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Desenvolvimentos: instituições sob o modelo ortodoxo

1 TEORIAS

1.2 CRÍTICAS, LIMITAÇÕES E DESDOBRAMENTOS

1.2.2 Desenvolvimentos: instituições sob o modelo ortodoxo

As abordagens do mercado de trabalho segmentado, conduzidas principalmente por pesquisadores norte-americanos, perderam força na década de 1990.22 A partir de meados dos anos de 1980, com crescente informatização e a disponibilidade de dados melhores e mais abundantes, houve uma “virada empírica” dos estudos econômicos, e abordagens teóricas entraram em declínio (BACKHOUSE; CHERRIER, 2017). Sobre a distribuição salarial, houve impressionante popularização da teoria do capital humano (BECKER, 1993c), cujas acessíveis variáveis independentes adequaram-se bem à propagação de novos métodos econométricos. Nesta seção, veremos como a teoria do capital humano se desenvolveu incorporando dimensões antes negligenciadas, também em função das limitações apontadas, bem como o percurso que levou instituições a serem novamente consideradas, dessa vez em aliança com o arcabouço neoclássico.

A teoria do capital humano passou a ser questionada logo junto às primeiras repercussões dos trabalhos de Mincer (1958), Schultz (1961) e Becker (1962). Contemporâneo desses autores, Lydall (1968, 1976) sintetiza críticas dirigidas à teoria: a ausência de explicações que dessem conta da parte da demanda, a restrição do modelo a variáveis educacionais e a validade de premissas referentes ao funcionamento do mercado e ao comportamento de firmas e trabalhadores. Segundo o autor, a teoria do capital humano seria combalida pela necessidade de que fossem aceitas, entre outras, as premissas de que “os

21 Abordagens do mercado de trabalho segmentado discutidas são por vezes associadas às perspectivas radical e neo(pós)-marxista (SMITH, 2003); outros trabalhos sugerem que parte de suas questões já seriam contempladas pela teoria neoclássica (FERNANDES, 2002). A variedade das abordagens parece impedir classificação precisa. Piore (1983), um de seus fundadores, reflete a respeito da classificação das teorias do mercado de trabalho segmentado, concluindo que elas não pertencem ao paradigma marxista e tampouco ao neoclássico. O autor sugere sua vinculação ao paradigma estruturalista ― cujo enfoque, segundo ele, estaria em processos cognitivos resultantes não da esfera individual, mas da sociedade, de grupos sociais e das instituições (PIORE, 1983). 22 Em breve análise de menções ao termo em livros publicados em inglês na plataforma Google Ngram Viewer, verifica-se pronunciado declínio a partir dos primeiros anos da década de 1990 (MICHEL et al., 2011).

mercados de trabalho, educação e capital são perfeitos e estão sempre em equilíbrio, instantaneamente e ao longo do tempo, [e de que] as pessoas, com perfeito conhecimento sobre o futuro, tomam decisões completamente racionais” (LYDALL, 1976, p. 22, tradução nossa). O nível de qualificação de um trabalhador não poderia depender, segundo Lydall (1976), apenas de suas escolhas individuais; contextos familiares, socioeconômicos e institucionais também deveriam ser considerados.

Em que pese a pertinência das críticas, algumas das quais desenvolvidas pelas abordagens do mercado de trabalho segmentado, é importante sublinhar que proposições originais da teoria do capital humano, já reconhecendo parte de suas limitações, não ignoravam completamente outros fatores associados à determinação salarial. Mincer (1974a), por exemplo, admite que outras forças, como “fatores sociológicos”, podem afetar a distribuição da renda; essas forças, contudo, embora não fossem negadas, eram entendidas mais como restrições às escolhas que como hipóteses exclusivas. O autor reconhece insuficiências dos modelos de capital humano até então desenvolvidos, que também precisariam contemplar investimentos parentais nas crianças, principalmente na pré-escola, o papel de capitais genéticos e investimentos em saúde. Reconhecia-se, ainda, que a teoria carecia de análises sobre relações estruturais que envolvessem não apenas a oferta, mas também a demanda por investimentos em capital humano, além da relação entre origem familiar e rendimentos da geração seguinte. Também se admitia que a associação positiva entre rendimentos, variáveis de capital humano, habilidades e o status socioeconômico levantava “questões de causa e efeito que ainda precisam ser resolvidas” (MINCER, 1974a, p. 55, tradução nossa) ― tema retomado no Capítulo 2.

Ainda que Becker aborde pouco a questão dos efeitos da origem familiar sobre os rendimentos individuais na primeira edição de Human Capital (1964), na segunda edição do livro, em resposta a críticas, um suplemento que discute essa questão passou a ser incluído (BECKER, 1975). Em capítulo inserido na terceira edição, publicada quase três décadas após a primeira, o autor observa que “nenhuma discussão sobre capital humano pode omitir a influência das famílias sobre conhecimentos, habilidades, valores e hábitos de suas crianças” ― embora essa influência por vezes pareça simplificada: “Pais que espancam gravemente seus filhos causam danos permanentes, enquanto no outro extremo do espectro, pais solidários e firmes ajudam a motivar seus filhos” (BECKER, 1993c, p. 21, tradução nossa). Nesses e em outros trabalhos, a influência familiar permanece admitidamente limitada à “abordagem microeconômica otimizadora”, de comportamento maximizador, preferências estáveis e mercados em equilíbrio (BECKER, 1989, 1993a, 1993c).

