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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA -UDESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT MESTRADO EM TEATRO MELIZE ZANONI

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA -UDESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT

MESTRADO EM TEATRO

MELIZE ZANONI

DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVRA NAS CENAS DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO

DE ROBERTO BIRINDELLI

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MELIZE ZANONI

DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVRA NAS CENAS DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO

DE ROBERTO BIRINDELLI

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Teatro, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa Poéticas Teatrais.

Orientador: Prof. Milton de Andrade Leal Jr, Dr.

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AGRADECIMENTOS

Ao PROMOP, Programa de Bolsas de Monitoria de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina, pela Bolsa concedida a mim no primeiro ano do curso, que me permitiu realizar a pesquisa da qual essa dissertação representa um primeiro resultado;

Ao professor Milton de Andrade Leal Jr., orientador da pesquisa, pelo suporte na construção do trabalho;

Aos Professores Valmor Nini Beltrame e José Ronaldo Faleiro, pelos ensinamentos, apoio e estímulo;

Aos atores Julio Adrião de A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos e Roberto Birindelli do espetáculo Il Primo Miracolo, da

Cia do Bebê, pelas entrevistas e pela disponibilidade;

À Alessandra Vannucci, diretora do espetáculo A descoberta das Américas, pelos textos enviados;

À minha família, pelo apoio e amor incondicional;

À Profa. Beatriz Ângela Cabral, supervisora da Bolsa de Monitoria de Pós-Graduação, pelos ensinamentos e pela amizade;

Ao amigo Ivo Godoi, pelo apoio e amizade;

Aos funcionários da biblioteca do CEART-UDESC, pela paciência e dedicação;

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Penso que o teatro se faz mais vivo quando um elemento questiona sempre o outro. O movimento põe em questionamento a imobilidade, e a imobilidade o movimento. O texto questiona o silêncio, e o silêncio o texto; esta é certamente a

importante função política do teatro,

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RESUMO

Esta pesquisa investiga em que dimensão a formalização de procedimentos provenientes do teatro-solo de linha física, no qual a cena é determinante do texto falado, oferece caminhos concretos para um problema específico da arte teatral: a relação gestualidade - palavra. Para a verificação das hipóteses e problematização do tema desta pesquisa, foram analisados dois trabalhos apresentados por grupos brasileiros que possuem como base para sua dramaturgia os monólogos escritos pelo ator e dramaturgo italiano Dario Fo: A descoberta das Américas, representado por Julio Adrião, dirigido por Alessandra Vannucci e produzido pelo Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos

do Rio de Janeiro, e Il Primo Miracolo, representado e dirigido por Roberto Birindelli, da Cia do Bebê de Porto Alegre. A pesquisa está centrada na análise de alguns elementos que constituem as partituras gestuais destes espetáculos e sua relação com o texto, tais como: repetição, fragmentação, quebras, descrição, criação de sentido, corporificação do texto e suas relações intertextuais.

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ABSTRACT

This research investigates in which dimension the formalization of the procedures from solo theater of physical line, in which the scene determines the spoken text, offers concrete ways to a specific problem in the performing arts: the gesture-speech relation. To check the hypothesis and problems of the theme of this research two works presented by Brazilian groups that have as base for their dramaturgy the monologues written by the Italian actor and dramaturg Dario Fo were analyzed: A descoberta das Américas, presented by Julio Adrião, directed by Alessandra Vannucci and produced by the production team Leões de Circo Pequenos empreendimentos from Rio de Janeiro and Il Primo Miracolo, presented and directed by Roberto Birindelli, of the Cia do Bebê from Porto Alegre. The research focuses on the analysis of some elements that constitute gestural score of these spectacles and their relation to the text, such as: repetition, fragmentation, breaks, description, sense creation, textual embodiment and its intertextual relations.

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ÍNDICE DE FIGURAS

FIG. 01 Gestos -Julio Adrião em A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção

Leões de Circo Pequenos Empreendimentos... 14

FIGS. 02 e 03 Posturas – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo, da Cia do Bebê... 16

FIG. 04 Alga Marinha - Julio Adrião em A descoberta das Américas... 46

FIG. 05 Gestual – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 58

FIG. 06 Gestual – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 58

FIG. 07 Jogo de Oposição – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 72

FIG. 08 Oposição – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 73

FIG. 09 Oposição – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 74

FIG. 10 Mães/oposição – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 74

FIG. 11 “Costura dos Índios” – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 81

FIG. 12 Arrumando os órgãos – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 83

FIG. 13 Linha – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 85

FIGS. 14 e 15 Gestualidade – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 87

FIG. 16 Caricatura/ Índio – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 91

FIG. 17 Menino-Jesus – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 91

FIG. 18 Pausa – Julio Adrião em A descoberta das Américas... 103

FIG. 19 Mãos – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 104

FIG. 20 Pés – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 110

FIG. 21 Gestos – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 110

FIG. 22 Retirantes (1944) - Cândido Portinari ... 112

FIG. 23 Enterro na Rede (1944) - Cândido Portinari ... 113

FIG. 24 Criança Morta (1944) - Cândido Portinari ... 113

FIG. 25 Menino - Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 117

FIG. 26 Pérola - Julio Adrião em A descoberta das Américas... 121

FIG. 27 Julio Adrião em A descoberta das Américas... 133

FIG. 28 Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo... 133

FIG. 29 Crítica de Bárbara Heliodora – Jornal O Globo de 27 de outubro de 2005 ... 179

FIG. 30 Crítica de Fausto Wolff – Jornal do Brasil de 05 de fevereiro de 2006 ... 180

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1. A ESCRITURA E O LUGAR DO TEXTO EM DARIO FO

1.1 De histriões, bufões e giullari: a gestualidade teatralizada ... 01

1.2 Falar sem palavras: a gestualidade e o grammelot ... 11

1.3 A situação ... 18

1.4 O autor-ator: o improviso e o processo colaborativo entre ator e público ... 23

1.5 O riso inteligente: o prólogo... 32

1.6 O ator – narrador... 35

2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UMA ABORDAGEM DOS ESPETÁCULOS A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS E IL PRIMO MIRACOLO 2.1 O pöer nano que descobriu as Américas ... 42

2.2 Mistério bufonesco: a alegoria ... 47

2.3 A mímica moderna e a estética do movimento... 53

2.4 O espaço vazio: o espaço da imaginação... 59

2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo... 67

3.O CORPO SUBLINHADO: A CORPORIFICAÇÃO DO TEXTO 3.1 A narrativa do corpo: repetição, quebras, descrição e criação de sentido na construção das ações em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo ...78

3.2 A descoberta do silêncio: as pausas na construção das ações em A descoberta das Américas ...97

3.3 Os retirantes da Terra Santa: a gestualidade de Il Primo Miracolo e a obra de Portinari ... 104

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CONSIDERAÇÕES FINAIS... 134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 140

APÊNDICE... 146

Apêndice I – Entrevista concedida por Roberto Birindelli de Il Primo Miracolo... 147

Apêndice II –Entrevista concedida por Julio Adrião de A descoberta das Américas ... 158

ANEXO... 167

Anexo I – Textos inéditos de Alessandra Vannucci de A descoberta das Américas ... 168

Anexo II – Trechos de Críticas sobre o espetáculo Il Primo Miracolo ... 175

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa investiga os principais elementos que surgem da relação corpo-dramaturgia em dois espetáculos encenados no Brasil: A descoberta das Américas (2005), representado por Julio Adrião, com direção de Alessandra Vannucci, do Núcleo de produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos do Rio de Janeiro, e Il Primo Miracolo (1992), representado por Roberto Birindelli, da Cia do Bebê de Porto Alegre, espetáculos que encenam textos do italiano Dario Fo (1926 -), que se configurou como um dos dramaturgos mais encenados do mundo, sendo reconhecido por seu trabalho distinto no que diz respeito à comunicação gesto-palavra.

