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3. O CORPO SUBLINHADO: A CORPORIFICAÇÃO DO TEXTO

3.2 A descoberta do silêncio: as pausas na construção das ações em

A dramaturgia das obras clássicas, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, estava centrada inteiramente na palavra e seus poderes, ignorando durante séculos o silêncio e protegendo-se, por assim dizer, dele, à custa de um arsenal de formas. Durante muito tempo o silêncio foi visto como um fracasso da ação, um insucesso dos atores que pareciam ter esquecido o texto, ou como um tempo morto que desacelera o tempo-ritmo do espetáculo e distrai a platéia. Como não se podia reconhecer uma tela sem pintura, também não era possível reconhecer uma obra bela ser interrompida por silêncios. A pausa era sinônimo justamente de ruptura.

O diálogo que se impunha como fundamento do teatro, consagrava definitivamente o triunfo da palavra; quer se apresente de forma efetivamente dialógica, quer adquira a aparência do monólogo, o seu caráter dialético fazia do verbo que chamava outro sem cessar, um movimento que só terminava com a resolução do conflito ou o fim da peça. “[...] Se não existe palavra sem silêncio, o silêncio na Idade Clássica é sempre servus verbi, escravo fiel, e muitas vezes mal tratado, que apenas serve para fazer valer as palavras que acolhe.” (RYKNER, 2004: 42)

Deste modo, a unidade da dramaturgia clássica se tornou um lugar de resistência ao silêncio, assim como perdeu a desconfiança que se tinha na Idade Média e Renascimento em relação à linguagem, nos quais a gestualidade do histrião era, por vezes, mais confiável que o verbo, pois neste era preciso decifrar as chaves do mundo.

Apenas uma inversão e contestação radical dos pressupostos do drama clássico finalmente concede ao silêncio e a pausa o lugar que tem hoje nas dramaturgias contemporâneas.

No século XVIII, Denis Diderot (1713 - 1784) e as reflexões iluministas sobre a mímica e a ação trouxeram com suas mudanças tanto ideológicas quanto estéticas, o silêncio integrado no texto e na representação, e até, embrionariamente, a substituição do verbo pela ação corporal narrativa. Mesmo de maneiras muito distintas das de Fo, Diderot acreditava que as ações não necessariamente precisavam estar acompanhadas por palavras.

A pantomima, longe de ser o sinal de uma demissão do autor, é a marca de uma necessária delimitação das competências de cada um. Não se trata de o ator não poder substituir o autor, mas sim de o autor não se dever substituir ao ator. Cada um intervém a um nível diferente. Ao autor cabe fazer passar no texto a emoção que deverá sustentar a ação; ao ator descobrir esta emoção no seu corpo e deixar guiar-se por ela. O próprio texto mais não é do que a superfície (a parte emersa do icebergue). (RYKNER, 2004: 231)

O silêncio neste caso é frequentado pela palavra, no qual as ações devem ser simples, ao contrário do discurso complexo materializado em palavras, como gostaria Artaud.

Ao contrário do silêncio passivo vem um silêncio produtor de sentido, de significantes independentes, de tempo e de espaço, no qual palavra e silêncio entram em conflito. Mas as soluções que Diderot propõe, em relação a pantomima66, são a curto prazo

tornadas ações esteriotipadas, sendo recuperadas e pervertidas principalmente pelo melodrama.

Apesar das mudanças embrionárias que propunha Diderot,

A palavra mais não pode do que rompê-lo aqui e ali, sem nunca, contudo, ocupar a dianteira do palco. As próprias palavras não se apresentam senão como excrescências do silêncio. Erguem-se no seio deste último, mas mais não são do que adjuvantes. (RYKNER, 2004: 227)

Somente a partir do século XVIII é possível ver com alguma freqüência as rubricas ou didascálias indicando uma interrupção do texto. Até então o silêncio e a pausa não são reconhecidos claramente como componentes da escritura dramática, mas são colocados nas mãos dos encenadores.

