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2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UMA

2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il

Quanto mais o teatro se afasta do realismo, mais cresce a importância do movimento dentro da encenação; ele é uma possibilidade de codificação não-verbal de extrema riqueza, um código a ser fielmente marcado, grafado e, tanto acompanha as palavras como se insurge contra elas, denunciando suas lacunas, criando para o espectador um hiato em uma coreografia de significados contrastantes.

Quando movimento e palavra perdem o vínculo que parecem ter na vida cotidiana, se isolarmos, subtrairmos o gestual do ator de seu contexto e imprimirmos a ele outras características, então chegaremos a uma seqüência que segue uma outra lógica como a dos sonhos, que brincam e disfarçam seus verdadeiros motivos e significados até despistarem ou recriarem os mais latentes sentidos.

A dialética entre corpo-gesto-palavra na cena de Fo emprega vantajosamente o conflito dinâmico dos opostos. Jacques Lecoq ensinou a Fo a utilizar seu corpo desengonçado, a utilisar ao máximo os recursos da cena, os mecanismos da risada, as gagues, as expressões arregaladas, os diversos modos de gesticular e andar que permitem ao ator passar de um personagem a outro sem a ajuda de nenhum recurso cênico, mas principalmente, a fazer exatamente o oposto do que está sendo dito em palavras, procedimento que se transformou em um dos preferidos de Fo.

Com a farsa, na qual a situação servia para impulsionar diversas gagues, equívocos e qüiproquós, Fo afastava qualquer possibilidade de verossimilhança e,

Se de um lado havia o conjunto de gagues físicas, em contraste havia diálogos surreais, destinados a inverter o sentido entre o banal e o literário, entre o figurado e o literal, num jogo semelhante, porém mais desenvolvido, àquele já experimentado com Lecoq, quando o corpo dizia o inverso das palavras. (VENEZIANO, 2002:

125)

As gagues nas farsas de Fo, reforçando as falas ou traindo o seu sentido, resultavam em um ritmo mais intenso e eficiente para o desenvolvimento das ações. Os monólogos de Fo, assim como outros tipos de espetáculo criados por ele, trazem este jogo de oposições que trouxe da Revista e das farsas.

O que dá o suporte para o funcionamento das gagues, para o efeito de oposição entre gesto e palavra, para as chaves cômicas e timing da narrativa, é o ritmo.

Segundo Fo, a qualidade das tiradas do Boccaccione45, tipo de personagem que aparecia nas comédias gregas de Aristófones e fazia comentários e pilhérias a respeito do público, “não estava no texto, mas na velocidade, ritmo e timing que o ator conseguia imprimir [...]”. (FO, 2004: 46)

O discurso verbal e o discurso corporal podem chocar-se ou corroborar com um mesmo significado. É possível manter duas conversas paralelas, cada uma acontecendo em um nível e levando a comunicação estabelecida para direções diferentes. O que as palavras afirmam a cada instante parece ser negado pelas mensagens não verbais emitidas por meio de gestos e de sinais.

Existiram estudiosos das relações gestualidade-palavra como Meierhold, Decroux e Artaud, que apostaram justamente na oposição em relação ao gesto e a palavra, na qual o corpo produz um contraste de forças, por vezes opostas, entre o que fala o corpo e o que diz a palavra.

A oposição é o cerne das pesquisas de Meierhold, nas quais a plasticidade não corresponde às palavras em muitos casos. Como a essência dos relacionamentos humanos é determinada pelo corpo, pelos gestos, posturas, olhares e silêncios, as palavras não dizem tudo. Conseqüentemente para Meierhold, em uma visão ainda superficial de sua obra, a integração entre corpo e palavra, ou corpo e silêncio é a principal dialética do seu “novo teatro”.

Isto significa que na oposição, corpo e gestual também podem seguir o ritmo oposto ao ritmo das palavras: a sincronia entre os ritmos físicos e vocais também é rompida em alguns casos.