Precisamente por sua dificuldade de permanência na memória histórica, a gestualidade se empobrece nos relatos, no que diz respeito ao evento teatral, e a palavra acaba alcançando uma melhor forma na análise da cena. Alicerçado na imediatez da comunicação e do efêmero da vivência festiva, o teatro é um feito complexo resultante da combinação de um conjunto de elementos heterogêneos, e que só em sua síntese, através da representação, adquire sua plenitude.

Enquanto na obra literária as personagens e as ações “virtuais” (e o mundo imaginário em que se encontram inseridas) dependem das palavras, no teatro as palavras dependem das personagens e da ação real construída. Já não são as palavras a base das quais se constituem as personagens ou as ações, mas estas que constituem aquelas.

Desde Aristóteles se tem pretendido erigir o texto literário no conteúdo essencial da arte dramática, mas entender o teatro fundamentalmente como texto de palavras, significa limitar e reduzir o alcance da arte cênica e fracionar sua especificidade.

O específico do espetáculo teatral reside na comunicação condicionada pelo lugar e tempo em que se produz, e em cada obra existe a constante luta de uma técnica que se quer fazer repetível, ou que é repetível, e o efêmero que pode ser visto apenas no momento presente, como a gestualidade e seus impulsos correspondentes.

Se até o século XIX o teatro não mediu esforços para reforçar a credibilidade da palavra como suporte da razão, a partir do século XX, com a renovação da tradição corporal, a palavra perdeu a sua clássica transparência como um meio inocente a serviço da representação da realidade.

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dentro da comunicação humana. A era da eletrônica, da imagem, das telecomunicações, mas também da reivindicação do corpo e das identidades, exige a reconsideração da palavra frente a gestualidade, a luz de novos contextos, apesar de que sempre estará relacionada a antigos conceitos fundadores.

O objetivo principal desta dissertação é estudar as relações entre matrizes e partituras textuais e matrizes e partituras corporais, discutindo as relações entre gestualidade e palavra escrita e corporificada.

Dario Fo, cujos textos e obras ajudarão a alimentar as reflexões desta pesquisa, apreendeu as matrizes do ritmo narrativo e da arte de inebriar os ouvidos, sentado ao lado de seu avô na carroça em que vendia verduras e contava fábulas para angariar clientes. Menino criado à beira do Lago Maggiore, ajudava com suas pequenas mãos e imaginação arredia a remendar as redes de pesca ouvindo estórias de pescadores e contadores de histórias, que sem saber, se utilizavam de modelos medievais e renascentistas em sua narrativa.

Criado nos braços da narrativa oral onde o texto original desaparece e se transforma em um texto inédito a cada recontar, e praticamente obriga o público a interagir, Fo aprendeu a entender os fatos locais e adaptá-los às situações e às reações de cada público ouvinte para vender seu peixe: suas estórias fantásticas.

Como as estórias possuíam apenas roteiros passados oralmente de um para outro, Dario Fo prestou atenção no que justamente fazia a diferença nas estórias contadas: a gestualidade. A gestualidade vinha da busca de clareza, vivacidade, frescor, ritmo e energia, cujo principal objetivo era atingir diretamente o público.

Da época medieval, Fo traz os giullari, seus textos, e suas irreverências, e da

commedia dell’arte que tem nas veias, Fo reaproveitou seus zanni e seus procedimentos, atualizando-os em espetáculos contemporâneos.

A partir daí, Dario Fo construiu uma teatralidade própria fundada nos gestos, na mímica e na capacidade de dar vida sozinho a uma estória repleta de personagens.

E foi através da convivência com as estórias de loucos, de pescadores, de mascates e de fabuladores, que Fo construiu o seu imaginário e aprendeu as matrizes de seu teatro: a crítica social, a comunicação direta com o público, a improvisação, a teatralização de fatos reais, a clareza do gesto, a hipérbole e o paradoxo, a importância da gestualidade e do ritmo da fala.

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corporalidade da palavra nos dois espetáculos encenados no Brasil. Os textos de Dario Fo, suas pesquisas teórico-práticas contidas em seu Manual Mínimo do Ator (1998), os vídeos de alguns de seus espetáculos e pesquisas sobre sua obra publicadas no Brasil, são as fontes secundárias utilizadas nesta pesquisa. As entrevistas com os atores e diretores de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo e os vídeos dos espetáculos se configuram como as fontes primárias deste trabalho.

No primeiro capítulo, estão presentes os elementos que saltam dos textos escritos de Fo para as montagens analisadas e que são de fundamental importância para uma abordagem da relação gestualidade - palavra nos espetáculos analisados: a situação, a gestualidade dos cômicos antigos, o improviso, a gestualidade e o grammelot, o ator - narrador, a simultaneidade, o prólogo.

No segundo capítulo, elementos como as metáforas e alegorias, a figura do pöer nano, a mímica, o espaço vazio e o jogo de oposições, alimentarão as reflexões sobre os espetáculos analisados.

Como a obra escrita de Dario Fo impulsiona a criação por parte dos atores através de suas estórias “incompletas”, nas quais os atores necessitam criar códigos de gestualidade para comunicar-se diretamente com o público, foram escolhidos alguns elementos que serão analisados dentro da relação corpo-dramaturgia nas duas montagens e que farão o recorte do olhar sobre estas duas obras no terceiro capítulo: repetição, fragmentação, quebras, descrição, criação de sentido. Neste capítulo, se encontram os elementos distintos como a pausa e a construção de estruturas de ações através de imagens (como as imagens de Portinari utilizadas por Roberto Birindelli) e os pontos de encontro entre a comunicação gesto – palavra nos dois espetáculos.

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1. A ESCRITURA E O LUGAR DO TEXTO EM DARIO FO

1.1De histriões, bufões e giullari1: a gestualidade teatralizada

Em teatro, o gesto precisa ser reinventado, do mesmo modo como se reinventam as palavras. É necessário aprender a partir da realidade, não das convenções da realidade. (FO, 2004: 269)

As matrizes populares das fábulas grotescas e irônicas perpassam toda a obra e os estudos de Fo em relação ao gesto e a palavra. Os estímulos do racconto somaram-se com o gosto pelos puppi (bonecos) e seus movimentos, e aos meios expressivos vocais que utilizou quando passou a trabalhar contando histórias na rádio.

Com o Teatro de Revista, Fo aprendeu o processo coletivo de criação do espetáculo, as alegorias, os personagens que exprimem a lógica do povo, e ao trabalhar com a música, combinou mímica, pantomima e ritmo musical.

Falar de espetáculos que possuem como base a dramaturgia de Dario Fo, é falar de uma gestualidade intrínseca em sua obra escrita e que transparece no texto do espetáculo em qualquer frase de palavras. A dramaturgia de Fo se configura como uma escritura de ações pelo modo distinto como é codificada, pois suas palavras são absolutamente dependentes da cena.