Quanto ao termo ‘pausa’, parece-nos encontrá-lo pela primeira vez, sob a forma e a acepção que nos interessam em Voltaire [...], é contudo em Diderot que o mesmo será sistematizado, a partir de 1757, em Les Fils naturel e depois em Le Père de

famille (1758): o escritor não utiliza apenas a forma canônica ‘uma pausa’, como ainda explora quase todas as possibilidades oferecidas pelo léxico e pela sintaxe.

(RYKNER, 2004:34)

66 É importante assinalar que a pantomima em Diderot é substancialmente diferente da pantomima dos mimos

Na dramaturgia clássica, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, a ação e o gesto estão absolutamante contidos na sucessão de réplicas.

O simbolismo, movimento que no século XIX instaura uma dramaturgia do silêncio, na qual a palavra assume a forma deste, principalmente com Maurice Maeterlinck (1862 - 1949), por outro lado, busca não a inação, mas a quase imobilidade por parte dos atores.

No teatro tradicional até fins do século XIX, por conta do encadeamento das ações, o silêncio não tem vida própria e em muitas vezes não “significa” em nome da “estética do cheio”, na qual todos os silêncios devem ser preenchidos.

No teatro tradicional pré-século XX, apesar das tentativas de Anton Tchecov (1860 – 1904), o silêncio acompanhado ou não pelo gesto, não tem uma outra função do que ligar uma palavra a outra.

Na chamada pós-modernidade dos séculos XX e XXI, a fragmentação e as quebras da unidade da ação aristotélica permitem com bastante freqüência a inserção de silêncios significativos.

As tiradas cômicas e os apartes que exprimem uma reflexão interior, como nas farsas e monólogos de Fo, se impõe sobre o silêncio preenchendo o seu espaço, pois necessitam de um tempo cômico encadeado e, por vezes, acelerado; fora isto, correm o risco de esvaziar-se e morrer. Por isso, por um lado, as tiradas cômicas e os apartes se colocam como uma antítese do silêncio; mas por outro lado, a ação gestual cômica e encadeada deste tipo de espetáculo baseado na ação, substitui muito bem as palavras, preenchendo o silêncio através das ações, ao mesmo tempo que permite o silêncio das palavras.

A aproximação do monólogo e do aparte tem, no entanto, qualquer coisa de enganadora. O aparte difere, de fato, profundamente do monólogo na medida em que põe em causa a mecânica do diálogo (mesmo que o monólogo, pelo menos de um ponto de vista formal, assegure a sua continuidade), situando-se, por assim dizer, a meio-caminho entre o silêncio e a palavra.

No século XVIII, Diderot preconizará a substituição do aparte pela pantomima, mas ela jamais conseguirá, em Diderot, a expressão necessária sem o uso da palavra. Diderot bem sabia que era necessário para o tipo de teatro que desejava, nascerem autores, atores e quiçá, um público.

O que afirma acerca da predominância do gesto sobre a palavra permite associar o seu elogio da interjeição aos princípios de uma dramaturgia do real. O gesto, tal

como o discurso explosivo, é a forma mais possível de constituir uma expressão

natural das subjetividades em presença no drama. Este fala sem raciocinar. Designa sem comentar. Impõe-se sem passar pela formulação da linguagem. É anterior ao

logos e, desse modo, está mais perto da natureza do que qualquer outro sistema semântico. Além disso, toca imediatamente o espectador, sem reclamar, forçosamente, um julgamento de entendimento. [...] Deste modo, privado de todo o suporte verbal, o gesto reúne a espontaneidade do movimento natural – irreflectido – e o poder significativo da palavra. (RYKNER, 2004: 210-211)

Somente a partir da segunda metade do século XIX é que a dramaturgia encontrará soluções próximas as que Diderot pretendia. A unidade da dramaturgia clássica foi contestada também, dentre muitos outros, por Samuel Beckett (1906 - 1989), em cujas obras encontramos dramas sem palavras ou o diálogo desarticulado por silêncios repetitivos, nos quais quem fala não tem esperança de resposta, mas de silêncio.

