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A “democratização” do discurso na revista Nova Escola

4 A MODELAGEM DO LEITOR NAS SEÇÕES DE NOVA ESCOLA

4.6 A “democratização” do discurso na revista Nova Escola

O segundo fator que favorece a possibilidade de a revista Nova Escola prescrever ordens ao leitor sem que isso configure uma situação conflituosa, marcada por autoritarismo, está ligado a uma tendência discursiva que, segundo Fairclough (2001), afeta as ordens do discurso e cujo alcance produz mudanças no âmbito macrossocial, na ordem societária. Essa tendência discursiva é intitulada “democratização discursiva”, e uma das áreas focalizadas por essa tendência discursiva é a aparente democratização do discurso, ou seja, a “redução de marcadores explícitos de assimetria de poder entre pessoas com poder institucional desigual” (p. 129). Para aprofundar a compreensão sobre essa tendência discursiva, lançamos mão de um conceito de Bourdieu – “estratégia de condescendência” –, pois parece que ele esclarece a motivação que levaria um sujeito (instituição) a empregar na linguagem elementos que mascaram a assimetria de poder entre os sujeitos.

Bourdieu (1996) explica que, na interação entre os sujeitos, há tensão entre as forças simbólicas que são atualizadas. Quando um sujeito situado hierarquicamente numa posição superior em relação aos seus interlocutores (re)conhece essa distância entre as posições sociais ocupadas e os efeitos que ela pode gerar, a intenção é amenizar a violência simbólica criada e diminuir a distância entre os interlocutores, em uma dada circunstância de interação. Essas estratégias levam à negação simbólica da hierarquia, e isso faz com que os interlocutores reconheçam sua autoridade a partir do momento em que se logra velar a hierarquia presente.

A modelagem do leitor nas seções de Nova Escola

A partir das obras de Fairclough (2001) e Bourdieu (1996), podemos sugerir que a aparente democratização do discurso suposta pelo primeiro autor está em conformidade com o conceito relativo às estratégias de condescendência.

Fairclough aponta alguns marcadores lingüísticos que tendem a ser eliminados:

[...] formas assimétricas de tratamento, diretivos diretos (por exemplo imperativos) que são substituídos por formas mais indiretas e sensíveis à face (BROWN; LEVINSON, 1978); assimetrias no direito de fazer tipos de contribuição, como os tópicos de iniciação e perguntas; uso por participantes poderosos de vocabulário especializado inacessível a outros (FAIRCLOUGH, 2001, p. 250).

À luz dessas considerações buscamos apreender na linguagem dos textos que compõem as seções da revista os possíveis marcadores textuais que sinalizam a quebra da assimetria de poder. Segue um exemplo:

Luiz Carlos de Menezes é físico e educador da Universidade de São Paulo e acredita que nossa Educação pública deve se tornar referência de qualidade para a construção da cidadania (NE, nº 198, p. 22, seção “Pense Nisso”, grifo nosso).

É interessante notar que Menezes aparece como um educador, e não como um especialista ou um professor. Isso permite a quebra a assimetria entre ele e o leitor, considerado como um colega, um educador. Ainda neste exemplo, vemos o emprego do pronome possessivo “nossa” reforçando a idéia de que o editor e o leitor estão igualmente implicados nas questões da educação pública. Essa relação de cumplicidade que é construída permite ao editor fazer prescrições (categóricas) e obter reconhecimento de sua fala sem que isso gere uma relação conflituosa, autoritária com o leitor. Isso é possível uma vez que o especialista (colunista) faz crer que enuncia do mesmo lugar ocupado pelo leitor.

Essa relação de cumplicidade entre editor e leitor pode ser vista na entrevista da seção “Fala, Mestre!”. Uma pergunta é feita a Charles Hadji: “O que dizer aos professores que, em situações difíceis, acreditam não poder fazer mais nada?“ A resposta que consta na entrevista é:

É preciso resistir à tentação de ditar ao professor o que ele deve fazer. Há diferença entre trabalhar na universidade, com estudantes que têm vontade de aprender, e trabalhar numa classe na periferia, com alunos que rejeitam a escola. Pessoas como eu, os pesquisadores, devem ter humildade e compreender que não é conveniente dar lição de moral aos professores que estão na sala de aula (NE, nº 198, p. 18, grifo nosso).