[...] acreditamos que o gesto e a gestualidade são sempre a salada, o acompanhamento, enquanto o prato principal, a carne, é sempre a palavra. Inculcam-nos esta idéia desde o jardim de infância. Desde então corrigiram-Inculcam-nos a pronúncia de cada palavra, e nunca o gesto que poderia substituí-la ou apoiá-la. O gesto é relegado até mesmo no trabalho do ator. (FO, 2004: 62)

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A obra literária ou dramática e a obra teatral assumem dois caminhos diferentes, tanto em sua materialidade (palavra escrita diante da voz e do corpo em ação) como em seus modos de recepção (a abstração e a imaginação que supõe a leitura, diante da presença física do ator e do espectador); mas mesmo um texto dramático dito “aberto”, fragmentário ou circular, capaz de problematizar os limites do sistema da representação verbal, como as dramaturgias de vanguarda ou mesmo a obra de Dario Fo, podem ser objeto de uma representação de maneira tradicional. É claro que isto entra em contradição com os princípios estéticos destas obras, pois possuem de modo implícito uma crítica radical da representação tradicional, convertendo a cena em um espaço de desestabilização das bases da representação. Este teatro de linha física alicerçado nas bases do teatro corporal dos farsantes de feira e dos cômicos da commedia dell’arte, com seu despojamento cênico, volta a ser o centro da cena no final dos anos sessenta, nos quais a reformulação de um teatro gestual se afina perfeitamente com a proposta de Dario Fo, a qual se constitui imersa na situação dramática com sua ação vocal e corporal também herdada de uma mesma geração artística de pedagogos da mímica moderna e da pantomima.

Deste modo, a escritura composta por Fo, inevitavelmente, interfere fisicamente na concepção de espetáculos que se propõe a seguir, mesmo que em parte, a dramaturgia proposta por ele. Esta escritura está estruturada em uma linha física baseada na ação, sendo portanto, difícil desenvolver a partir dela, um espetáculo que não siga esta mesma linha física de partituras traçadas e recortadas para servir a uma determinada ação não naturalista, baseada na mímica e na ação vocal.

[...] o conceito de ‘escritura’, que implica uma condição performativa como prática real, substitui o de ‘texto’ como estrutura já realizada. Nesta qualidade processual e performativa do texto como ato de escritura, estrutura em construção e exercício de estruturação antes que estrutura, a obra se emancipa de sentidos únicos, discursos ideológicos e leituras impostas desde pressupostos não artísticos, ao mesmo tempo que conquista para si uma realidade específica não isenta de uma qualidade política em tanto que ação. (CORNAGO, 2005:13, tradução nossa)2

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Como a escritura de Fo nasce da ação pensada e repensada, fazendo um caminho contrário que nasce da cena para desembocar nela própria, a ação pensada na ação, e não a partir da palavra, reflete na cena novos elementos que não estão presentes em textos que se configuram como textos literários escritos para a cena e não na cena.

Portanto, para se propor uma análise de espetáculos que nascem deste tipo de dramaturgia contada e recontada, e somente depois transcrita, como é o caso dos espetáculos

A descoberta das Américas3 e Il Primo Miracolo4, é necessário empreender uma análise baseada nos elementos da cena e que também constituem a pesquisa e o imaginário do autor.

Como projeção desta concepção ativa da escritura, se levanta uma idéia correspondente da leitura, entendida, antes que como produto, como atividade em processo de realização na cena comum da comunicação artística, uma leitura como praxis capaz de sentir a vibração interna que articula um texto, de voltar a experimentar o estremecimento que guiou sua criação material, reencontrando-se com o autor no prazer compartilhado da criação [...]. (CORNAGO, 2005:14, tradução nossa)5

Como se nutre do improviso e de alguns códigos do antigo teatro para compor suas obras, os elementos do teatro medieval e seus personagens histriônicos inspiram a escritura de Fo e merecem um olhar atento, pois inspiram principalmente os seus monólogos, em se tratando dos procedimentos utilizados pelos “profissionais” da narrativa medieval, como os giullari.

Apesar da noção de teatro como atividade estruturada ser praticamente inexistente na sociedade medieval, seus bufões, giullari e histriões compõe uma noção estrutural da gestualidade do medioevo e renascimento.

O texto literário medieval, tanto do gênero épico ou lírico deixava uma grande margem de liberdade a adaptadores e executantes, de maneira que podia ser lido, declamado,

3 Com tradução de Julio Adrião e Alessandra Vannucci, do monólogo Johan Padan a la descoverta de le

Americhe de Dario Fo, o espetáculo é uma produção do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos (Rio de Janeiro) com direção de Alessandra Vannucci e atuação de Julio Adrião.

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recitado de modo dialógico ou representado cenicamente segundo a ocasião e as condições puntuais (festivas, litúrgicas, comemorativas, etc) e até mesmo conforme as disponibilidades técnicas, materiais e humanas do momento e do lugar. Portanto, em se tratando do teatro medieval, e até certo ponto do teatro renascentista, falar do texto literário para analisar seus procedimentos, assim como dos textos de Fo, é acometer-se de um mal entendido, apesar de que vale sempre destacar que a commedia dell’arte nunca foi o único gênero dominante na Itália e na Europa no final da Idade Média e Renascimento. Existiam também autores como Pietro Aretino (1492 - 1556) e Giordano Bruno (1548 - 1600), entre tantos outros, apesar de alguns textos deste último, filósofo e amante das artes, assim como os textos de outros autores medievais e renascentistas, terem sobrevivido apenas nos relatos.

Os procedimentos do teatro medieval e renascentista, cerne dos estudos de Fo, não residem no estudo do texto literário, mas requerem mais que nenhum outro, uma investigação de seus componentes espetaculares, plásticos e representativos. “Essa tradição popular dos

guitti [cômicos ambulantes] ofereceu a Fo uma técnica codificada que ultrapassa o conceito de texto-espetáculo”. (VENEZIANO, 2002:124)

Há duas vertentes no teatro medieval em que se manifestam as formas espetaculares dedicadas ao fazer rir, e nas quais podemos encontrar procedimentos que podem servir de ponto de partida para a análise dos elementos presentes na escritura das cenas dos espetáculos que serão analisados: por uma parte a tradição clássica de que são continuadores os mimos, histriões e giullari, autênticos “profissionais” da diversão em suas mais diversas bifurcações, e por outra, a tradição festiva popular. Em ambas beberam os gêneros cômicos que só ao final do medioevo começam a por-se por escrito.

Até fins do século XIV e princípios do XV, quando o humanismo redescobre obras de Plauto (250 a.C - 184 a.C) e Terêncio (185 a.C - 159 a.C), os únicos indícios claros do espetáculo antigo durante o medioevo são ostentados pelas habilidades corporais dos histriões, e por isso, duramente perseguidos sem trégua, e de certa forma, sem êxito, pela instituição eclesiástica.

A atividade jogralesca é o verdadeiro fio condutor da teatralidade medieval graças à universalidade de suas técnicas básicas: a mímica, a dança, a música, etc, permitindo aos seus artífices uma grande mobilidade não só corporal, como geográfica e social.

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lúdica e a capacidade de “ler” e transmitir criticamente, é sem dúvida, o que mais deve chamar a atenção de Fo, pois requer uma multiplicidade de habilidades presentes em um só ator, que se apóia em seu próprio corpo e gestual para contar as histórias e aludir aos eventos propostos.

Numerosas, variadas e contraditórias são essas figuras históricas, ou essas profissões marginais e divertidas, que, durante séculos, ficaram conhecidas na Itália como

giullari: bufões, menestréis, trovadores, histriões, mimos, saltimbancos, cantastorie, acrobatas, atores ambulantes, cuspidores de fogo, prestidigitadores, palhaços, mágicos, bobos da corte. Com certeza, na maioria das vezes, o giullare reunia em si mais de uma dessas funções, sobretudo em épocas muito remotas, quando ele poderia, ao mesmo tempo, contar e cantar histórias, fazer malabarismos e compor seus próprios versos. (VENEZIANO, 2002: 168)

Mas apenas os giullari que cantavam a vida dos santos não “queimariam no fogo do inferno” segundo clérigos e cortesãos. O ator (mimo, jogral, histrião) é jogado à condição marginal e infamante, pois ao mesmo tempo que lhe são concedidos os espaços das ruas e feiras, os espaços sem hierarquias, nos quais lhe dão uma estética propriamente popular e de gestual grande e teatralizado, lhe negam um espaço específico; e, ao mesmo tempo que lhe condenam a palavra à censura, lhe condenam a pura corporeidade e a gestualidade com que se exibe. É duplamente censurado, posto que sua atividade resulta impudica, e por tanto, improdutiva, pois frente à gestualidade móvel do histrião (signo de efemeridade), estão os gestos suspendidos e solenes (signo da eternidade) dos atributos da sacralidade, da divindade ou do poder soberano.

