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2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UMA

2.3 A mímica moderna e a estética do movimento

A designação de mimo é geralmente utilizada para nominar uma gestualidade sem palavras; mas entre os gregos e romanos, mimar significava usar o corpo e a voz, realizar jogos acrobáticos, cantar e dançar. Segundo Fo,

Em Nápoles, enfim, assegura-nos Bragaglia, assim como outros estudiosos, nasceu o mimo entendido como um gênero de teatro total, no qual se empregava voz, corpo, dança e acrobacia... ou seja, o pressuposto fundamental na origem da máscara napolitana. (FO, 2004: 88)

Nos séculos XV e XVI os commicos dell’arte desenvolveram em outros países, principalmente na França, procedimentos que saíram embrionários da Itália, quando entraram em contato com textos satíricos de alta qualidade e a mímica mais desenvolvida.

Na mímica moderna, chamada de mímica subjetiva, nascida na França no século XIX, o mimo age para sintetizar e sugerir, fazer imaginar, e só obtém êxito, ao contrário do que se pensa muitas vezes, quando sua gestualidade assume efeitos claros e não cotidianos e estereotipados que reiteram o jogo das palavras.

Dario Fo em suas obras mescla ação vocal e ação gestual, sons onomatopéicos, síntese, isto é, os elementos - base da mímica moderna.

Para Jacques Lecoq, com quem Fo trabalhou na Revista Il dito nell’occhio, a mímica é uma maneira de redescobrir a “coisa” com um frescor renovado, na qual a ação da mímica redescobre o valor dos objetos e ações, e os atribui novos significados. Lecoq, juntamente com Giorgio Strehler (1921-1997), foi um dos formadores do Piccolo Teatro de Milão e alguns dos principais ensinamentos de sua escola passam pelo trabalho com as máscaras e pela busca do clown pessoal, o qual não se trata de um personagem, mas da ampliação dos aspectos humanos e “estúpidos” de cada um, isto é, a caricatura de si mesmo. Foi com Lecoq que Fo aprendeu a usar seus longos braços e pernas e seu sorriso projetado para fora dos lábios na construção de efeitos cômicos. A mímica para Lecoq é o próprio teatro e não um universo à parte, como queria Etiénne Decroux (1898 – 1991).

[...] Todo verdadeiro artista é um mímico. A habilidade de Picasso de desenhar um touro dependeu dele ter achado a essência do touro nele mesmo, que liberou a forma dos gestos em sua mão. Ele fazia mímica. Pintores e escultores são artistas mímicos

fantásticos porque eles dividem o mesmo ato da corporificação. (LECOQ apud

MALDONADO, 2005: 97)

O que Fo traz do trabalho com Jacques Lecoq, é a síntese e a idéia de aludir em lugar de realizar a descrição completa. Colocar em foco detalhes e deixar escapar outros (Barba nomina este procedimento de Fo de omissão), determinando um estilo e um ritmo preciso da narrativa. Este trabalho com a síntese se reflete na escritura de Fo, como já vimos, assim como a metáfora dos gestos e das palavras, na qual um preenche o lugar deixado pelo outro.

Apesar de possuir conflitos conhecidos com Lecoq a respeito da linha ideológica e dramatúrgica a ser dada ao mimo, na qual a palavra, por vezes, recebe um tratamento inferior ao gesto, reiterando os esteriótipos repetidos por todos os mimos formados por ele, e da permanência da “quarta parede” nos espetáculos, Fo aperfeiçoa, com a preparação corporal de Jacques Lecoq, para a Revista Il dito nell’occhio ou anti-revista, como quer, a noção de síntese, o trabalho com a oposição gesto-palavra iniciado com os estudos sobre a commedia dell’arte, o grammelot e a codificação gestual que “domesticou” o furacão da espontaneidade de Fo, ensinando-lhe a precisão do gesto.

Fo substitui por aludir a idéia de imitar, abrindo um espaço entre palavra e gestualidade para que o público preencha através de um exercício imaginativo.

Sobre seu encontro com Jacques Lecoq, em um curso, Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, comenta em entrevista concedida a autora em maio de 2007:

A mímica. O Dario [Fo] também trabalhou com Lecoq. A precisão da mímica. A precisão de meio gesto que significa muita coisa. Tem uma diferença brutal entre a mímica e a pantomima. A pantomima diz respeito à forma, e a mímica diz respeito ao sentido. Então tu aderes ao sentido. No mimo: [faz o gesto ilustrativo] ‘eu quero sair contigo para nadar.’ Isso é uma pantomima que tem nos Arlequins. É lindo, é bárbaro! Mas no Il Primo Miracolo não tem nenhum gesto imitativo que eu construí. ‘Ó, te ligo depois’ [faz o gesto ilustrativo]. Nada. São gestos que significam. Tem uma palavra mágica no teatro simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal coisa e não isto é tal coisa. Mas no momento que tu dizes me parece, não é o parece. Por que quando tu dizes me, a tua subjetividade já foi envolvida. [...] O que eu trago do Lecoq é o uso do corpo de uma maneira não cotidiana.38

Justamente a idéia cara ao simbolismo era deixar a imaginação do espectador a liberdade de completar o que não foi dito. Em outro contexto do de Fo, também sugeria o mínimo de ação para permitir o máximo de tensão, sugerida no desenho plástico do corpo da personagem.