É possível apreender, nesse enunciado, uma voz implícita que diz: os acadêmicos não têm humildade, não deveriam ditar o que o professor deve fazer, eles não lidam com a

realidade escolar, com sujeitos que o professor enfrenta diariamente. Essa crítica traz como pano de fundo o conflito entre os campos (e os sujeitos que neles estão) da academia e da prática.

Podemos inferir que a voz institucional da Nova Escola se faz bastante presente, pois o editor se vale da voz do entrevistado para dar o seu recado a respeito da inconveniência dos pesquisadores que ditam o que o professor deve fazer. Obviamente, a revista não poderia se responsabilizar por esse dito, e é por isso que ela se apaga diante da voz superlativa do especialista, que garante a validade da enunciação.

Nas seções consta o e-mail do sujeito da redação que assina a matéria, o que dá o direito e a possibilidade de contato com o leitor para que ele possa fazer contribuições. Essa possibilidade configura-se como um elemento que compõe a “democratização” do discurso e que produz uma imagem favorável para a revista.

Se, por um lado, a revista tenta amenizar a relação de assimetria entre ela e o leitor, por outro ela busca marcar a existência da relação assimétrica, quando focaliza um especialista, um autor acadêmico de renome. Na seção “Fala, Mestre!” (nº 198), essa marca é vista no próprio nome da seção, que considera o autor como um mestre, e também quando o editor se refere ao entrevistado como “o senhor”, uma forma assimétrica de tratamento que denota certo grau de formalidade. Subjaz a intenção de produzir um efeito de reconhecimento da autoridade, e que o leitor, tal como a revista, deve também reconhecê-la nesse “senhor”.

Até aqui vimos que os marcadores explícitos de poder se tornam cada vez menos evidentes, e os marcadores encobertos de assimetria cada vez mais sutis. Essa tendência está, segundo Fairclough (2001), ligada a uma outra tendência, que é a informalidade.

Nos tipos de interações mais formais é possível visualizar com mais nitidez as assimetrias de poder e status, e talvez seja este o motivo pelo qual a revista evite o formalismo e marque fortemente a sua linguagem com uma informalidade que velaria essas relações assimétricas. A informalidade é, portanto, o terceiro fator identificado em Nova Escola que cria uma condição favorável para o editor ditar ordens ao leitor.

Uma pista de sua manifestação, segundo Fairclough (2001), é o discurso conversacional, que tem sido projetado da esfera privada para a esfera pública e tem, assim, colonizado domínios midiáticos, institucionais e o discurso educacional, inclusive. Foram constatadas na análise das seções 39 ocorrências de uso da informalidade e do discurso conversacional, identificados pelo vocabulário utilizado, pelo uso de reticências e formas na escrita que lembram a fala. Selecionamos três exemplos que trazem essas marcas.

A modelagem do leitor nas seções de Nova Escola

Os exemplos 1 e 2 são trechos que apresentam dois livros divulgados na seção “Estante”, e o terceiro exemplo é um trecho selecionado da entrevista (seção “Fala, Mestre!”) feita com Bernard Charlot.

[1] O tatu não tem nada de bobo. Pelo menos nessa aventura, em que a feroz e poderosa onça leva a pior, traída pela própria arrogância e por certa dose de ingenuidade. Quando dona pintada parte para o ataque, ele bola um plano: entra na toca e deixa a cauda de fora, fingindo que é uma cobra. A caçadora acredita no blefe e... fica sem seu prato predileto (NE, nº 198, p. 68, grifo nosso).

[2] [Sobre o livro “Di Cavalcanti, ano 100”] Pintor, Ilustrador e caricaturista, Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo (Di, para

os amigos) nos legou [...] Luxuoso, o livro reproduz dezenas de telas,

desenhos e até jóias assinados por Di (NE, nº 198, p. 64).