Com a renovação da retórica no ensino das escolas urbanas, durante o século XII, comportará uma revalorização do gesto, mas moderado do bom orador, em contraposição à gesticulação excessiva do histrião.

Quando o corpo passa a converter-se em objeto de reflexão, a eloqüência do gesto é assumida por monges e figuras religiosas, outorgando-se ao mimo e ao jogral um lugar de ação (no qual serão chamados a atuar em solenidades oficiais) e uma função social que os levará a um paradoxo: reprimir, por vezes, os jograis que possuíam, a habilidade crítica e, por outro, a legitimar seu status cultural.

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ser contado. O gesto não inspirava emoção, mas muitas vezes, ilustrava a palavra e, portanto, se limitava a corroborar o que se estava dizendo.

Já no período quinhentista, o gesto introduz novos significados: já não é um signo que redunda ao que expressa a palavra, mas se estabelece uma interação entre o código verbal e o gestual que permite “imitar” mais ajustadamente a atitude do personagem. A interpretação já não se limita a ser suporte do texto, mas começa a ter entidade própria a partir do momento que não se cita a ação, mas se realiza. É neste momento que o espectador começa a captar a emoção do ato.

O conceito de verossimilhança, como a autoridade de Aristóteles, era invocado como argumento pelos partidos opostos; a relação entre arte e vida constituiu questão importante no debate quinhentista. Os críticos desse período geralmente interpretavam o conceito clássico de mimese como semelhança com a natureza, o que levava, em sua forma mais extrema, à literalização do tempo e do espaço dramáticos conforme pode ser vista em Castelvetro. [...] A partir da idéia de que um personagem, se quisesse dar a mais cabal ilusão da realidade, deveria seguir idéias aceitas de como pessoas de determinada idade, classe e profissão se comportam, o conceito naturalmente evoluiu para uma doutrina de tipos físicos, consistentes ao longo de cada obra e até de obra para obra. Ao final do século [XVI], escritores como Guarini começavam a desafiar essa idéia opondo-lhe a verossimilhança: qualquer que fosse a idéia geralmente acatada de um tipo, os indivíduos na natureza nem sempre agem em concordância com esse tipo, de sorte que estilos e tons contrastantes talvez representem melhor a realidade e, portanto, sirvam melhor à ilusão dramática. (CARLSON, 1995:51)

A partir do século XVI inicia-se uma tímida vontade de se por em manifesto a atitude e a emoção que o intérprete impõe ao texto. Para isso, a palavra teve de abandonar um pouco a sua tendência narrativa e empenhar-se na emotividade, até chegar no jogo de oposições iniciado com a commedia dell’arte (em que o gesto não acompanha necessariamente a palavra de maneira lógica) e tão estudado posteriormente por Vsevolod Meierhold (1894 - 1940), encenador e ator russo em sua biomecânica, por Antonin Artaud (1896 - 1948) e outros.

Os procedimentos “inconscientes” dos fabulatori da região do Lago Maggiore

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que traz dos giullari medievais, “pais” dos fabulatori, e dos tipos fixos da commedia dell’arte,

seus Zanni6e sua teatralidade fundada no gesto.

Fo pesquisará a figura do giullare e trará para seus monólogos sua maleabilidade, suas músicas, seus ritmos, sua gestualidade, escrevendo sua obra-prima Mistero Buffo, uma coletânea de textos-solo, na qual fala diretamente sobre a atividade dos giullari medievais.

Oh, gente, venham aqui que tem o giullare! Giullare sou eu, que salta e pirueta e que vos faz rir, que zomba os poderosos e vos faz ver como são empolados e cheios de si os orgulhosos que circulam a fazer guerras onde nós somos os explorados, e os faço desfigurar, lhes tiro a tampa e ...pffs...se esvaziam. Venham aqui que é a hora e o lugar que eu me faça de palhaço, que vos ensine. Faço um saltinho, faço uma cançãozinha, faço as brincadeiras! (FO, 1999:73, tradução nossa)7

O que atrai o interesse de Fo é aquele jogral que trabalha para o povo, não aqueles que eram propriedade de senhores ou que iam trabalhar nos palácios em troca de dinheiro.

Por outro lado, os elementos que atraem em relação aos bufões do palácio são as formas da ironia e do grotesco com que satirizavam o rei e seus cortesãos, que riam de si mesmos e se sentiam felizes por serem democráticos.

[...] a commedia dell’arte que interessa a Fo é aquela zanesca, quase obscena e agressiva do início, combinada à de uma segunda fase, em que a dramaturgia evolui rapidamente para uma forma plautina de comédia perfeita (até 1600), com a ampliação do repertório, que incluía também obras ‘sérias’. (VENEZIANO,

2002:112)

6Zanni eram apelidos dados pelos venezianos aos camponeses provindos do Vale do Rio do Pó, principalmente da região de Bérgamo. Deriva-se do nome Gianni, Giovanni ou Zanonne. Os Zanni, segundo Dario Fo, foram levados à falência pelo capitalismo, pois a economia conseguia se desenvolver devido à restauração do trabalho escravo, e os produtos alimentícios chegavam aos mercados de toda a Itália pela metade do preço, levando os

Zanni a mais completa miséria. Os Zanni são tipos fixos que estão ligados diretamente às figuras do povo, como os criados, esfomeados, andarilhos, malandros.

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A gestualidade em Fo, se estrutura não só com o estudo do teatro medieval e da

commedia dell’arte, mas, como diz Neyde Veneziano em seu estudo A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação (2002), o modelo oitocentista, as farsas e os procedimentos do teatro político também influenciaram suas obras.

A gestualidade dos giullari, a gestualidade exacerbada, teatral em todos os sentidos da palavra, e a gestualidade do mimo apoiada não no que diz a palavra em si, mas na sua essência, é o que traz Fo para sua escritura.

A essência do giullare, figura do povo, ou que serve ao povo, é a figura mais presente em seus monólogos. Seja um Jesus-menino com características absolutamente humanas ou quase “animais”, sujo e mal-educado, como em Il Primo Miracolo di Gesù Bambino (1970), no qual Jesus faz seu primeiro milagre para impressionar os amigos, seja um malandro fanfarrão, que se safa da Inquisição entrando em uma das caravelas de Colombo, e que realiza todo o tipo de “pequenos milagres” para sobreviver a naufrágios, tempestades, índios e espanhóis, como em A descoberta das Américas (1991).

A gestualidade do giullare medieval, assim como o giullare di Fo, é a gestualidade da emergência: da emergência da fome, da sobrevivência, da malandragem. É uma gestualidade trágica e cômica, mentirosa e verdadeira, cruel e pura, portanto, paradoxal no sentido mais profundo do termo.

A grande oferta lúdica dos atores antigos que faziam de tudo para sobreviver, inclusive contar histórias fantásticas de forma fabuladora e com diversos tipos de manifestações, como acrobacias, canto e dança, é o que as escrituras de Fo exigem de um ator contemporâneo.