Jacques Copeau (1879 - 1949), precursor da mímica moderna, trabalhou no teatro a improvisação da commedia dell’arte e com ela a imaginação criativa, o trabalho com as máscaras e o jogo; mas um dos elementos mais importantes recuperados por Copeau foi a eliminação na cena de tudo o que prejudicasse a presença física do ator (idéias que seriam reforçadas por Jerzy Grotovski mais adiante em seu “teatro pobre”), contribuindo assim para reforçar a idéia de um ator-criador que pudesse se encontrar sozinho em cena, apesar de que, para ele, esses recursos deveriam ser utilizados para que o ator servisse melhor ao autor.

Sem pensar em diminuir de modo algum a importância da palavra na ação dramática, estabelecemos que para ela ser justa, sincera, eloqüente e dramática, seria necessário que o verbo articulado, que a palavra enunciada fosse o resultado de um pensamento sentido pelo ator em todo o seu ser, e o desabrochar de sua atitude interior ao mesmo tempo que da expressão corporal que a traduz. Daí a importância primordial dada à mímica em nossos exercícios. Fizemos dela a base da instrução do ator, que deve ser, em cena, acima de tudo um ser que age, uma personalidade em movimento. Levamos bastante longe este método para que o aprendiz de ator chegue a ser capaz de ‘figurar’ toda e qualquer emoção, todo e qualquer sentimento e até todo e qualquer pensamento pela atitude, pelo gesto e pelo movimento, sem o auxílio da palavra. (COPEAU, 1974:114, trad. J. R. Faleiro)

Já Etiénne Decroux, um dos “pais” da mímica moderna, trava uma batalha radical ao “império do texto”. Segundo ele, o ator é o poeta da Ação. “Ele é o autor da música dramática: a que ele compõe, mesmo sem tomar nota, para as palavras daquele que leva o nome de autor. (DECROUX apud MALDONADO, 2005: 28)

A mímica moderna se diferencia da pantomima, pois ela não só ilustra, mas mergulha nos movimentos da emoção para tornar visível o invisível. A mímica de Decroux exaltava a importância da metáfora gestual, diferente da mímica ilustrativa, chamada de mímica objetiva.

Decroux e Jean Louis Barrault (1910 - 1994) desenvolveram na mímica corporal, as metáforas, em que um gesto era compreendido e experienciado em termos de outro, com a finalidade de revelar os sentimentos e as emoções ocultas, mas principalmente, no caso de

Barrault, a ação vocal, diferencial das obras de Dario Fo e dos espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo. Barrault, a quem Antonin Artaud nutria uma profunda admiração, foi quem iniciou as descobertas no campo da ação vocal e a relação entre sons, gestos, voz e potencial expressivo da mímica, no qual a respiração tem papel fundamental. “Fala e gesto não são como pêra e maçã, cachorro e gato, mas uma só e mesma fruta, como um pêssego de pomar e um pêssego selvagem.” (BARRAULT apud MALDONADO, 2005: 41)

As habilidades artísticas de Dario Fo, e que transparecem em sua própria escritura, foram desenvolvidas no universo profícuo da mímica subjetiva e seus idealizadores. Elementos como a síntese do gesto, a precisão, a estrutura do grammelot, a codificação gestual e vocal, a conciliação entre gesto e palavra no mesmo nível da ação, a oposição entre gestualidade e palavra e, a instituição do ator-autor-criador surgem embrionários na commedia dell’arte e vem inspirar a mímica moderna que resgata os elementos e trancende-os através do trabalho sobre a metáfora das palavras e dos gestos, os quais deixam de focar o sentido literal e passam a corporificar emoções ao invés de suscitá-las. Estes elementos são os mesmos que perpassam a obra de Fo e por ele também são lapidados e jogados na estruturação de sua escritura, as quais, por sua vez, só conseguem alcançar seu valor artístico através de intérpretes que assim como Fo, são criadores de seu próprio material gestual, como os atores dos espetáculos analisados. Ambos vêm de uma tradição relacionada à mímica moderna e ao teatro corpóreo, tendo em comum o trabalho empreendido com o grupo Potlach na Itália, com Lecoq, com grupos de Teatro de Rua e com grupos brasileiros como o Lume sediado em Campinas.