As palavras atingem o ouvido, a plasticidade o olho, assim a imaginação do espectador é exposta a dois estímulos: o oral e o visual. A diferença entre o velho e o novo teatro é que no novo teatro, a palavra e a plasticidade seguem cada um seu próprio ritmo, sem necessariamente coincidirem. (MEIERHOLD apud BARBA; SAVARESE, 1995, 154)

Meierhold acreditava que o jogo de oposições da biomecânica poderia ser sustentado pela estética do grotesco. Apesar da multiplicidade de sentidos e referências já

abordados de muitas maneiras, a estética do grotesco já é por si só paradoxal, pois o exagero escatológico faz-nos rir de coisas chocantes e chorar diante de coisas normalmente risíveis, trazendo à tona um princípio de estranhamento.

Segundo Dario Fo, na base das antigas e importantes formas da tragédia conhecidas, encontramos a catarse do riso e do obsceno sexual, liberadores da luz e da harmonia. Dessa maneira, o ressentimento, o ódio e o medo, em todas as representações populares, são exorcizados e dissipados no jogo do grotesco. Para ele, o teatro didático deveria utilizar-se do grotesco para impedir a catarse liberatória, promovendo uma catarse consciente e permanente.

O grotesco, presente em quase todas as vanguardas artísticas do início do século XX, nas manifestações cômicas da Idade Média e Renascimento e, nas quais o riso acompanhava as cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana, os bufões e giullari assistiam as funções do cerimonial sério e parodiavam seus atos. O riso popular que se organiza no grotesco e que satiriza o elevado, o espiritual, o ideal, sempre se manifesta no plano material do corpo e da terra, portanto, na gestualidade mundana dos histriões e bufões na degradação do sublime.

A formação básica do grotesco está no exagero, na caricatura, no satírico e no fantástico, na imagem; unindo trágico e cômico ao mesmo tempo.

Apesar de o grotesco de que fala Meierhold e o grotesco de que fala Dario Fo possuírem a mesma matriz baseada na gestualidade e no movimento, a estética grotesca de Meierhold propositalmente terá um jogo de oposições criado e estudado a partir da plasticidade que não se reduz a figuras de estilo. É através do grotesco que Meierhold pretendia tirar o espectador do comodismo, provocando um deslocamento de significados e surpresas constantes. Em Fo, a oposição aparecerá em diversas chaves cômicas, não necessariamente só na chave grotesca. As oposições em Fo são menos aparentes e freqüentes, mas estão assim como em Meierhold diretamente ligadas a gestualidade e ao ritmo.

A arte do grotesco está baseada numa luta entre o conteúdo e a forma. O grotesco não opera apenas no alto e no baixo, mas confunde os contrastes, criando deliberadamente contradições agudas. [...] O grotesco aprofunda a vida cotidiana até que ela pare de representar somente o que é comum. O grotesco une, em síntese, a essência de contrários e induz o espectador a tentar resolver o enigma do incompreensível. [...] Por meio do grotesco obriga-se constantemente o espectador a manter um duplo comportamento para a ação cênica, que passa por mudanças súbitas e abruptas. No grotesco uma coisa é essencial: a tendência constante do

artista de transportar o espectador de um plano recentemente alcançado para outro totalmente inesperado. (MEIERHOLD apud BARBA; SAVARESE, 1995:156)

Os gestos passam a ser escutados através de seu plano material e rítmico, e as palavras, passam a ser compreendidas por sua corporeidade rítmica e pela síntese do que elas significam (através da gestualidade), não pela sua forma.

A coisa mais importante é a linguagem, que não significa usar determinados advérbios ou uma determinada composição gramatical. Significa usar a totalidade do teatro, com gestos, sons, cantos, palavras, cores, danças. Lembro, sobretudo, que cada elemento tem um significado próprio para o ritmo: a tonalidade, os momentos onomatopéicos, etc. Uma mesma frase pode ter um significado dramático ou grotesco, segundo o ritmo que foi determinado entre os diferentes atores, entre o ator e o personagem e, principalmente, entre o ator e o público. (FO apud

VENEZIANO, 2002: 218)

Ne representação de sua História da Tigresa (1970), Dario Fo, em uma passagem que podemos tomar como exemplo para ilustrar os procedimentos utilizados por ele e pelos atores de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, utiliza a oposição baseada no ritmo gestual e as onomatopéias que substituem as palavras.