Perfurar o teatro até sua essência de comunicação emotiva pode provar que, mesmo sendo um luxo, teatro é arte pobre. Um ator não tem mais nada para vender que o próprio corpo e a própria voz. Um ator é sujeito (autor) e objeto (material) de sua arte, diversamente do pintor, do músico, do escultor (que utilizam cores, instrumentos musicais etc).8

8 Texto escrito e enviado a autora via e-mail por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, peça representada por Julio Adrião e produzida por Leões de Circo Pequenos Empreendimentos (Rio de Janeiro),

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As marionetes também tem papel fundamental na construção da gestualidade da commedia dell’arte e de toda a tradição do teatro popular, assim como na construção da gestualidade em Fo.

O autor de um texto excepcional sobre o assunto, Roberto Leydi, nota que grande parte da mímica e do gestual das máscaras origina-se da articulação motora de marionetes e fantoches. [...] constatei isso ao ensaiar um andar particular, incluindo uma seqüência de meias voltas, no qual o súbito afastamento de uma perna e seu giro ao contrário é a imitação clássica da marionete. (FO, 2004: 44)

Acreditando que a maior estupidez de um intérprete está em não estudar “conscientemente” os impulsos que o leva a ser bem sucedido em determinadas passagens, em não fazer o caminho inverso para descobrir os insights capazes de serem codificados e repetidos, de modo a usar os estereótipos e as convenções de modo eficaz, fabulador e com ritmo, Fo traz o movimento dos puppi (marionetes), pois a Itália possui uma grande tradição no teatro de bonecos, tanto dos puppi como dos burattini (fantoches e bonecos de luva), para lembrar que toda ação pode ser analisada de forma codificada. Para se mover uma marionete com perfeição e dar-lhe alma, é necessário também conhecer suas articulações, sua estrutura, seus padrões de movimento possíveis, suas combinações, suas partituras.

A partitura física de ações, apesar de ser um procedimento antigo de estruturação das ações, é um conceito relativamente novo no que diz respeito ao ator humano no teatro, mas a marionete desde tempos muito remotos já inspirava estudos detalhados de movimentos e ações, transmitidos na relação mestre-aprendiz, que poderiam ser menos ou mais convincentes, para cada tipo de discurso e emoção a ser suscitada.

Como instrumento de estruturação da cena, a partitura funciona como um esquema diretivo que se baseia em pontos de referência e matrizes de criação, pontos de apoio para uma elaborada e complexa relação entre dramaturgia do corpo, do texto de palavras e da própria cena.

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No teatro medieval, e principalmente, no teatro renascentista, a noção de estruturação da cena e da improvisação existia, mas não como elementos passíveis de codificação e sistematização consciente em forma de partitura. A gestualidade estruturada a partir do recorte de partes do corpo, como mãos e rosto, para redirecionar o olhar do público, o exagero, a repetição de situações e a utilização do corpo como um todo para narrar a estória estão na base da corporalidade deste tipo de teatro.

A reteatralização da gestualidade, a crítica através da sátira e do grotesco, o improviso e os elementos acidentais incorporados à cena (como também faziam os fabuladores do Lago Maggiore em sua contação), os movimentos dos bonecos, marionetes e fantoches (Puppi e burattini), o paradoxo, os personagens-tipo carregados de atributos hilariantes (elementos presentes no teatro medieval e renascentista, e nos quais se apoiam as manifestações do teatro popular), somam-se a elementos também presentes neste tipo de teatro e fundamentais para a construção dos textos (espetacular e narrativo) dos monólogos de Fo: a narrativa que transita entre a primeira e a terceira pessoa, na qual os atores contam as histórias como se tivessem participado ativamente delas (técnicas de contação de histórias), a simultaneidade de personagens (em uma troca quase simultânea de máscaras9), a visão a partir da ótica do povo, o espaço vazio e a comunicação direta com o público.

É a partir da análise destes elementos presentes na escritura, principalmente dos monólogos de Fo, que estabeleceremos relações entre as ações propostas pela dramaturgia de

A descoberta das Américas, espetáculo interpretado por Julio Adrião10 e dirigido por

Alessandra Vannucci11, e de Il Primo Miracolo, espetáculo de Roberto Birindelli12, e os

elementos estruturais das ações e partituras físicas dos espetáculos encenados, propondo uma relação entre corpo, cena, dramaturgia.

9 Máscaras, neste caso, são as expressões faciais que caracterizam os personagens. 10Vide apêndice - breve curriculum e entrevista.

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1.2 Falar sem palavras: a gestualidade e o grammelot

Os commici dell’arte, assim como alguns giullari e bufões medievais, não utilizavam a língua materna para se comunicar na cena, mas uma outra inventada a partir de vários dialetos existentes (principalmente na Itália), sílabas e onomatopéias sem nenhum significado direto, a qual denominavam grammelot. Uma das hipóteses para explicar o uso desta linguagem diferenciada, é a de que partes fundamentais do texto poderiam ser captadas por um número maior de pessoas, e assim, cada região entenderia uma parte fundamental do discurso, proporcionando uma maior mobilidade geográfica dos atores ambulantes.

Alguns ainda atribuem à censura parte importante na construção da linguagem do

grammelot, pois como entendia-se a essência do tema através da gestualidade e ações dos atores, a igreja, os reis ou aristocratas, não poderiam comprovar a existência de trechos que os criticavam, ou que de alguma forma, não eram interessantes para suas imagens ou para algo ou alguém que protegiam. Outros atribuem a criação do grammelot a sociedades anteriores ao período medieval, mas o importante neste momento, é entendermos o mecanismo da linguagem do grammelot e o que ele suscita em relação à comunicação gesto-palavra.

Grammelot é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’Arte e italianizada pelos venezianos, que pronunciavam gramlotto. Apesar de não possuir um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo. (FO, 2004: 97)

A chave principal para compreender a relação gesto-palavra que nasce a partir do

grammelot e dos dialetos, é entender que a assimilação da narrativa é tanto maior quanto mais simples e claros forem os gestos que os acompanham.Essa clareza e simplicidade dos gestos contribuem para uma síntese da gestualidade, em que o gesto deve captar a essência do que diz o texto de palavras e utilizar o absolutamente necessário para a compreensão da ação a ser executada.

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onomatopéica que, junto com a pantomima, determinou o feliz nascimento de um gênero, e de um estilo único e inigualável: a Commedia dell’Arte. (FO, 2004:106)

Em primeiro lugar, Fo em quase todos os seus monólogos, informa através do prólogo, o tema a ser desenvolvido e, a partir daí, acrescenta elementos-chave capazes de demonstrar, por meio de ação gestual e sonora, o conteúdo e a essência das palavras.

Quando um autor inventa e constrói uma língua, é por que não está satisfeito com a que tem a sua disposição. A língua inventada é construída nos vazios da que é falada, tendo a língua materna como matéria-prima, mas contra ela, pois a mina por dentro e, expressando o sofrimento da língua, lança uma luz insólita sobre o território dramático. Ilumina suas insuficiências comunicativas e preenche seus hiatos em busca de uma conciliação entre a língua e o corpo. Esta reconstrução da língua cria condições para uma forte teatralidade elaborada neste “sofrimento” da conciliação.

[...] O dialeto mais arcaico era aquele dos velhos de alguns lugares onde não se permitia, absolutamente, italianizar o dialeto, como acontece agora. Eles, evidentemente, conheciam as formas idiomáticas, as metáforas e a própria estrutura desta língua. Assim, eu aprendi a estrutura do dialeto, que é diferente de falar o dialeto; sobretudo, aprendi a estrutura de uma língua primordial, íntegra. São essas estruturas que se encontram nos meus monólogos teatrais. (FO apud ALLEGRI

apud VENEZIANO, 2002:81)

Trata-se de arejar a própria língua através do conhecimento de suas matrizes e de suas raízes. Como diz Gilles Deleuze em outro contexto,

[...] ser bilíngue, mas em uma só língua, em uma língua única... Ser um estrangeiro,

mas em sua própria língua... Gaguejar, mas sendo gago com respeito a própria língua e não somente com respeito a palavra... [...] É impor a língua, a todos os [sic] elementos interiores da língua, fonológicos, sintáticos, semânticos, o trabalho da variação contínua. (DELEUZE, 1979: 88-89, tradução nossa)13

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Desta forma, a maior parte das escrituras de Fo traduzidas do grammelot para a língua italiana formal, em sua maioria por sua esposa Franca Rame, apesar de estranhamente se transformarem em textos literários sem muita similaridade com o texto contado em

grammelot, guardam resquícios desta linguagem, no sentido de algumas frases apenas sugerirem a situação a ser desenvolvida, como veremos mais adiante na análise dos espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo.