Em Dario Fo, os ritmos acelerados de suas narrativas épicas, principalmente em seus monólogos, faz com que a ação preencha os espaços vazios, não deixando muito espaço para as pausas. O silêncio pode, por sua vez, reforçar a palavra, negá-la ou substituí-la.

A pausa em Fo está mais ligada à criação de suspense, reflexão, ou a momentos de respiração para ator e público. Inteligentemente colocada em lugares propícios (isto se deve a ao conhecimento profundo que Fo possui do ritmo das platéias), juntamente com as situações bem definidas, prendem a atenção do público, mesmo em momentos de relaxamento. Fo também faz pausas para que o público possa rir em determinados momentos, como o faz Roberto Birindelli na montagem de Il Primo Miracolo.

As tensões alternadas com breves silêncios são importantes. As pausas relaxadas são propositais. Uso-as para respirar, pois um dos objetivos é fazer o público respirar com você. O público precisa tomar fôlego, simultaneamente. Caso ele esteja afogado ou agredido durante os momentos de tensão ou ao final de uma risada, sem que se permita sua recuperação, sem deixá-lo respirar, ele acabará ficando cansado e perderá a capacidade de se divertir e de participar adequadamente. (FO apud

MELDOLESI apud VENEZIANO, 2002: 215)

“As passagens, os contratempos, as pausas particulares não foram pensadas antecipadamente. São resultado da observação realizada em função da reação do público.” (FO, 2004: 246)

Mais adiante: “[...] vocês podem perceber que em certos momentos faço pausas, fico mais relaxado; são propositais. Uso-as para respirar com você. O público precisa tomar fôlego simultaneamente.” (FO, 2004: 253)

Já na montagem de A descoberta das Américas, o intérprete se coloca contra a vontade do público e do ritmo deste, que pretende que tudo se torne mais frenético, para sublinhar uma ação ou promover a reflexão ou crítica de determinado momento. A pausa, apesar de rara, surge como autenticidade, pois o ator se obriga a sair de si mesmo e do personagem.

Julio Adrião age contra a unidade da ação que está presente, e insere, em A descoberta das Américas, pausas nos raríssimos momentos que evidenciam a faceta dramática de algumas cenas. O lógico seria fazer as pausas em momentos cômicos, como o fazem a maior parte dos atores para sublinhar o efeito e as gagues, pois trata-se de um dos monólogos mais cômicos escritos por Fo. Como o próprio texto retrata de forma cômica uma história dramática, como as viagens das embarcações sujas e da dramática sobrevivência dos tripulantes, com pouca água e comida, doenças e lutas sangrentas, a dramaturgia de Fo se utiliza da sátira e do grotesco e, através da comicidade promove uma crítica ferina a diversos dogmas e posturas do cristianismo e da história das descobertas. O intérprete Julio Adrião e a diretora Alessandra Vannucci, tornam mais eficazes momentos de crítica e reflexão através de pausas que promovem quebras de expectativa, nas quais o riso do público é interrompido bruscamente.

Após a cena do “massacre dos índios”, na qual através de ações, Julio Adrião demonstra a luta que dizimou quase todos os índios da tribo que o acolheu, Johan Padan depois de uma cena de pantomima e ações vocais engraçadas, pára, fica em silêncio olhando os mortos, dá alguns passos em direção ao proscênio e diz: “Fiquei deprimido”.

Depois da cena da “costura dos índios”, descrita no início do capítulo, e a qual é uma das cenas mais hilariantes e virtuosas do espetáculo, Johan, depois de costurar uma centena de índios, interrompendo a risada abundante do público, pára e fica em silêncio por alguns segundos.

O silêncio anterior à batalha, essa vigília de armas, feita da espera do amanhecer, e esse silêncio que sucede os combates, que se instaura no lugar dos ruídos.

Sim, ele permanece no silêncio, o herói. [...]

O silêncio dá vida a olhares nunca vistos, a gestos ainda não ousados.