[3] Como seria uma escola com a cara do jovem? [...] O jovem não quer uma escola com a cara dele, mas uma que faça a ponte entre a história coletiva do ser humano e sua história individual. Uma escola com a cara do jovem teria a cara da Xuxa. Urgh! (NE, nº 196, p. 18, grifo nosso).

A partir da leitura dos trechos podemos afirmar que a informalidade no exemplo 1 traz marcas conversacionais, dando a impressão de que existe alguém contando a história oralmente. No exemplo 2 vemos que o editor se refere ao pintor Di Cavalcanti utilizando a forma reduzida de seu nome – “Di”–, usada, provavelmente no domínio privado, por familiares e amigos. O editor se apropria desse apelido típico de um domínio privado e o emprega em um domínio público, como se estabelecesse relações de intimidade com o pintor. Esse exemplo parece ilustrar o que Fairclough chama de “personalização sintética”, que consiste na “simulação de discurso privado face a face em discurso público para audiência em massa (imprensa, televisão, rádio)” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 129).

O último exemplo chama a atenção, pois não se espera que um sujeito da academia empregue essa interjeição. Talvez ele não tenha mesmo empregado, já que nessa seção o editor não delimita, nas respostas, sua voz (Nova Escola) e a voz do entrevistado. Vemos aí uma forma de transgressão em que a revista rompe com uma convenção e cria possibilidades ou combinações na linguagem.

Uma outra manifestação da informalidade ocorre, segundo Fairclough, pela mescla de estilos – formais e informais –: linguagem técnica e não técnica, elementos marcadores de familiaridade e autoridade. Escolhemos um trecho da seção “Na dúvida? Pergunte” para ilustrar a ocorrência dessa mescla, neste caso, entre os estilos em que um assunto técnico é explicado pela linguagem informal.

[1] Por que Plutão não é mais um planeta? Em agosto, astrônomos do mundo inteiro mudaram a definição de planeta. Plutão, meio deslocado, acabou virando um estranho no ninho (NE, nº 196, p. 30, grifo nosso).

Plutão só obedece (e mal) duas das três características que agora definem um planeta: ele gira ao redor do Sol, ainda que em outro plano orbital, e é grande o suficiente para ter formato esférico, apesar de ser menor do que a Lua (por isso, recebeu o título de planeta anão). Ele perde no terceiro quesito: não é dominante em sua órbita... (NE, nº 196, p. 30, grifo nosso).

O assunto do trecho acima pode ser considerado como pertencente ao gênero de divulgação científica, que supõe certa objetividade e formalidade da linguagem. No entanto, não é o que vê se na seção “Na dúvida? Pergunte”, que explica os fenômenos científicos com uma linguagem facilitada e própria da “vida cotidiana”.

Os exemplos aqui fornecidos mostram a ocorrência de um fenômeno atual, em que os meios impressos estão se tornando mais conversacionais, assim como os meios eletrônicos e midiáticos – rádio, TV etc. Hoje se atribui um alto valor à informalidade. Vemos que Nova Escola segue essa tendência à informalidade e consegue não só fazer com que seu texto seja reconhecido positivamente pelos leitores, mas acaba, por essa mescla discursiva, instituindo um novo gênero ou nova forma de falar com os educadores.

À medida que os produtores e os intérpretes combinam convenções discursivas, códigos e elementos de maneira nova, em eventos discursivos inovadores, estão, sem dúvida, produzindo cumulativamente mudanças estruturais nas ordens do discurso: estão desarticulando ordens de discurso existentes e rearticulando novas ordens de discurso, novas hegemonias discursivas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 128).

No caso da revista Nova Escola, vemos que a reconfiguração do discurso pedagógico ocorre por diferentes maneiras e está a serviço de um propósito, que é a eliminação de marcadores explícitos de poder. A aparente democratização do discurso cria assim uma condição favorável para que o editor prescreva ações ao leitor e o manipule sem que ele se dê conta disso, pois os marcadores explícitos são substituídos por marcadores mais sutis, estratégicos e encobertos.

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