• Nenhum resultado encontrado

A desigualdade latino-americana e a hipótese da perpetuação de instituições

3 TRAJETÓRIAS

3.2 O PERCURSO LATINO-AMERICANO E O CASO BRASILEIRO

3.2.1 A desigualdade latino-americana e a hipótese da perpetuação de instituições

Em que medida a concentração de renda na América Latina é idiossincrática em relação à de países desenvolvidos? A partir dessa indagação, diversos estudos passaram a atribuir à elevada desigualdade observada na região caráter e origem particular. Frequentemente via um mecanismo de dependência de trajetória, o percurso latino-americano tem sido explicado pela permanência dos efeitos de instituições coloniais. Como explica Astorga (2017a), de acordo com a visão dominante, “a história altamente desigual da região reflete a persistência de ações e omissões dos colonizadores ibéricos” (ASTORGA, 2017a, p. 17, tradução nossa). Fitzgerald (2008) também sublinha o “determinismo histórico” da perspectiva hegemônica, segundo a qual “as causas da desigualdade na região podem ser encontradas em seu passado colonial”; essa

desigualdade teria “permanecido essencialmente inalterada desde então” (FITZGERALD, 2008, p. 1029, tradução nossa).

Brevemente, entre as variações do argumento, ideias referentes às raízes coloniais sugerem que disparidades iniciais de riqueza, capital humano, acesso à terra e ao poder político teriam concebido desenhos institucionais autoperpetuados. Também é apontada a importância de recursos iniciais, como a qualidade da terra, o clima e mesmo características da população nativa, bem como a influência de “instituições extrativas”, que teriam submetido, desde as colônias, grande parte da população aos interesses das relações entre governantes e elites, detentoras do poder político. A trajetória da desigualdade na região é explicada, ainda, a partir da oposição entre a colonização ibérica, mercantilista, e a britânica, liberal: enquanto a primeira teria se dedicado à extração de recursos naturais por meio da exploração das populações nativas, a segunda teria promovido instituições mais igualitárias, com maior proteção aos direitos individuais (e.g. ACEMOGLU et al., 2001; DE FERRANTI et al., 2004; ENGERMAN; SOKOLOFF, 2005; FRANKEMA, 2009; NORTH et al., 2000; RAMOS, 1996; ROBINSON, 1994; SOKOLOFF; ENGERMAN, 2000).161

Em comum, essas perspectivas apoiam-se em mecanismos de dependência de trajetória a partir dos quais a desigualdade atualmente observada remontaria a estágios precedentes ou iniciais das sociedades latino-americanas e suas instituições (BERTOLA et al., 2009). Esse entendimento é sumarizado em relatório do Banco Mundial elaborado por alguns de seus adeptos.

The contemporary situation cannot be understood without recognizing that extreme inequality emerged soon after the Europeans began to colonize the Americas half a millennium ago, and has been reflected in the institutions they put in place [...]. Although these colonies ultimately gained independence and the development of technology and the world economy brought about important changes, extreme inequality persisted into the 19th and 20th centuries because the evolution of political and economic institutions tended to reproduce and reinforce highly unequal distributions of wealth, human capital, and political influence (DE FERRANTI et al., 2004, p. 109).

Em síntese, a desigualdade seria bastante elevada na América Latina desde o período colonial; o cenário atual deveria ser compreendido como o reflexo de diferentes mecanismos originais de autoperpetuação.

161 A tradição de associar a desigualdade da região a raízes coloniais é, claro, mais antiga; remete, por exemplo, a trabalhos que discutiam, a partir dessas raízes, o “subdesenvolvimento” (e.g. CARDOSO; FALETTO, 1967; FRANK, 1967; FURTADO, 1977; STEIN; STEIN, 1970).

Essa perspectiva, no entanto, tem sido colocada em xeque. Novos estudos, baseados em projeções empíricas, têm constatado que a desigualdade latino-americana não é oriunda da simples reprodução de dissimetrias do período colonial (ABAD, 2013; ABAD; ASTORGA, 2016; ASTORGA, 2017a; FITZGERALD, 2008; WILLIAMSON, 2010; 2015).

Williamson (2015) destaca duas grandes limitações do entendimento dominante: além de as asserções sobre elevada desigualdade desde a época colonial não se basearem em dados sobre a desigualdade propriamente dita, elas não são analisadas comparativamente ― o que parece essencial.162 Quando essa comparação é feita, as projeções disponíveis, baseadas em “tabelas sociais” com rendimentos médios de determinados grupos, mostram que a desigualdade latino-americana não era maior que a desigualdade de países desenvolvidos no período colonial e mesmo nas décadas seguintes às independências nacionais.163 A desigualdade nos dois grupos de países passou a ser semelhante apenas na segunda metade do século XIX (WILLIAMSON, 2015).

