequado para a resolução da questão constitucional apresentada.30

Com relação à crítica política-ideológica, representa uma incontestável falácia a afirmação de que o Poder Judiciário é ineficiente na proteção dos direitos fundamentais. É tão somente mediante a sua intervenção que a população consegue concretizar os seus direitos mais básicos muitas vezes negligenciados pelos outros poderes. Por conta disso, o fenômeno do ativismo judicial encontra bastante espaço para se expandir no Brasil, a julgar pela inércia dos agentes políticos em cumprir com as suas funções típicas de legislar e/ou administrar as contas públicas.

Quanto à legitimidade democrática, Luís Roberto Barroso31 assim leciona:

De fato, a legitimidade democrática do Judiciário, sobretudo quando interpreta a Constituição, está associada à sua capacidade de corresponder ao sentimento social. Cortes constitucionais, como os tribunais em geral, não podem prescindir do respeito, da adesão e da aceitação da sociedade. A autoridade para fazer valer a Constituição, como qualquer autoridade que não repouse na força, depende da confiança dos cidadãos. Se os tribunais interpretarem a Constituição em termos que divirjam significativamente do sentimento social, a sociedade encontrará

29 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., p. 369.

30 Ver definição de amicus curiae: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=533>.

Acesso em: 07 nov. 2015.

31 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática

mecanismos de transmitir suas objeções e, no limite, resistirá ao cumprimento da decisão.

Contudo, deve-se ter bastante atenção para que os tribunais e magistrados não se deixem levar pelo clamor social e julguem de forma injusta, equivocada ou em desconformidade com os preceitos constitucionais tão somente para satisfazer as paixões passageiras da população em determinado caso que tenha ocasionado uma comoção pública exacerbada. O Judiciário não pode ser escravo da opinião pública. Resta-lhe permitir o engajamento popular e ouvir as reivindicações com o propósito de influenciar e legitimar as decisões judiciais sempre dentro de um limite razoável. A opinião pública deve ser um fator relevante no processo de tomada de decisões, mas não o único. Além do que, nem sempre é possível captar o verdadeiro sentido da vontade popular.