Fo enfatiza sempre que o perigo nas montagens de seus textos no exterior é o excesso de gags gratuítas sem sobriedade nas falas colocadas, grimace (careta) e cacos absurdos, comprometendo a subjetividade da ação, a qual permite que o espectador participe da construção do significado, o qual está intimamente ligado as diferentes intenções que uma palavra e um gesto podem suscitar.

Louis Jouvet (1887 - 1951), citado por Fo em seu Manual Mínimo do Ator, resume: “o ator que recita cada palavra e não deixa escapar nada, não é inteligente.” (2004: 242). Mais adiante Fo complementa: “[...] é preciso aprender [...] a recitar as intenções contidas no texto, não nas palavras. (2004: 283)

A construção dramatúrgica de Fo, apesar de possuir muitas distâncias em relação ao Teatro Físico como tipo específico de teatro, se configura como um teatro corpóreo baseado na ação e na mímica.

A mímica, no que tange a qualidade, formalização e estética do movimento, considera como central a construção de uma expressividade baseada no domínio da fisicalidade do gesto; construção esta que se fundamenta na redescoberta de tradições teatrais como a commedia dell’arte, dos mimos medievais e do teatro grego. Ela viabiliza o desenvolvimento principalmente da precisão e consciência do movimento; mas o ator que possui a mímica como instrumento para a construção dramatúrgica do texto e da cena deve superar os limites expressivos da mímica pura e buscar suas próprias ferramentas do pensamento em ação, como entende Dario Fo.

A mímica entra sempre em função da ação e dos assuntos, nunca como virtuosismo. Porque o objetivo da gestualidade de Dario Fo é fazer visualizar os objetos e as pessoas, sem que elas existam concretamente em cena. Nessas circunstâncias, a voz não descreve, age e deixa, ao gesto, a indicação das circunstâncias; é em torno do gesto que se organiza a cena inteira. Ao invés de sufocar a palavra, o gesto a valoriza. (VENEZIANO, 2002:185)

O corpo como linguagem disponível ao exercício de linguagens variadas é o cerne do teatro corpóreo, assim como a consciência das ações, a transformação das ações em ações simbólicas, trabalhando com a estruturação de partituras e composição de sentido, nas quais o corpo transforma-se em artífice e objeto, como nos espetáculos analisados.

O corpo como “espaço expressivo” torna-se metalinguístico, espaço no qual se dá o aprendizado da expressividade do próprio corpo na relação com impulsos interiores e a forma exterior. O corpo será tomado como expressivo em si mesmo, tratando de descobrir sua fala corporal característica, bem como outras possibilidades articulatórias dessa mesma fala.

A mímica, neste caso, amplia a linguagem corporal favorecendo a escolha e ampliação de gestos, bem como extrema limpeza de linhas e desenhos, criação mágica de espaços e objetos, auxiliando na precisão necessária e no aumento da dramaticidade do desempenho corpóreo - utilizando o mínimo de esforço e o máximo de resultado – análise e improvisação.

Pertencendo a uma geração de pedagogos da mímica moderna, Dario Fo, ao gênero dos criadores humanistas que se envolvem em todas as funções da prática teatral, concebe sua escritura para servir ao ator e não o contrário, estando a eficácia de sua dramaturgia dependente do conjunto de habilidades corporais e vocais do ator.

A mímica moderna e principalmente a mímica contemporânea, trazem elementos que fazem do corpo uma “máquina de narrar” capaz de extravasar os conflitos daquele corpo que escreve, e, como diz Jean-Pierre Ruyngaert, apesar de sua inclinação para o teatro do texto, o corpo do ator é o “aquilo” por onde a linguagem verbal tem de passar via respiração e voz, “à procura do essencial, já que aquilo que não se pode falar é o que se deve dizer”. (1998:178) Neste corpo que mima a narrativa, não necessariamente a narrativa das palavras, podendo promover a oposição, a teatralidade está expandida materialmente no corpo do ator, que determina as relações estéticas com os outros elementos, como o espaço.

A figura do mímico exalta esta idéia desde o seu surgimento. Embora a consciência desse corpo só aconteça na fase contemporânea, ele pensa com ele e não por meio dele; sua movimentação é o seu próprio pensamento, sua dramaturgia é a do corpo, sua emoção, seus sentimentos e seu raciocínio estão no gesto e no andar, no busto. Seu corpo é sentimento, objeto, natureza. A relação dentro/fora é integrada e corporificada, constantemente, na interação de seu corpo com o espaço.

(MALDONADO, 2005:104)

Nesse teatro do corpo a dialética corpo-palavra compreende relações como corpo- imagem, corpo-espaço e corpo-ritmo.

Fig. 5 A descoberta das Américas Vídeo produzido por Filmes do Serro

Fig. 6 Il Primo Miracolo