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2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UMA

2.4 O espaço vazio: o espaço da imaginação

Os mímicos modernos, principalmente Lecoq, aprofundam o estudo do teatro a partir das relações entre o corpo e o espaço, entre a arquitetura, os efeitos de cor e do espaço criado pelas formas e a relação entre gestualidade e espaço.

O corpo visto em seu estado material de corporeidade e a formalização expressiva dos gestos e sons que se relacionam com o espaço, reforça a situação percebida a partir do aqui e agora da representação narrativa.

Jacques Copeau introduziu escadas ligando o palco à platéia, quebrando assim a quarta parede e, compartilhando das idéias de Adolphe Appia (1862 - 1928), queria manter o palco livre de qualquer aparato que prejudicasse a presença física do ator. Por sua vez, o ator deveria preencher o espaço com seu corpo, com as ilusões da mímica, construindo superfícies e objetos imaginários em uma cumplicidade singular com o público, na qual o espaço permanecesse como um prolongamento do corpo do intérprete.

O palco como espaço físico concreto, onde as percepções espaciais e temporais são construídas pelo que surge fisicamente no espaço, a relação mecânica e material com este corpo evidenciado de Fo e dos atores que trabalham a partir de sua escritura, como Julio Adrião e Roberto Birindelli, auto-evidencia o espaço, causando uma revelação do não-visto, do não-ouvido e do sem-lugar.

Peter Brook (1925 -), encenador contemporâneo, possui um estudo sobre o vazio que vai além do espaço, mas converge para todos os tipos de espaço vazio, seja ele o vazio do próprio físico do ator, como recipiente pronto para novas experiências, como para o vazio do palco nu.

[...] a gente fala de espaço vazio e tem que falar de Peter Brook. Mas também tenho que falar de Dario Fo. Se eu te coloco um cenário mais impositivo, menos a tua imaginação vai estar livre para que se estabeleçam as conexões com o teu subjetivo. ‘Uma rosa é uma rosa e é uma rosa’. Agora, se a rosa que eu te coloco é de celofane de uma carteira de cigarro queimada, esta rosa te diz muita coisa. Então, quanto mais livre e neutro o espaço, para mim é melhor.39

39 Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

Partir do vazio significa antes, partir de um ponto infinito de possibilidades, assim como requer um longo e rigoroso aprendizado. Retirar os excessos e provocar rupturas geram um deslocamento que permite um permanente ajuste de posições e, que pode, efetivamente, criar uma relação dinâmica entre o teatro e seu público.

Ao lado do desenvolvimento técnico que ampara, que sustenta o processo de criação, deve haver sempre um espaço vazio, um lugar aberto para o inesperado. Brook fala especificamente desta relação entre narrador e espectador, que através da emergência do momento presente se coloca diante do público e começa a narrar. A esta liberdade que se estabelece entre narrador e público, Brook compara à liberdade do romance, no qual a relação entre escritor e leitor é fluída, sem entraves. Sobre este campo do imaginário, que se estabelece através da relação entre narrador e espectador, está sempre presente uma idéia de vazio como um campo de possibilidades e, que pode designar sem medo de errar, apesar das diferenças, a obra de Dario Fo e o teatro que parte de suas escrituras, pois Fo se configura mais como um ator-narrador de histórias.

Segundo Brook, é em Shakespeare que reside alguns dos princípios propulsores dos esvaziamentos que, segundo ele, tecem a trama teatral, pois uma das maiores liberdades do teatro elisabetano é a ausência de cenário que permitia a Shakespeare explorar o imaginário do espectador, sugerindo sucessivas imagens capazes de dar conta de todo o universo físico.

O teatro é codificado. No elizabetano, chega um cara, pega um galho e diz: ‘eu sou a floresta de Sharwood’. Pronto, ele é a floresta de Sharwood. Dois segundos depois ele está na corte de Henrique VIII, ou então é Macbeth, ou sei lá o que. Então, que espaço te possibilita esta codificação e voar tão rápido de um espaço para o outro? O espaço vazio. É que nem figurino. Eu faço vinte e duas personagens e se eu não usar essa roupa neutra, preta, qualquer elemento que me ajudar para um, vai me atrapalhar para o outro. 40

Para Peter Brook, a relação ideal com um ator verdadeiro num palco sem cenário seria como a passagem contínua de um plano geral para um close, como no cinema.

Segundo Dario Fo, o ator sozinho em cena é a mente que dirige os ângulos das “objetivas” que estão na mente de cada espectador, promovendo os recortes que deseja, hora chamando a atenção para um “espaço” específico de seu corpo, hora para o corpo inteiro, hora

para o espaço que o circunda. É exatamente a liberdade e a mobilidade dos códigos que partem apenas do corpo do ator, que lhe conferem maior flexibilidade, nudez e alcance.

