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Ajudando o leitor a solucionar problemas da sobrecarga de trabalho no

5 A MODELAGEM DO LEITOR NA PUBLICIDADE E NAS REPORTAGENS DA

5.4 Categoria 1 A perspectiva do deslocamento nas reportagens

5.4.3 Ajudando o leitor a solucionar problemas da sobrecarga de trabalho no

matrimônio

As reportagens da revista Nova Escola buscam trazer soluções para o leitor em relação à sua prática pedagógica e aos conflitos e desafios que emergem das situações educativas. Um aspecto interessante é que essa “ajuda” não se restringe ao campo profissional-pedagógico; ela se estende aos problemas que o professor encontra no âmbito familiar. Isto fica evidente na reportagem “Rotina desigual” (NE, nº 198, p. 36), que traz a voz dos especialistas para contextualizar e compor o quadro da desvalorização da profissão docente e da situação de desvantagem profissional vivida pela mulher (professora) em relação ao homem. A idéia- chave do texto é que as mulheres têm menos tempo do que os homens para estudar e se especializar, pois elas são responsáveis pala maior parte das tarefas domésticas. A Nova Escola constrói a imagem da mulher (professora) como um indivíduo que ocupa uma posição marcada pelo sofrimento e limitação decorrentes do acúmulo de trabalho do lar e da escola. Notamos que o editor constrói uma relação de cumplicidade com a professora, ao deixar implícita uma crítica em relação à realidade em que elas se encontram. Os enunciados, na capa da revista e no lead dessa reportagem, consolidam essa relação solidária: “Até no magistério as mulheres ganham menos, ocupam cargos menores e acabam adoecendo mais do que os homens”.

No intento de ajudar o leitor, a revista divulga relatos de sujeitos que conseguiram contornar as dificuldades advindas da sobrecarga do trabalho. Dois exemplos podem ser citados: o primeiro conta a trajetória de um casal de professores que soube conciliar a vida familiar com a formação profissional. O professor conta que preparava o almoço e ajudava na faxina, e estas ações fazem dele um marido exemplar, pois auxilia a esposa nas tarefas domésticas, o que deveria acontecer, segundo a revista, nas relações conjugais. Vale destacar que a solução para as dificuldades vem dos próprios sujeitos que fazem um esforço “em equipe” visando a um mesmo objetivo: a possibilidade de ambos darem continuidade aos

A modelagem do leitor na publicidade e nas reportagens da revista Nova Escola

estudos. A solução, portanto, não vem da alteração das condições de trabalho, mas da conformação e adequação dos sujeitos a elas.

Vejamos agora um outro relato que conta a trajetória de uma professora do interior de Goiás que vivenciou uma situação marcada pela sobrecarga de trabalho, mas conseguiu contornar os problemas e terminar o Ensino Superior aos 38 anos. Vejamos duas passagens desse relato na voz da professora:

Comecei a carreira aos 15. Em 1988, um projeto do governo estadual me habilitou a dar aula de 5ª a 8ª. Casei um ano depois e em 1991 veio meu primeiro filho. Parei de estudar e, para sustentar a casa, encarava uma tripla jornada. Levantava as 6 e ia dar aula. Preparava o almoço, limpava a casa e cuidava do menino. Voltava para a escola e ficava até 10 e meia da noite. Cuidei do segundo filho sem ajuda do meu marido e nem sequer pensava em faculdade [...] Agora que conquistei o diploma, adquiri uma bagagem maior e meu salário dobrou. Estudei muito, tive crises nervosas, me alimentava mal e não tinha tempo para meus filhos. Hoje, fico mais com os meninos e me permito descansar (NE, nº 198, p. 38).

A partir da leitura dos trechos acima pudemos constatar que essa reportagem, tal como outras analisadas anteriormente, torna natural a idéia de que a rotina do professor é corrida, atribulada, sofrida, e que é normal que sua a vida esteja circunscrita à família e ao trabalho. O esforço sempre aparece como o elemento que traz solução às situações adversas.

A Nova Escola enaltece esse sofrimento vivido pelo professor, que, mesmo vivendo sob condições adversas, continua batalhando e lecionando em prol da qualidade da Educação. Ao invés de denunciar essas condições e promover reflexões sobre os processos de luta pelos direitos da categoria, Nova Escola constrói e projeta essa imagem heróica do professor. Na entrevista80 feita com o sujeito de pesquisa, uma ex-repórter da Nova Escola, percebemos traços desse discurso que valoriza o sofrimento do professor e mostra solidariedade com ele (QUADRO 5).