A opção pelo grammelot, mais do que um efeito cômico mostra o empenho de Fo numa outra gramática cênica em que o gesto seria, então, o complemento absoluto da palavra. Não se trata aqui da construção de uma partitura gestual para o ator ou para o espetáculo. Trata-se de uma gestualidade inseparável da língua. Ou seja, o gesto faz parte do texto, no qual palavra e gesto são de igual importância como material da dramaturgia: o gesto com valor de palavra, e os sons com cor, ritmo e valor de gesto – ações conjuntas que resultam em algo concreto e figurativo.

(VENEZIANO, 2002:185)

Para Fo, a gestualidade deve ser desenhada como num quadro, inclusive sua progressão, mesmo sem palavras inteligíveis, pois mesmo em culturas diferentes adquirimos uma quantidade infinita de noções de linguagem e comunicação comuns, mesmo que, por vezes, seja necessário pronunciar algumas palavras-chave com clareza.

Fo, em o Manual Mínimo do Ator (1998), descreve sobre uma passagem onde mima o vôo de um corvo em seu momento mais dramático. Primeiro, Fo demonstra toda a movimentação do corvo sugerindo uma guinada. No segundo vôo, ele repete acentuando momentos e o ar pesado, onde segundo ele, as repetições quase se sobrepõem.

No que se refere à opção de Dario pelo dialeto ou pelo grammelot, convém examinar, mais atentamente, a mecânica de seu sistema de comunicação, que combina sempre uma dessas “línguas” (grammelot e dialeto) a uma terceira: a linguagem corporal. Juntas, elas resultarão num espetáculo rico de imagens concretas. (VENEZIANO, 2002:184)

No espetáculo Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli se utiliza de sons onomatopéicos para substituir partes que seriam narradas repetidamente:

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precisa entender um menino que chora? Então: “biquibi, bipabá” [e faz gestos de um menino que chora]. E quando ele explica do cavalo: “diquidi, diquidi, diquidi” [faz gesto de cavalgada]. Então é a ação vocal. Ninguém em quinze anos disse que não havia entendido. 14

O ator Julio Adrião, em A descoberta das Américas, através de onomatopéias, ação vocal e gestual, materializa lutas épicas entre índios e espanhóis.

Fig. 1 A descoberta das Américas

Foto: Maria Elisa Franco

Os elementos que relacionam a corporalidade de Fo ao grammelot e aos dialetos são sons onomatopéicos, gestualidade limpa e evidente, timbres, ritmos, coordenação, recortes, repetição, e principalmente, uma grande síntese.

[...] a síntese expressa por meio de estereótipos com variações nítidas constitui uma técnica já utilizada nas pinturas ânforas gregas e etruscas, assim como nos afrescos de Giotto que retratam a vida de São Francisco ou de Cristo em uma seqüência de imagens, considerados por alguns como as mais belas histórias em quadrinhos da história da arte. (FO, 2004: 101)

À síntese gestual que suscita o trabalho com o grammelot, Fo acrescenta o trabalho que empreende com as máscaras, também fruto de seus estudos sobre a commedia dell’arte e cerne dos estudos de grandes nomes que trabalharam ou trabalham com a mímica e a pantomima como Etiènne Decroux (1898 - 1991), Jacques Copeau (1879 - 1949) e Jacques

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Lecoq (1921-). Este último fez a preparação corporal do elenco da Revista Il dito nell’occhio

(1953), na qual Fo era um dos atores principais.

A máscara impõe uma síntese do gesto, envolvendo a gestualidade corporal na íntegra. Pois, se para atingir um certo efeito realizarmos uma multiplicidade descabida de gestos, vamos estar apenas destruindo o valor do próprio gesto. É necessário a seleção dos gestos e a consciência dos mesmos. O movimento, a atitude geral, a colocação do corpo devem ser ponderados e essenciais. A síntese é um elemento que está na base da commedia dell’arte e do teatro oriental. A máscara também funciona como o impedimento de toda e qualquer mistifição. (FO,

2004:62)

Mais adiante:

A máscara serve para agigantar e, simultaneamente, fazer uma síntese do personagem, conferindo uma ampliação e desenvolvimento do gesto. Esse gesto não deve ser arbitrário, para que o público, o imediato reflexo do ator, possa acompanhar com total compreensão o discurso, principalmente quando se trata de um efeito, uma

gag ou um fecho cômico. (FO, 2004: 63)

A máscara provoca os recortes da imagem chamada por Fo de “objetiva”, pois recorta a visão do espectador, na qual uma atitude psicológica é imposta para que ele enquadre diferentemente as imagens produzidas pelo ator. É uma atitude que parte da ação do ator, na qual oespectador é condicionado a privilegiar uma particularidade ou a totalidade da ação.

Esse recurso utilizado no cinema, faz com que o ator consiga direcionar o olhar do público para uma parte de seu corpo ou para onde ele julgar mais importante para a compreensão do ato, da cena ou da situação.

A máscara elimina o elemento fundamental da mistificação: o rosto e toda a sua gama de estereótipos e clichês. O corpo do ator pode ser comparado ao da marionete, pois precisa se exprimir com toda sua articulação e possibilidades de movimento total. Neste caso, a máscara desloca para o restante do corpo a função significativa e comunicativa, levando para pernas, pés e tronco, a mesma responsabilidade atribuída ao rosto.

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em evidência não parecerá inexpressiva ou deslocada do resto, e a multiplicidade de gestos transformados em síntese, serão suficientes para comunicar.

“[...] a síntese é a invenção que impõe a fantasia e a intuição ao espectador. É a maneira de conceber a representação da grande tradição épica popular: limar todo o supérfluo, toda a descrição entediante.” (FO, 2004:175)

É importante ressaltar que a síntese utilizada na obra e na escritura de Fo, não é o recorte do essencial para o desenvolvimento da cena somente, ou um recorte explícito da gestualidade para o essencial da expressão do corpo (o que suscita as máscaras e a construção da linguagem do grammelot), mas também a síntese da própria cena (que não tem necessariamente relação com a sintetização do gesto em si), que associada a uma seqüência de repetição gradual se estabelece como um recurso cômico de altíssimo efeito. Este recurso utilizado para demonstrar o resumo da cena é uma solução cômica das mais originais do teatro de variedades, dos clowns e da commedia dell’arte.

Na encenação de Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli explica à platéia no prólogo de seu espetáculo, quem são os personagens e demonstra as atitudes gestuais, o andar, ou o jeito de cavalgar dos três Reis Magos para que o público consiga identificar cada personagem através de uma seqüência de gestos. A partir daí, ele estabelece uma comunicação direta com o público, na qual o ator repete as atitudes de todos os personagens de forma resumida e muito mais rápida, sem explicar, falando apenas algumas palavras principais. O público em uma mistura de prazer e surpresa identifica as atitudes das personagens durante o espetáculo e ri abundantemente.