Esta relação de esvaziamento do corpo e de esvaziamento do espaço, traz o inesperado à tona, pois como diz Brook, deve-se fazer nascer o personagem e não construí-lo. “O papel que foi construído é o mesmo todas as noites – só que lentamente se desgasta. Enquanto que, para o papel nascido ser o mesmo, ele tem sempre que renascer, o que o torna sempre diferente.” (BROOK, 1970: 121-122)

Este jogo de contrastes que é o jogo épico da narrativa, num cenário totalmente aberto, permite a troca de ambiente numa simples mudança de direção do corpo do ator, ou a fala narrativa resolve as passagens não só de tempo, como de espaço.

O espaço gestual segundo Pavis, “é o espaço criado pela presença, a posição cênica e os deslocamentos dos atores: espaço ‘emitido’ e traçado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair.” (PAVIS, 2005: 142)

O espaço dramático que contém no texto as indicações sobre o espaço fictício, e o espaço que o ator sugere com seu corpo como sendo o espaço fictício, interfere necessariamente no espaço cênico concreto, pois há uma interferência entre iconicidade do espaço físico concreto e o simbolismo da linguagem.

O espectador/auditor não está mais em condições de fazer diferença entre o que ele vê com seus olhos e o que percebe em the mind’s eye. E no entanto, na tradição ocidental, é mantida a todo custo a distinção entre linguagem e cena, donde a separação entre literatura dramática e prática espetacular. [...] Ao fim dessa promoção do visual em detrimento ao gestual, a teoria ocidental do espetacular universaliza a dimensão visual e chega até a excluir, ou pelo menos desvalorizar, qualquer outro tipo de experiência sensível. (PAVIS, 2005: 144)

O espaço vazio é um espaço psicologicamente concentrado, recaindo a atenção do público no desempenho e intenções explícitas ou implícitas das personagens. É também, por outro lado, um espaço aberto, intemporal, não datado, onde tudo pode acontecer.

Um cenário nu, a-histórico, sem referências explícitas, no qual os atores, usando a excelência do gesto, do olhar, e sentindo o que as palavras designam, criam o cenário, representando através das suas ações e desejos, um mundo paralelo, mais intenso, mais grandioso, mais urgente de se resolver.

Logo no início do espetáculo A descoberta das Américas, Julio Adrião nos sugere o lugar da ação através de sons. Sentimos o mar e o vento conversando, e mais adiante,

através do som e das ações, vemos o navio flutuando sobre as ondas, as velas subindo e se inflando, lutas épicas que envolvem alguns mil índios, fugas e perseguições, tempestades; ações estas, que se passam em pelo menos oito lugares diferentes, em um só palco, produzidos por um só ator que comunica diretamente para o público.

Um ator de talento não precisa de elementos sobressalentes para sustentá-lo, nem de uma cenografia complexa às suas costas, tampouco de efeitos sonoros ou de uma sonoplastia particular. Se ele é sensível, cumpre bem o seu ofício, e se o texto é de qualidade, são suficientes sua voz e seu corpo para fazer-nos sentir que está amanhecendo, que lá fora está chovendo, que está ventando, que há sol, que está quente ou acontece uma tempestade. (MOLIÈRE Apud FO, 2004: 120)

A escritura de Fo, é uma escritura que já estabelece o espaço cênico sem a restrição de uma quarta parede, pois para se concretizar, ela necessita da comunicação direta e sem obstáculos entre ator e público. A escritura só se constrói a partir da relação cinestésica entre a fisicalidade do ator e a fisicalidade do espectador, da troca de olhares, de impulsos e até de palavras, elementos inseparáveis da arte épica da narrativa oral.

Dario Fo descreve o espectador de espetáculos separado pela quarta parede como um voyer que assiste com a luz apagada passivamente, gerando uma atenção somente voltada para a alteração emocional.

O fato de derrubar a quarta parede obcecava os commicos dell’arte e foi através disto que Molière, também admirador das máscaras da Commedia, como a de Scapino, que interpretou, entendeu a importância do envolvimento físico do espectador e não tardou em avançar os atores para o proscênio, a avant-scène.

Por que eu jogo com este espaço circular, com a platéia iluminada? Porque é muito interessante que as pessoas se vejam nos momentos diferentes em que elas estão.