No mesmo sentido, também em oposição à perspectiva institucional-colonialista, Astorga (2017a) constata que “países latino-americanos na era pré-industrial não eram especialmente desiguais na comparação internacional”; a relativamente alta desigualdade na região seria um fenômeno do século XIX (ASTORGA, 2017a).164

Assim como no caso das conclusões de Piketty e colaboradores sobre a trajetória de países desenvolvidos, o século XX parece ser o principal responsável por explicar o atual cenário distributivo latino-americano. Como constata Williamson (2015), “há pouco de inusual na desigualdade pré-industrial latino-americana”. Segundo o autor, “a história que tornou a

162 Williamson (2015) observa, por exemplo, que trabalhos de Engerman e Sokoloff (DE FERRANTI et al., 2004; ENGERMAN; SOKOLOFF, 2005; SOKOLOFF; ENGERMAN, 2000), influentes nomes dessa perspectiva, embora contem com muitas evidências sobre “privação de direitos, falta de sufrágio, tributação regressiva e escolaridade desigual na América Latina do século XIX em comparação com os Estados Unidos”, não exploram dados sobre a desigualdade de renda. Esses autores tampouco têm confrontado sua tese com evidências sobre a desigualdade em países desenvolvidos no mesmo período. De modo geral, Williamson (2015) observa que, embora haja comparações com os Estados Unidos, comparações com países europeus (naquele período) são “raramente, ou nunca, realizadas”. O autor parece correto em sua constatação de que “apenas por meio da comparação com outros tempos e lugares afirmações sobre a desigualdade na América Latina podem oferecer algum significado útil” (WILLIAMSON, 2015, pp. 11 e 21).

163 Williamson (2015) utiliza banco de dados sobre rendimentos internacionais no longo prazo organizado por ele, Milanovic e outros pesquisadores (MILANOVIC et al., 2011). Como pesquisas domiciliares eram raramente realizadas antes do século XX, os autores utilizam “tabelas sociais”, que registravam os rendimentos de diferentes grupos sociais ou profissionais. Para cálculo do Gini, esses grupos são ranqueados dos mais ricos aos mais pobres com suas estimadas parcelas da população e rendas médias (MILANOVIC et al., 2011).

164 As projeções sobre a trajetória da desigualdade na América Latina não são exatamente as mesmas. Abad e Astorga (2016), por exemplo, encontram mais oscilações que Williamson (2015). Em comum, elas “desafiam a visão de longa data de que os legados coloniais dominavam amplamente a evolução da desigualdade” (ABAD; ASTORGA, 2016, p. 2, tradução nossa). Outros trabalhos enfatizam a ascensão da desigualdade na Primeira Globalização (1870-1920), sobretudo nos países do Cone Sul, mas parecem não se opor diretamente ao paradigma das instituições coloniais (e.g. BERTOLA et al., 2009; ESCOSURA, 2007a, 2007b).

América Latina relativamente desigual foi a ausência do Grande Nivelamento Igualitário do século XX” (WILLIAMSON, 2015, pp. 4 e 3, tradução nossa).

Abad e Astorga (2016) também constatam que “ao contrário de muitos países ricos, a região não experienciou um nivelamento sustentado da desigualdade entre as décadas de 1940 e 1970” (ABAD; ASTORGA, 2016, p. 3, tradução nossa). De fato, parece haver consenso, entre oscilações e variações nacionais, de que a desigualdade latino-americana percorreu trajetória estável ou ascendente no século XX (ABAD; ASTORGA, 2016; ASTORGA, 2017a; BOURGUIGNON; MORRISSON, 2002; ESCOSURA 2007a; 2007b; FRANKEMA, 2009; MORLEY, 2000; WILLIAMSON, 2010, 2015).165

Figura 2 - Ginis estimados para América Latina e Reino Unido antes do século XX

Fonte: Elaboração própria a partir de dados de Williamson (2015), para a América Latina, e Lindert (2000) para o Reino Unido.166

165 A exceção é a projeção de Fitzgerald (2008), que sugere redução da desigualdade no século XX.

166 Williamson (2015) e Lindert (2000) utilizam estudos históricos baseados nas referidas “tabelas sociais” para calcular o Gini. Esses autores organizam, com Milanovic, conjunto de dados sobre rendimentos no período pré- industrial (MILANOVIC et al., 2007, 2011). Frutos de estudos de caso, os dados não são perfeitamente comparáveis; apenas ilustram patamares e tendências gerais. A comparação é realizada com o Reino Unido (Inglaterra e País de Gales até 1801), devido à indisponibilidade de dados comparáveis de longo prazo para a região europeia no período. Valores calculados para França sugerem patamares semelhantes (ver MORRISSON; SNYDER, 2000).

Figura 3 - Ginis estimados para América Latina e países desenvolvidos no século XX

Fonte: Elaboração própria a partir dos seguintes dados: “Europa Ocidental”, “Western Offshoots”, “América Latina e Caribe” com relatório da OCDE (MOATSOS et al., 2014); “América Latina I” (geral) e “América Latina II” (nove principais integrantes) com Williamson (2015) para século XIX, e Frankema (2009) para século XX. Dadas as fontes diversas, o gráfico não permite comparação entre valores absolutos, apenas ilustra patamares e tendências gerais.167

Em resumo, o que evidências recentes permitem sugerir, à luz do novo paradigma sobre a trajetória da desigualdade discutido na seção anterior, é que, mais que por características idiossincráticas perpetuadas, a desigualdade latino-americana diferencia-se marcadamente daquela observada em países desenvolvidos devido à ausência das transformações que, no século XX, tornaram as últimas nações muito menos desiguais.

167 Para os dados do começo do século, o relatório da OCDE (MOATSOS et al., 2014) calcula o coeficiente de Gini a partir de estudos de tabelas sociais realizados por diferentes pesquisadores, entre os quais Williamson, Lindert e Milanovic (MILANOVIC et al., 2007, 2011). Para valores posteriores a 1960, a maior parte dos dados utilizados refere-se a rendimentos domiciliares primários, organizados pelo World Income Inequality Database (UNU-WIDER, 2019) ― que é também fonte das projeções de Frankema (2009) sobre a América Latina.