Nesta estória que mima Fo, em um pequeno resumo, um camponês narra a sua saga e inúmeras aventuras que passou quando integrava o Sétimo Exército (comandado por Mao Tsé-tung e Chu-té). Quando realizaram a Grande Marcha com centenas de homens, atravessando toda a China e, morrendo aos montes pelo caminho, em um certo momento, o soldado (ele mesmo) foi atingido por um projétil na perna. Impossibilitado de continuar, pede aos outros que sigam a marcha deixando-o para trás. Seus companheiros contrariados deixaram-no, e pouco tempo depois, iniciou-se uma grande tempestade transformando tudo em um imenso rio. O soldado se arrasta e consegue encontrar uma caverna escura, e dentro dela, uma família de tigres enormes, com a qual terá de conviver e dividir a comida, ou quem sabe, ser a comida. Quando Fo mima a tigresa querendo dar de mamar para ele, pois os filhotes a rejeitavam com as barrigas cheias de água por causa da enchente, ele diz a ela: “não quero, obrigado, não estou com fome” e, ao mesmo tempo, mama contrariado. A tigresa, com as tetas cheias de leite, esmaga-o, enquanto ele continua a dizer: “não obrigado, já estou satisfeito” e, simultaneamente, continua a mamar e a falar de boca cheia, mudando as

“objetivas cinematográficas”, os enquadramentos, com sua própria gestualidade, hora para ele, hora para a tigresa, em um jogo hilariante.

A mudança de enquadramento, a “objetiva”, sempre foi largamente utilizada pelos cômicos que através de uma ação mais ampla mudavam o foco de atenção do espectador para todo o palco ou para um pequeno detalhe de seu rosto. Considerando que possuímos “objetivas-clichês” já instaladas comodamente em nossos cérebros, é necessário um esforço do ator para despadronizar estes “zoom”. Fo ainda fala no ritmo em que suga o leite, aumentando em ritmo crescente, da mesma forma como aumenta a sua agonia por ver que não pode contrariá-la, pois sabe que pode ser a próxima janta.

Cansado de assar as presas que a tigresa e seus filhotes caçam como se fosse uma “dona de casa”, como ele mesmo diz, preparando sempre ele o jantar, o soldado-camponês sai, enquanto o filhote grita: “Mama, l’scapa!” (Mamãe, ele está fugindo!). Durante toda a encenação Fo empreende uma “construção de sentido”, elemento que iremos chamar assim e do qual trataremos mais adiante, fazendo o rugido do tigre na mesma cantilena e ritmo da frase a qual quer aludir. Depois diz a frase em italiano ou em dialeto no mesmo ritmo do rugido. Nesta situação que narramos, Fo faz justamente o contrário, pois o próprio filhote fala a frase no ritmo do rugido substituindo o OEAUHH!!!. Este é um recurso que se utiliza diretamente do ritmo das palavras sem exatamente utilizar a própria palavra em si, no qual o intérprete faz a construção de sentido para depois aludir a ele.

Há trinta anos, durante a montagem de Dito nell’occhio (Dedo no olho), ao lado de Lecoq, aprendi a demarché (modo de andar) do felino [...]. A questão é que mesmo conhecendo essa caminhada, que é elegante, de efeito e aproxima-se bem da real, eu não a usei durante toda a apresentação [da História da Tigresa]. Por quê? Para evitar ser descritivo, é justamente isso, pois teria banalizado o conto, em vez de reforçá-lo. É preciso reunir a coragem e a inteligência de aludir em lugar de realizar a descrição completa. [...] Isto determina um estilo e um ritmo mais denso da narrativa da história. (FO, 2004: 241)

Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, assim como em várias escrituras de Fo, a oposição gestualidade x gestualidade ou gestualidade x palavra, está também diretamente relacionada à troca quase simultânea de personagens. Em “A história da Tigresa”, Fo enquanto diz a fala do camponês contrariado, mima quase simultaneamente a tigresa lhe impondo alguma ação. Em A descoberta das Américas, para citar alguns de diversos exemplos, Julio Adrião faz Johan Padam abrir a porta da casa de sua “namorada-

bruxa” e, enquanto os inquisidores entram para levá-la, ele diz: “O que é isso?!!! Como vocês entram assim?”, ao mesmo tempo que se coloca ele mesmo no corpo de sua namorada que grita e, uma de suas mãos, personificando os inquisidores, a puxa pelos cabelos em uma situação hilária. Estes “jogos de oposição” estão sempre relacionados a um jogo rítmico encadeado e, por vezes, mais acelerado.