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A transcrição nesta pesquisa está fundamentada na obra de Ochs (1979) que traz diferentes vozes de autores que discutem o processo de transcrição e as escolhas que o pesquisador deve fazer quanto aos procedimentos referentes à sua organização física (disposição dos turnos de fala em colunas), a inserção do registro do comportamento não verbal, a marcação lingüística dos aspectos conversacionais etc. Cada um desses procedimentos é detalhado e problematizado pela autora. Optamos em organizar os turnos de fala dos participantes individualmente separados e dispostos em colunas paralelas para que o leitor pudesse acompanhar a evolução da interação ao mover os olhos ao longo das colunas, seguindo a orientação da esquerda para a direita e o alinhamento de cima para baixo. A primeira coluna é destinada aos turnos de fala da pesquisadora (Ana), pois ela inicia as seqüências de fala ao fazer as perguntas e detém, desse modo, certo controle da entrevista. A segunda coluna foi destinada para os turnos de fala da entrevistada, pois sua voz predomina na transcrição nos longos turnos de fala. A terceira coluna foi destinada aos turnos de fala da orientadora desta pesquisa. A disposição da entrevista em colunas apresenta uma vantagem, pois facilita também a leitura dos enunciados que foram produzidos simultaneamente, Basta o leitor mover os olhos entre as colunas de um mesmo turno de fala. Em alguns trechos da transcrição inserimos informações sobre o comportamento não verbal da entrevistada juntamente aos seus turnos de fala. Estas informações estão marcadas em itálico e dispostas entre colchetes.

QUADRO 5 - A relação de cumplicidade dos produtores da revista Nova Escola com o professor.

Ana Entrevistada Graça

399. Mas nessa visão havia

também uma proposta de mudar de melhorar a educação brasileira, havia uma utopia desse tipo?

400. Claro que havia! Eu vou te falar uma coisa, e é assim até hoje. Tem algumas coisas que eu não suporto: alguém falando mal de professor, alguém falando mal de escola pública, porque esse trabalho na Nova

Escola foi altamente esperançoso aqui pra gente sabe?

Principalmente naquelas cidades maaaais distantes, maaais

desamparadas naquele estado, as soluções maravilhosas que surgiam ali, então eu duvido e eu tenho certeza que, por exemplo, Ana Lagoa, Elvira81, não tem nenhum que é desesperançado

401. Hum hum

Porque a gente via coisas assim, comunidades se mobilizando pra resolver coisas completamente independentes do estado, mas lutando, sabe, professoras que levavam coisas de casa, professoras que cortavam unhas dos

402.

alunos, que tiravam piolho, que cortavam cabelo, que faziam a merenda, né?

403. Hum hum

404. professoras nadando... fico até arrepiada, quando eu lembro, nadando pra poder atravessar o rio Araguaia pra poder chegar do outro lado pra dar aula né? então esses professores eu acho que eles merecem tudo aí. Uma vez eu fui fazer um trabalho pra Unicef. Depois que eu saí da Nova Escola fiquei 2 anos trabalhando pra Unicef, fazendo registro jornalístico de projetos educacionais

Fonte: Dados compilados pelo autor.

O que nos parece problemático nesse discurso da revista é o fato de ele ficar apenas no plano da admiração, de valorização desse sofrimento e esforço do professor, que deve gerar prazer e orgulho no leitor.

A recorrência desse discurso nos textos da revista Nova Escola pode fazer com que o leitor vá, aos poucos, incorporando uma ideologia que naturaliza a condição precária de vida do professor. O leitor não tem consciência de que incorpora ideologias subjacentes às práticas discursivas, que podem ser bastante eficientes quando se tornam naturalizadas e passam a ser consideradas ‘senso comum’. Assim, ele pode não perceber as marcas da luta hegemônica materializadas no uso da linguagem da revista que está ali, bem diante de seus olhos. Ele pode pensar que a Nova Escola estabelece uma relação solidária com o leitor quando ela está, na

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A modelagem do leitor na publicidade e nas reportagens da revista Nova Escola

verdade, criando uma falsa imagem que permite incutir essas ideologias, que levam à doutrinação do leitor por uma forma dissimulada e não agressiva.

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