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No espetáculo A descoberta das Américas, Julio Adrião utiliza o recurso de sintetização da cena ao mimar uma seqüência de “costura dos índios”, na qual, depois de um massacre empreendido por inimigos, o Pagé pede a Johan Padan, “exímio costurador de velas”, que o salve e salve também sua tribo que está toda mutilada e caída aos seus pés. O ator mima e explica todas as ações que utiliza para desinfetar, arrumar os órgãos dentro do abdômen e costurar. Quando passa para o segundo índio, ele repete todas as ações de forma mais rápida pronunciando apenas as palavras principais. Do terceiro índio em diante, ele mima utilizando apenas onomatopéias com um ritmo cada vez mais acelerado. Esta cena compõe uma das passagens mais cômicas do espetáculo com uma construção de partituras recortadas e sobrepostas que analisaremos mais profundamente no terceiro capítulo. Esta cena foi desenvolvida pelo ator a partir de um parágrafo presente no texto, na qual a personagem

Johan Padan vai até sua cabana, pega linha e agulha para costurar velas, arruma os órgãos dentro da barriga do Pagé e o costura. Na escritura de Fo, esta cena de quase oito minutos executada pelo ator Julio Adrião, é apenas um parágrafo indicativo. Neste tipo de seqüência, “as posições de maior efeito devem ser repetidas em imagens inalteradas, geradas pelos diferentes casos que compõe as variantes do tema.” (FO, 2004: 101)

Não podemos esquecer, também, que há contínuas referências a sequências e palavras já conhecidas. Somente os pontos essenciais são indicados, o restante é atirado fora com grande velocidade, como se fosse picado no interior de um grande moedor de palavras, sem pausas nem respirações. (FO, 2004: 245)

No caso da síntese da cena, as seqüências são cortadas e compactadas, causando também uma compactação do tempo, e por isso, uma quebra do tempo da representação ou da unidade de tempo, enquanto distinção da temporalidade do acontecimento da cena. O que é desenvolvido, neste caso, é a situação como recurso cênico e cômico, independentemente de sua verossimilhança relativa ao tempo da representação, pois ao tempo real, a representação já é fatalmente inverossímil.

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1.3 A Situação

Uma das formas mais maduras surgidas na Idade Média do gênero cômico é a farsa. Entretenimento que não pretendia nem edificar, nem instruir, mas fazer rir, toma os temas da realidade cotidiana, e seus personagens não são indivíduos ou alegorias que representam vícios e virtudes como nos Mistérios Medievais, mas tipos (o marido traído, a mulher astuta, o malandro esperto). Mais que uma intriga, a farsa desenvolve situações ao redor da autoridade, das funções naturais, dos defeitos físicos e intelectuais ou da astúcia.

O texto da farsa não é mais que um apoio, pois o verdadeiramente desencadeante do riso é a fantasia gestual e mímica e os movimentos de corpo que acompanham a palavra, ponte específica com o trabalho de pesquisa de Fo e que se estabelece em seus textos.

Os lazzi15, com suas situações cômicas do “teatro menor” impulsionam uma nova visão para a gestualidade nas farsas populares, no teatro de variedades, nos espetáculos de

clowns e dos mimos. A hierarquia que enumerava a importância dos gêneros, principalmente até o século XIX, geralmente começava com a tragédia, o drama, descendo para a comédia e transformava em ínfimos o teatro de bonecos e os clowns que possuem sérios predecessores como os jograis das atelanas e farsas antigas.

Um dos principais elementos que Dario Fo pinça do teatro popular, foco de seus estudos práticos e teóricos, e que está presente em todos os seus textos, sejam monólogos ou não, é a situação e o entendimento desta situação como o ponto principal para atrair a atenção do espectador.

Na terceira jornada de seu Manual Mínimo do Ator (1998), Fo pergunta o que significa situação, e responde: “Significa a estrutura básica que faz evoluir a trama narrativa, envolvendo o público por meio da tensão resultante e que o torna participante das reviravoltas do espetáculo.” (FO, 2004:147) Mais adiante, na mesma página, Fo simplifica: “[...] é o mecanismo existente na narrativa pelo qual o espectador é capturado e grudado à poltrona”.

Dario Fo conhece bem os mecanismos da situação e inclusive os utiliza na estrutura de seu livro Manual Mínimo do Ator, fazendo dos capítulos curtos e da separação em jornadas, uma sucessão de situações reais ou fictícias (características do racconto) que dão

15Os

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suporte para as suas teorias e recorre à imaginação do leitor através da exemplificação por imagens narradas, assim como em seus textos dramatúrgicos.

Fo cita Hamlet como uma “máquina de situações”, que mesmo encenado por companhias ruins, mantém intacta a atenção do público pela habilidade que William Shakespeare (1564 - 1616) possuía de contar uma estória através de situações bem definidas.

As situações são a estrutura que faz vivos os textos de grandes autores como Shakespeare, pois desconectando trechos dos textos mais famosos, como Romeu e Julieta, Hamlet, Sonho de uma noite de verão, das situações em que se encontram apoiados, encontramos frases totalmente nonsenses. Então o que faz de Shakespeare, Molière (1622 - 1673), Eugène Labiche (1815 - 1888) e Jean Racine (1639 - 1699) grandes dramaturgos, é a habilidade de trabalhar e desenvolver as situações. A partir dela, geram-se armadilhas, equívocos, subterfúgios, enganos e mal entendidos que ressaltam o jogo teatral e prendem o espectador à estória contada.

As situações são elementos estruturais não só da comédia, mas também da tragédia, assim como a troca de identidade, travestimentos, equívocos e reviravoltas.

Trocando a situação, podemos fazer de uma cena absolutamente cômica, uma tragédia, e vice-versa, pois a situação é determinante no significado absoluto da ação mímica, alterando completamente o sentido de todos os gestos.

A troca de situações é um recurso muito utilizado por Fo em suas escrituras, principalmente nos monólogos, nos quais cenas são repetidas igualmente modificando a situação em que elas se inserem como recurso de grande efeito cômico e que necessita de uma habilidade singular do ator executante.

Por vezes, a escolha de inverter situações é própria do ator que representa um monólogo de Fo, como no caso de Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo e Julio Adrião em

A descoberta das Américas, os quais criam situações e inversões que não se encontram sugeridas no texto original ou não foram executadas por Fo em sua contação.

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O próprio personagem ou o ator-narrador é quem faz a mudança de situação e introduz o tom da narrativa que virá a seguir. Este exercício de imaginação no qual o público vai sendo envolvido é que finaliza a construção das situações “incompletas” de Fo, no qual a percepção do espectador termina de desenhar o significado geral da estória, portanto, distinto como o olhar de cada um.

Na commedia dell’arte o jogo de situações era tão variado, que podia-se obter diferentes histórias a cada apresentação baseando-se no mesmo tema, personagens e situação inicial. Como os commici possuíam uma bagagem incalculável de gags, diálogos, ações e situações experimentados de diversas maneiras (por isso, no momento certo as inseriam dando a impressão de improvisarem o tempo todo), já sabiam onde e como aconteceriam as mudanças. A partir de uma seqüência era possível fazer inúmeras variações modificando o tempo e a progressão. O jogo dos encaixes era feito com facilidade, pois já haviam sido repetidos várias vezes em diversas situações.

Os fabulatori, no caso de Dario Fo, também trouxeram a ele o entendimento da situação. Fo ouvia a mesma estória recontada uma dezena de vezes em diferentes momentos, e percebia que a capacidade de quem recontava, consistia em adaptar a estória às situações diferentes da crônica em si, compreendendo os fatos locais e os personagens da vida real. Dependendo da mudança da situação, o clima físico e psicológico era modificado, não perdendo de vista a importância da audiência e nenhum elemento acidental.