Tudo é eminente; para que um braço que se ergue tenha um sentido, nós o esperamos no silêncio da expectativa, que dá ao ato que se segue todo seu valor; assim, a palavra é esperada como necessária ao encontro. [...]

É a partir do silêncio que nasce a qualidade do gesto e da palavra. É nesse crisol que se preparam os impulsos e as pulsões que organizam, no espaço interior, os ritmos em urgência de emergência: ele vai falar? agir? Ele ergueu-se, caminhou, voltou-se, olhou-me por apenas um instante, um instante suficiente para a compreensão, e continuou seu caminho.

O silêncio é investido de qualidades muito diferentes, conforme preceda ou suceda uma ação, um ato, uma palavra. A urgência de uma ação que nos mobiliza inteiramente requer um silêncio propício a essa ação. A ação o exige. [...] O silêncio inicial assemelha-se à concentração que deve favorecer a ação subseqüente. [...] O silêncio depois da ação conduz mais à reflexão, ao recolhimento em si mesmo. [...] Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá a palavra sua profundidade.67

Na cena em que Johan catequisa os índios e descreve a crucificação de Cristo que olha sua mãe caída aos seus pés, o intérprete pára e permanece longos segundos em silêncio, após sucessivas cenas baseadas no texto de palavras, encadeadas por um ritmo frenético e uma comicidade quase sufocante.

Eu descobri há pouco tempo em relação a esta cena [do massacre dos índios], um silêncio. Faz um mês que eu descobri isto. Eu me carrego daquilo e digo: “Fiquei deprimido”. E mesmo assim as pessoas ainda riem. Mas pode ser uma risada nervosa também. O mesmo movimento que é a espada espetando, depois virou um movimento de corpo caindo. Narrando aqui com meu corpo, “va, va, va, va” [faz movimentos de cravar a espada] e depois o narrador vendo aquilo horrorizado, só depois vem o silêncio. Eu olho aqueles índios todos caídos e aí vem o texto. São coisas que eu vou percebendo. A cruz também [imagem de Cristo crucificado], as pessoas riam e eu deixei ele ali crucificado um tempo “enoooorme”. O Hugo Rodas quando viu o espetáculo em Brasília veio chorando para mim, pois ele é o próprio expatriado, ele é o cara que não voltou. Ele teve uma identificação com o Johan,

67 Jacques Lecoq in "Le Théâtre du geste", org. de Jacques Lecoq, Ed. Bordas, Paris, 1987. Trad. de Roberto

com a estória. Aí ele disse: ‘Posso te dizer uma coisa? Naquela hora do Cristo fica, não tenha pressa de terminar, pois ali você vai botar o dedo na ferida’.68

Quem vê a frenética montagem de A descoberta das Américas pode perguntar-se o porquê de tanta importância dada à pausa aqui, mas se não constitui o ponto mais importante do espetáculo, como nunca será, pode vir a concretizar momentos de extrema riqueza poética, por ser justamente um elemento raro dentro da encenação. Uma pausa em outro espetáculo com um ritmo menos veloz, não causaria tanto impacto e interesse. O ator Julio Adrião considera estes, momentos de descoberta em relação ao próprio espetáculo.

O corpo, a sua presença, o seu movimento, funda a realidade do feito teatral e organiza a relação que se estabelece entre o palco e a sala. Antes de entender e de analisar as combinações da linguagem, o espectador tropeça na visão global e instantânea que lhe propõe o ator e seu silêncio. (RYKNER, 2004:212)

Este procedimento, se o podemos assim chamar, se mostra até contrário a linguagem de Fo, talvez porque os ritmos de sua narração épica e sua linguagem mais próxima aos contatores de histórias não permita pausas muito longas, e é por isto, que as pausas se tornam evidentes e eficazes em A descoberta das Américas, pois ao invés do relaxamento, Julio Adrião propõe justamente o contrário: a tensão.

Fig. 18 A descoberta das Américas Vídeo produzido por Filmes do Serro

3.3 Os retirantes da Terra Santa: a gestualidade de Il Primo Miracolo e a obra de