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Uma grande parte dos espetáculos da tradição popular começam com um prólogo, pois este estabelece uma relação estreita de cumplicidade entre ator e público, servindo para receber a assistência, inseri-la no clima do espetáculo, no contexto, mostrar-lhe as artimanhas que serão utilizadas, os códigos “secretos”, enfim, aproximá-la.

O prólogo, na maior parte das vezes, é tão importante quanto o corpo do espetáculo, pois é nele que estão contidas as chaves para a sua compreensão. A “chave”, neste caso, tem dois significados: o que alude ao cerne, ao tema do espetáculo, a chave enquanto material utilizado para a compreensão e decodificação do que será apresentado, e também, o seu significado literal, como chave que o público recebe para abrir a porta e adentrar no mundo ficcional.

Em Fo, por vezes, o prólogo se apresenta mais interessante e elaborado do que o próprio restante da peça. Fo percebeu que o prólogo divertia muito as pessoas e era muito bem recebido, mesmo em se tratando de temas polêmicos, pois o público tinha a falsa idéia de que o prólogo ainda não era o espetáculo em si. A partir disto, Fo se utilizou deste “descompromisso” e agrado do público com o prólogo, para transformá-lo em um espetáculo quase independente e em uma das convenções mais personalizadas e fortes de seu teatro, recuperando e reformulando de maneira contemporânea um procedimento do teatro antigo.

O prólogo se divide em duas partes: o pré-prólogo ou o “prólogo às avessas” (que é como Fo chama o prólogo que vem antes do prólogo), no qual ele e seus atores ajudam o público a se sentar, cumprimentam, empreendem diálogos personalizados e improvisados para individualizar o caráter do público (um hábito do teatro à italiana de antigamente) e o prólogo propriamente dito, que serve para explicar o tema do que será apresentado na seqüência, principalmente, quando o quadro é falado em dialeto ou grammelot e para ver e “ouvir” quem são as individualidades que assistem.

[...] Leva para um caminho diferente de entendimento. A palavra no Dario [Fo] tem muito mais a ver com ação vocal do que com o conteúdo da palavra. Mesmo por que ele fala em dialeto, e de milhões de dialetos, tu podes conhecer alguns, e em

grammelot mesmo, que é uma língua inventada. Primeiro ele explica na língua local a estória que vai ser contada, e depois faz. Eu não explico a estória, eu faço direto. Eu tenho o prólogo, que é muito clownesco, pois serve para sentir no momento este somatório de espectadores. [...] Os Colombaioni dizem: os primeiros minutos do

clown no picadeiro são para escutar, não para fazer. Você tem de saber se é um público intelectual, se é um público ‘emo’, se é um público humilde. Essa é a medida. Não existe isso: ‘hoje o público não estava acertado com a peça’. É a peça que não estava acertada com o público. Então, ele tem que ser ouvido. E você vai jogando anzóis, e conforme o que vem nos anzóis, você sabe que isca tem que usar. Esse é o ‘prólogo inteligente’ para mim.22

Em alguns prólogos, Fo comenta as notícias do dia, as critica, fala sobre o quão impressionante são as reviravoltas e o final do espetáculo, ou ainda, comenta as fontes de pesquisa que foram utilizadas como base para a montagem.

Para ele, tudo deve ser claro, pois ser claro, não significa ser descritivo: “Não ajudar o público na compreensão do espetáculo é uma conduta esnobe praticada por um bando de idiotas que esconde, além do mais, uma impotência incorrigível. Qual seja: a impotência de saber comunicar.” (FO, 2004:223)

Muitos recursos são utilizados e carregados de um certo grotesco, obrigando-o posteriormente, como escritor, a adaptar o texto a determinadas situações e conformá-lo às necessidades mais vivas e atuais que o público “pede e propõe”. Esta cumplicidade com o público permite descobrir os erros e desequilíbrios graves do texto, as regiões mortas, os hiatos sem sentido, as regiões prolixas ou pouco claras quando é necessário ser. Neste caso, “não se trata de improviso, mas da participação do autor-ator-encenador enquanto narrador que apresenta e vai contar o personagem, ao mesmo tempo em que observa seu público e cria com ele.” (VENEZIANO, 2002:179)

O que é dito no prólogo nem sempre é confortável ao público, mas incômodo e candente; e ao invés de varrer para baixo do tapete acontecimentos recentes que trazem choque e desconforto, eles são trazidos à tona, muitas vezes, logo no início de maneira irônica e grotesca.

Antes de dar início ao quadro La ressurrezione di Lazzaro, Dario recorda que os

giullari, que tomavam emprestados os temas bíblicos sem blasfemar contra Deus ou a Virgem Maria, criticavam a exibição do milagre transformado em grande evento para ser mostrado como mágica fantástica e sobrenatural, contrariando o que deveria ser o milagre em sua essência: uma demonstração de amor e compaixão ao próximo. ‘Esta é a chave da narrativa’, explica Dario. Ao compreender a ‘mensagem’, o público se sente ‘mais inteligente’ e acompanhará o monólogo que se seguirá, feito em dialeto ou em grammelot. (VENEZIANO, 2002:179)

Indicar ao público as chaves da narrativa, não significa facilitar-lhe o caminho, pelo contrário, é mostrar-lhe um caminho menos fácil e repleto de imaginação.

A leitura objetiva e aprofundada do que sabemos estar por trás dos fatos que permite recriar hoje, de maneira grotesca, irônica ou trágica, o que a informação imediata nunca poderá nos dar. Assim, iremos contrariar o programa e a estratégia que o poder tenta levar adiante, ou seja, doutrinar o público a nunca usar o seu senso crítico: achatamento mental, fantasia zero. (FO, 2004:201)

É justamente o elemento “fantasia” que Fo quer suscitar, quando pede ao público que preste atenção em determinadas passagens, ou quando diz no prólogo que este se surpreenderá com o final do espetáculo ou com as reviravoltas e, ao invés de revelar o que vem a seguir, faz com que este público se torne atento a cada situação desenvolvida. O que lhe é permitido compreender completamente, são as chaves necessárias para a compreensão de momentos indispensáveis para o desenvolvimento da narrativa. O público se sente então, parte importante para a construção do espetáculo desde o início, pois percebe que em momento algum, as passagens são fáceis ou mastigadas completamente e, que é ele quem precisa, a cada minuto, terminar de desenhar a situação.