Fig. 7 A descoberta das Américas Vídeo produzido por Filmes do Serro

Johan Padan e seus amigos embarcaram por acaso em uma caravela que estava de partida para uma expedição que acaba por descobrir a América. Quando chegam a Flórida, encontram uma tribo imensa de índios e em um determinado momento, os índios os prendem pelas mãos e pelos pés. Johan diz que está com medo, que não sabe para onde os índios estão os levando, ao mesmo tempo que mima ser puxado por eles, saindo aos pulinhos.

Em outro momento, as índias de uma tribo, para deixar Johan e seus amigos mais contentes, os levam para a cachoeira. Elas os lambem, passam ungüento, os dão mordidinhas. Johan faz os gestos das índias enquanto ele recua e ri com as cócegas. Mais adiante, quando Johan vai domar os cavalos chucros trazidos da Europa na expedição, para mostrar aos índios, ele descreve como domará o cavalo, enquanto ele mesmo faz o cavalo chucro que se debate e relincha.

Fig. 08 A descoberta das Américas Vídeo produzido por Filmes do Serro

Um exemplo de oposição entre gestualidade e palavra está em uma das cenas finais do espetáculo. Enquanto Johan diz: “antes que a situação degringolasse, eu ‘deixei’ que os espanhóis seguissem pela floresta acompanhados dos canibais”. Enquanto isso, Johan acena para eles e sorri, ao mesmo tempo que diz: “nunca mais ouvimos falar nem deles, nem dos canibais”.

Já em Il Primo Miracolo, os jogos de oposições estão presentes nas ações extracotidianas, e por vezes, abstratas. As palavras estão sobrepostas nestas partituras de ações construídas passo a passo pelo intérprete e, as quais, identificam principalmente as ações de cada personagem. Algumas das partituras de ações das personagens estão construídas a partir de imagens de quadros da série “Retirantes” de Cândido Portinari (1903 – 1962), como veremos no próximo capítulo.

Quando entra em cena o mensageiro que traz uma ordem de Herodes para que os pais levem até ele os meninos recém-nascidos, o intérprete mima com a gestualidade própria do mensageiro e diz: “Ouçam mães, mulheres! Quem de vocês pariu nos últimos três dias um menino, pode ficar contente porque o rei decidiu dar um prêmio ao menino mais bonito. Levem-no ao palácio. Levem-no à casa de Herodes e, o menino mais bonito vai ter uma coroinha onde se lê: Oh, como é bonito este menino!”. Toda vez que o mensageiro fala

“menino”, ele coloca a mão espalmada sobre a cabeça, e faz um movimento para frente e para trás, talvez identificando o ornamento da cabeça do mensageiro, desconectado de qualquer verossimilhança.

Mais adiante, o intérprete narra o desespero das mães com seus filhos mutilados por Herodes, determinado a encontrar o “salvador”. Enquanto o intérprete fala: “Neste momento, ouve-se o choro pelas ruas. Ouvem-se os gritos desesperados das mulheres, das mães com seus filhos ensangüentados, cortados em pedaços”, o intérprete anda devagar, curvado, falando bem baixinho, em um ritmo contrário ao desespero das mães da cidade.

Figs. 09 e 10 – Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Vídeo Produções

Os jogos de oposições nos espetáculos analisados, muitas vezes, partem da construção gestual, vocal e rítmica, isto é, da construção da linguagem, dos próprios atores para o espetáculo. Na escritura de Fo e dos espetáculos analisados, a comunicação gestualidade-palavra, ao fazer com que as palavras se choquem, que os fonemas se oponham no grammelot e as variedades dialetais se enfrentem através de linhas melódicas distintas, arrastam a linguagem (palavras e gestos) mais além de um sistema de oposições.

O ator, na sua ação, deve ser capaz de criar uma síntese que contém a essência dos contrastes, e essa síntese deve ser materializada por meio da plasticidade, por meio do desenho dos movimentos cênicos que Meyerhold também chama de dança.

Com o Teatro de Revista, Fo também aprendeu a combinar mímica e pantomima ao ritmo musical. Apossou-se da pesquisa musical, ampliou-a e imprimiu nela a sua própria pesquisa gestual.