Depois de sua passagem pelo cinema, no qual as estórias paradoxais de seus personagens, que beiravam o nonsense, não sobreviveram ao realismo, Fo e Franca Rame, sua esposa, fundaram sua própria companhia: a Compagnia Teatrale Fo – Rame. Nesta companhia, Fo redescobriu as farsas como exercício para entender o mecanismo da narrativa teatral. A farsa já possuía, por si só, uma característica de síntese e de situações independentes e sobrepostas, recortando e remontando os mecanismos da comicidade de situações.

As comédias que lembravam Labiche e Molière eram repletas de situações paradoxais e qüiproquós, adultérios, enganos, equívocos. Estas farsas eram destinadas ao riso e apesar de não abarcarem críticas políticas explícitas como aconteceria mais adiante em seu teatro, percebia-se uma leve crítica à burguesia dominante. Por trás dos enganos e confusões, a estrutura elaborada a partir de modelos antigos como a triangulação, revelava o jogo de situações e personagens através de estórias absurdas.

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drama ao melodrama e a farsa, misturados aos fatos da vida real, próximos ao circos-teatro que fizeram muito sucesso no Brasil até a primeira metade do século XX.

Fo inspirou-se no trabalho da família de Franca, que persistiu por décadas a fio, e desse teatro popular para desenvolver também seus estudos sobre a situação. A farsa desenvolvia uma situação cômica que poderia partir de um simples fato ocorrido. Então a partir de uma espécie de canovaccio (roteiro pré-estabelecido), uma gama de situações sobrepostas eram desenroladas à frente do público e uma mesma situação poderia ser desenvolvida de inúmeras maneiras.

Para impostarmos corretamente uma história que desejamos improvisar, é conveniente revelar o argumento que queremos desenvolver, em seguida, o espaço cênico onde irá se desenvolver o fato dramático ou cômico, e, por fim, é fundamental deixarmos evidente a situação e os motivos. (FO, 1998: 292)

Esta técnica de desenvolvimento das situações diferencia-se muito da dramaturgia convencional, pois é a cena em si, a ação dos atores, que determina a escritura, assim como os outros elementos do espetáculo, como o figurino, as luzes, as pausas, o ritmo, ou seja, os outros tipos de dramaturgia presentes no espetáculo.

As situações aparentemente simples impulsionam o desenvolvimento de inúmeros equívocos, situações de encaixe, gags, e como em todas as farsas de Fo, impossibilitam qualquer tipo de identificação.

Das farsas, Fo levou para outros textos, monólogos ou comédias políticas, um estilo antinaturalista, aproximando-se de uma linguagem surreal, paradoxal e alegórica, reforçando sempre a frase que diz no seu Manual: “em teatro, somente o falso é autenticamente real.” (FO, 2004:314)

Em Il Primo Miracolo, monólogo que analisaremos nesta pesquisa, o Menino- Jesus (sujo, maldoso e brincalhão, como qualquer criança de sua idade) faz seu primeiro milagre para ser aceito pelos amiguinhos. Em A Descoberta das Américas, um malandro fanfarrão, para fugir da Inquisição e da miséria, entra em uma das caravelas de Colombo que parte para descobrir as Índias. Estas são as situações iniciais a serem desenvolvidas e que darão suporte para o desenvolvimento cômico da narrativa.

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Teatro Físico16 ou de linha física mais enfática, nos quais as ações que partem do corpo do ator e das reverberações que as reações do público imprimem neste corpo, é que reescrevem a obra.

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1.4 O autor-ator: o improviso e o processo colaborativo entre ator e público

Dentro da perspectiva em que a fala é entendida como uma ação convencional ou não, a composição lingüística do texto teatral, concebido para ser dito, pode ser entendida como uma composição física.

Se a fala constitui uma ação com respectiva conseqüência, podemos dizer que as relações de força que se desenvolvem na interlocução entre os personagens (eixo interno da comunicação teatral) e a obra, são indissociáveis.

Assim como existe na antropologia teatral de Eugenio Barba (1936-) e seus seguidores, um nível pré-expressivo no qual se verifica as diferentes unidades da composição corporal, no drama, texto escrito ou falado, há um nível pré-expressivo no qual se identifica a organização dinâmica do discurso. O nível pré-expressivo da composição física é qualificado pela modulação da energia corporal, e o nível pré-expressivo do drama é qualificado pela modulação da força performática da palavra na relação com os interlocutores, e posteriormente, com o público.

A fisicalidade da palavra no caso do teatro de linha física, como o teatro de Dario Fo, em que a escritura se confunde com a obra encenada, está no dinamismo implícito no discurso das personagens. Este dinamismo do discurso se deve a vários elementos, mas principalmente ao fato de o texto falado, muitas vezes, ser pensado na cena, e não fora dela.

O discurso das personagens parte da ação e do momento presente, no qual o ator executa a fala e não somente a diz.

Quando Dario Fo conta uma estória sem se preocupar com a palavra em si, mas com a essência desta, seu significado próprio e as ações que elas suscitam, ou com o que as fazem mais claras, suas palavras se impregnam de uma fisicalidade particular. Elas ganham corpo, pois são seu próprio corpo e pensamento que encontram a melhor maneira de dizê-las, como acontece com Roberto Birindelli e Julio Adrião, intérpretes dos espetáculos Il Primo Miracolo e A descoberta das Américas.

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No teatro tradicional, principalmente do século XIX, no qual as ações se tornam, por vezes, a ilustração do texto, este é decorado e acoplado às ações compostas por atores e diretores da obra, e passam a se tornar críveis a partir do momento que elas são codificadas e repetidas até adquirirem organicidade e tornarem-se uma só coisa: ação física indissociável.

No caso da escritura de Fo, principalmente nos monólogos, as palavras que já foram transcritas, invariavelmente, já foram ditas. Isto faz com que a escritura de Fo contenha seu ritmo particular, suas cadências e suas ações, mesmo que estas estejam apenas sugeridas, como veremos no segundo capítulo na análise dos espetáculos.

O improviso que se estabelece a partir do imprevisto, do momento presente, do contato com o diretor (quando este está incluído no processo) e com o público, é um elemento importante que se transfere da ação para o texto.

O Teatro Físico, assim como diversos tipos de teatro que possuem uma linha física mais enfática, utilizam a improvisação direcionada por temas para a construção do texto dramatúrgico. Depois de improvisadas, as ações são repensadas na cena, revistas, codificadas, repetidas, e só então, transcritas. O texto de palavras nasce durante o processo e comporta diversas individualidades, pois é escrito pelos atores, pelo diretor e indiretamente pelo público que interfere nas ações do espetáculo através de suas reações. Este processo, apesar de antigo, é chamado de processo colaborativo, um termo absolutamente contemporâneo, se constituindo como um processo singular no que diz respeito à relação corpo-palavra.

Em seu livro Caos/Dramaturgia, Rubens Rewald pensa o processo colaborativo como um sistema complexo, que se reorganiza à medida que vem sofrendo interferências e “ruídos” dos próprios atores envolvidos no processo, do diretor e do público. Estes “ruídos” aleatórios ou provocados, podem levar o texto e o espetáculo a caminhos absolutamente imprevistos. O objeto deixa de ser estável e passa a exigir uma mudança de percepção, “pois na medida que não há um texto final definitivo, ele está sempre aberto a modificações e experimentações.” (2005: XIV)

Apesar de o autor do livro ter analisado um tipo de processo em que o autor é ao mesmo tempo espectador, e se encontra fora do processo de experimentação das ações, o dramaturgo pode ver cenicamente o resultado de sua escrita (pelo desempenho dos atores e diretor, do processo criativo dos outros profissionais envolvidos na confecção da obra, das respostas destes aos estímulos lançados pelo autor e dos elementos acidentais) e reescrever o texto.

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