[...] As reações. Então, é um espaço único, pois não há palco ou platéia, nem um

status quo, a ditadura daquele que está lá em cima.41

A geração de uma presença, de um corpo que se presentifica, mais do que representa, provoca no espectador uma percepção sensível da pulsação dialética entre corpo e voz, movimento e peso, energia e equilíbrio, ritmo e espaço, corpo fisiológico e corpo social.

A síntese é formulada pelo espectador guiado corporalmente pelos atores nesta relação corpo- espaço.

[...] Então tu lidas com o mesmo nível de luminosidade, sem uma roupa, sem uma maquiagem, sem nada de especial, sem trilha sonora, sem nada. Eu tiro qualquer elemento que possa dar uma conotação cênica. São pessoas, e juntas, estas pessoas podem fazer alguma coisa. É isso que eu trouxe da ‘essencialidade’.42

Patrice Pavis nomeia o espaço objetivo externo de Lugar Teatral; o prédio e sua arquitetura, sua inscrição na paisagem; mas também um local não previsto para a representação (espaço alternativo). Divide o espaço interno em Espaço Cênico e Espaço Liminar: o primeiro é o lugar por onde evoluem os atores e pessoal técnico, como palco, coxia, platéia; e o segundo é o espaço que marca a separação entre palco e platéia, mais ou menos nítida, ou entre o palco e a coxia. A liminariedade pode ser marcada pelo “círculo de atenção” que o ator traça mentalmente para separar-se do espaço do outro.

No caso da representação de Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo, o espaço cênico pode ser descrito em um espaço alternativo qualquer, desde que fechado, pois não é um espetáculo para rua, mas pode também descrever-se encima de um palco italiano, desde que o público permaneça também encima do palco, disposto de maneira circular (arena). O espaço liminar, se configura como uma linha imaginária circular que separa público e ator, os quais estão em um mesmo plano e no mesmo nível de luminosidade. O espaço liminar também é descrito pelo corpo do ator e sua gestualidade que preenche todo o espaço circular. O ator, neste caso, pode “negociar” o espaço com a platéia se esta invade seu espaço de representação, pois estabelece uma maior liberdade no contato verbal com o público. A assistência se coloca na platéia quando o ator já está em cena, e este pode ajudá-la a se colocar em seu respectivo lugar, pois se utiliza do “prólogo” do espetáculo para isto.

Já em A descoberta das Américas, Julio Adrião entra em cena quando a platéia já está acomodada e não estabelece um diálogo com a platéia, a não ser o essencial da comunicação entre personagem e assistência, como troca de olhares, comunicação gestual e vocal dirigida diretamente ao público; isto não quer dizer que o ator não estabeleça uma comunicação explícita com a assistência, ao contrário, esta comunicação se dá quase que completamente no nível cinestésico entre o corpo do ator e o corpo do espectador, não existindo uma comunicação extra-cena. Julio Adrião não utiliza o prólogo em seu espetáculo,

já começando a narrar a estória propriamente dita. O espaço cênico estabelecido é sempre frontal, podendo estar acomodado em um espaço alternativo ou em um teatro à italiana. A liminariedade está descrita pelo próprio espaço físico, separado por cadeiras (em espaço alternativo), onde o público deve sentar-se, ou separado pela disposição palco - platéia em espaços com palco italiano. A platéia sempre está iluminada, pois a comunicação entre público e ator se dá através do olhar e da comunicação direta, como já dito.

A configuração do espaço em ambos os espetáculos denotam o nível de interferência permitida ao público na comunicação estabelecida. Julio Adrião possui uma sucessão de partituras mais fechadas (o que não quer dizer definitivas), nas quais o ritmo ágil e encadeado, não permite a interferência de perguntas ou respostas do público, ou de uma improvisação para o inesperado exterior.

Se acontece alguma coisa, eu nunca paro, eu olho para o outro lado mesmo, pois eu tenho que seguir o meu fluxo em respeito aos outros. O público, às vezes, fala alguma coisa junto, pois já sabe o que eu vou dizer, mas eu não paro para comentar. Tem partes que são muito importantes que as pessoas entendam o que está sendo dito, por exemplo: ‘O mais difícil foi explicar que o terceiro da Santíssima Trindade era um POMBO...’. Eu não falava claro, aí as pessoas diziam: ‘o que?’ e eu respondia: ‘UM POMBO’. O que é importante ser entendido, tem de ser entendido logo. Então, eu me esmero para que o público entenda, e o que não é importante, eu não repito. Se o cara está rindo e eu acho que a risada não é importante ali, eu não dou tempo para ele rir. Mas se eu acho que é, eu dou um tempo. Eu transformo o público em índio, em espanhol [...].43

Em A descoberta das Américas, Julio Adrião provoca na platéia, com sua gestualidade e virtuose corporal, reações dignas de um jogo de futebol, no qual a platéia torce fisicamente pelo sucesso do anti-herói Johan Padan. Como é uma narrativa épica e grandiosa, a gestualidade desenhada no espaço pelo intérprete Julio Adrião e seus recursos vocais, abrem a cena para um plano maior do que o visto, abrindo as “objetivas” com muita freqüência para um espaço virtual muito mais grandioso do que o real.