A escritura de Fo contém o próprio ritmo de seu espetáculo que Franca Rame, sua esposa, não deixa desandar com suas batidas na coxia. Este reescrever da escritura, contém o elemento mais importante para Fo: “o tempo teatral”.

O ritmo geral da encenação, dispõe as ações cênicas no tempo organizando os materiais falantes em deslocamento no espaço e no tempo, isto é, a organização “musical” das palavras e das ações.

É preciso ensinar aos atores a sentir o tempo em cena como o sentem os músicos. Um espetáculo organizado de modo musical não é um espetáculo no qual se faz música ou então se canta constantemente por trás da cena, é um espetáculo com uma partitura rítmica precisa, um espetáculo cujo tempo está organizado com rigor.

(MEIERHOLD apud PAVIS, 2005: 134)

Uma encenação pode adotar um ritmo que parece muito lento, mas que devido à relativa freqüência das mudanças na atuação, parece acelerar o movimento e mantém alerta a atenção do espectador; ou pode durar muito tempo e dar a impressão, através do ritmo das ações, que o tempo que se passou foi muito menor, como nos espetáculos analisados.

Para não denunciar o ritmo que está por vir, segundo Fo, é preciso encontrar microrítmos dentro da ação, na consciência dos tencionamentos e destencionamentos.

O principal elemento visível comentado na literatura crítica em relação ao ritmo nas obras de Dario Fo, é a quantidade de gagues, que, reforçando as falas ou traindo o seu sentido, resultam em eficiente ritmo para o desenvolvimento das ações do espetáculo. Franco Quadri, citado por Neyde Veneziano (2002), também comenta os movimentos conjuntos exasperados e mecânicos que encontramos registrados em sua escritura. “Uma mesma frase pode ter um significado dramático ou grotesco, segundo o ritmo que foi determinado entre os diferentes atores, entre o ator e o personagem e, principalmente, entre o ator e o público.” (FO apud MELDOLESI apud VENEZIANO, 2002: 218)

Os elementos que podem servir de métodos de análise do ritmo, segundo Pavis, podem estar também associados à palavra, pois ela se deixa melhor apreender pelos efeitos binários como silêncio/palavra, fluência rápida/lenta, acentuação/não-acentuação, destaque/banalização, tensão/relaxamento. Já no fôlego examina-se sua extensão, seu

encadeamento, organização sintática e semântica de cada grupo e na função dos movimentos de pausa, a estruturação do pensamento, momentos recaptulativos, conteúdo semântico. Na prosódia, a intensidade, duração e altura formam a base para a percepção das mudanças de quadros rítmicos.

O sucesso de uma obra depende muito do encadeamento rítmico dado à ela, principalmente em um monólogo, que facilmente pode tornar-se monocórdio. Neste caso a variação rítmica consciente, é de extrema importância para a criação da imaginação no espectador.

Sobre a primazia do ouvido no teatro, no qual as ações são antes “escutadas” do que percebidas diretamente, Deleuze comenta no contexto da obra de Carmelo Bene, mas perfeitamente aplicável à obra de Dario Fo:

Na variação, o que conta são as relações de velocidade ou de lentidão, as modificações destas relações, na medida em que comportam os gestos e os enunciados, segundo coeficientes variáveis, ao longo de uma linha de transformação. É neste sentido que a escritura e os gestos [...] são musicais: porque toda forma se encontra deformada nesta linha por modificações de velocidade, que faz com que não se repita duas vezes o mesmo gesto ou a mesma palavra sem obter características diferentes de tempo. (DELEUZE, 2003: 92, tradução nossa)46

Ao lado da figura que o ator constrói em cena com os seus gestos, seus movimentos e suas ações, o ritmo da narrativa constituirá o caminho para o encontro com a linguagem teatral, linguagem física que se constitui não como espelho da vida mas como um duplo, um outro tipo de jogo de oposições, palavra/gesto, peste/cólera, como queria Artaud. A força intrínseca ao movimento do corpo, é capaz de desorganizar a razão, reenviando-a o tempo todo para o fugidio campo das sensações. Os gestos traduzem a lógica interna da produção do sentido, representa os ritmos pelos ritmos, as formas por si próprias.