O espectador tem uma capacidade de intuição que lhe permite ir além da visualidade proposta pelo espetáculo que está sendo apresentado. O comportamento desse espectador é equivalente ao de um leitor que, seguindo as descrições literárias de um romance ou de um conto, imagina e ‘vê’ o que está sendo narrado como se os

lugares e os espaços nos quais os ‘heróis’ estão agindo estivessem à sua frente. [...] Penso que a proposta visual do espetáculo deveria sugerir e não impor, abrindo espaço para a criatividade de quem está assistindo. (RATTO, 1999: 24)

Roberto Birindelli estabelece um jogo para ser visto de muito perto, com uma gestualidade menor, com pequenos detalhes, no qual as “objetivas” escolhidas pelo ator, estabelecem com maior freqüência planos recortados e focos mais fechados, priorizando pequenas partes do corpo. A comunicação é rebatida pelo ator por menor que seja a interferência, ruídos externos, perguntas do público. Como o público está muito perto, a maior parte de seus movimentos interferem diretamente na cena e não podem escapar. Indagado sobre a liberdade de interferência do público e a freqüência com que ela acontece, Roberto Birindelli responde:

Direto. Eles cantam junto. Tem três músicas. Uma é um ‘mico’. Então eu estabeleço essa relação já no prólogo. E quando eu conto a estória, eu propositalmente ‘esqueço’ algumas palavras: ‘Como se chama aquele bastão que tem os bispos? E aquele chapéu?’ E fica claro que eles podem se meter a qualquer momento, e eu me viro, claro, para responder.44

O palco vazio, o espaço vazio, como diz Peter Brook, está sempre à espera de ser cheio com um mundo paralelo, e necessita para isso, de um teatro despojado de artifícios (sem adereços e cenários) centrado no jogo inteligente dos atores (dotados de muita eficácia técnica, ritmo, voz, expressão) utilizando a semiótica teatral, linguagem poderosa de comunicação.

[...] A personagem que se movimenta nas áreas que lhe são atribuídas cria constantemente novos espaços alterados, consequentemente, pelo movimento dos outros atores: a soma dessas ações cria uma arquitetura cenográfica invisível para os olhos mas claramente perceptível, no plano sensorial, pelo desenho e pela estrutura dramatúrgica do texto apresentado. (RATTO, 1999: 38)

Dario Fo em suas escrituras estabelece códigos com o público em uma comunicação de cumplicidade com a platéia. Os atores de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, estabelecem códigos gestuais que podem ser identificados pela platéia

durante o espetáculo, os quais permitem com que a fala possa ser suprimida, por vezes, e a platéia num misto de prazer e surpresa identifica os códigos em uma comunicação que podemos chamar de cinestésica e sensorial com o ator, como veremos no terceiro capítulo.

Uma das dimensões consideradas importantes para o desempenho do ator, não apenas ao nível da técnica de representação (viver a personagem como certeza, mas também como eterna possibilidade), mas também ao nível da mediação interior (predisposição do ator em assumir o vazio), é encarar na sua atuação o vazio interior, o medo do vazio.

Nesse espaço simples mas limitado, nesse território de possessão e crença, o ator vive as contradições próprias da sua personagem, tal como nas obras de Shakespeare.

Peter Brook entende o espaço essencialmente como ferramenta (daí empregar por vezes o termo “espaço formal”), no sentido em que pode ser tratado tanto ao nível da determinação dos seus limites físicos, como em termos de materiais empregues.

Temos então, duas principais vertentes do conceito de espaço vazio: uma, na determinação de um espaço formal subjetivo (intemporal e a-histórico); outra, o vazio interior que o ator deve conceder à personagem.

O importante é a criação do momento presente, a comunicação autêntica entre atores e público, pois toda ação transformadora, nos diz o teatro de Peter Brook, é uma superação do medo do vazio.

Um “teatro do vazio” valoriza a presença do espectador ao apresentar uma estória na qual a sensibilidade e a inteligência do público são cutucadas com vara curta pela inteligência, sensibilidade e inventividade dos artistas. Uma representação na qual os olhos dos atores, contemplando o vazio, criam imagens que serão tão diferentes quanto numerosos forem os espectadores.

2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il Primo