Embora o homem econômico, peça ilibada da perspectiva ortodoxa, tenha sido relativamente preservado, e que a questão da causalidade continue a ser criticada (ASHENFELTER et al., 1999; CECCHI, 2006), questionamentos a respeito do lado da demanda receberam respostas e desenvolvimentos da teoria neoclássica. Como observado, a demanda passou a ser explicada, principalmente a partir de Tinbergen (1975), pelo papel de mudanças tecnológicas, em entendimento que culminaria na alegórica corrida entre educação e tecnologia (ou globalização) (GOLDIN; KATZ, 2008; TINBERGEN, 1975).

Constatações a respeito do aumento da desigualdade salarial em países desenvolvidos nas últimas décadas do século XX, no entanto, levaram a questionamentos sobre o papel unívoco das forças de mercado. Os efeitos da tecnologia e da globalização explicavam apenas parcialmente esse aumento, e pouco diziam a respeito do nível da diferença de dispersão salarial entre países. Como esse nível não era explicado pela oferta de trabalhadores e suas qualificações, e tampouco pela demanda, era preciso olhar para as diferentes configurações institucionais que esses países abrigavam. A abordagem neoclássica precisava tornar-se relevante para o entendimento da desigualdade salarial em mercados de trabalho ― cada vez mais ― admitidamente imperfeitos. Com evidências crescentes a respeito dos efeitos de fatores externos sobre a distribuição salarial, modelos ortodoxos viram-se obrigados a se aperfeiçoar: as instituições tiveram de ser (re)consideradas (BLAU; KAHN, 1996, 1999; KATZ; AUTOR, 1999).

Principalmente a partir da década de 1990, multiplicaram-se trabalhos sobre dispersão salarial em países desenvolvidos que passaram a incorporar, no mesmo arcabouço das forças de mercado, instituições do mercado de trabalho ― como a sindicalização, a negociação coletiva, o salário mínimo e regulamentações trabalhistas (e.g. ACEMOGLU, 2000; BLAU; KAHN, 1996; CARD; DINARDO, 2002; DINARDO et al., 1996; FREEMAN; KATZ, 1995; JAUMOTTE; BUITRON, 2020; KATZ; AUTOR, 1999; KRISTAL; COHEN, 2017; LEE, 1999; LEMIEUX, 2006a, 2008).23 O interesse passou a ser explicar não apenas os determinantes da distribuição salarial em caso específico, no recorte de dado momento, mas também os motivos pelos quais em diferentes países são encontrados desigualdades e percursos tão distintos (BLAU; KAHN, 1999) ― um dos problemas centrais desta tese, retomado nos

23 Blau e Kahn (1999) concluem que a “explosão” de estudos que passaram a considerar instituições na década de 1990 é decorrente, além dos diferentes cenários observados em países desenvolvidos, de inovações em procedimentos metodológicos empíricos e da disponibilidade de microdados em grande escala. Boyer e Smith (2001) observam que a incorporação das instituições pelos modelos neoclássicos decorreu de longo percurso de questionamentos da tradição institucionalista, já discutido, e de outros modelos de determinação salarial, menos associados a essa tradição, explorados adiante.

próximos capítulos. Essas instituições têm assumido lugar proeminente entre determinantes da desigualdade salarial a ponto de ser observado, em alguns trabalhos associados à perspectiva ortodoxa, o emprego da abordagem “oferta-demanda-instituição” (e.g. CHUSSEAU; DUMONT, 2013; FREEMAN; KATZ, 1995; KATZ; AUTOR, 1999).

Com efeito, observa-se na literatura sobre a desigualdade salarial comparada, entre países desenvolvidos, não apenas crescente menção ao papel das instituições do mercado do trabalho: alguns estudos as têm apontado como fatores tão importantes quanto ― ou mesmo mais importantes que ― as forças de mercado (e.g. BLAU; KAHN, 1996, 2005; BROECKE et al., 2017; CARD; DINARDO, 2002; DINARDO et al., 1996; JOVICIC, 2016; LEE, 1999; PACCAGNELLA, 2014).

No entanto, deve-se observar que, embora tenham deixado de ser ignoradas pela abordagem neoclássica, instituições ainda são em muitos trabalhos entendidas de modo coadjuvante ou como simples ruído sobre os determinantes ortodoxos; como “impedimentos” ou “fricções” que distorcem o equilíbrio competitivo decorrente das funções de oferta e demanda. Para Fleetwood (2008), “o reconhecimento de que instituições existem e influenciam a operação dos mercados de trabalho não significa [...] que economistas do trabalho ortodoxos são capazes de analisá-las, e analisá-las adequadamente”. Segundo o autor, a “análise de ‘instituições’ oferecida [por esses economistas] tem sido extremamente inadequada” (FLEETWOOD, 2008, p. 3, tradução nossa).

De fato, em que pese a incorporação de variáveis associadas a instituições do mercado de trabalho, a versão “oficial” e amplamente aceita por órgãos internacionais para explicar o aumento da desigualdade em países desenvolvidos envolvia, ao menos até o fim do século XX, o aumento relativo da demanda por trabalhadores com maior qualificação ― seja esse aumento decorrente de inovações tecnológicas ou da globalização de mercados. Por tão difundida, a essa hipótese alguns autores se referem como “consenso transatlântico” (ATKINSON, 1998, 1999; CORNIA, 1999).24

Em suma, embora instituições sejam gradualmente incorporadas aos modelos ortodoxos, seu lugar jaz coadjuvante e seus efeitos sobre a dispersão salarial parecem se encontrar ainda sob suspeita. Como notam Katz e Autor (1999), a tensão entre “os papéis dos fatores de oferta e demanda e das forças institucionais sobre os salários perdura até hoje”

24 Cunhado por Atkinson (1999), o termo consenso transatlântico ― o “triunfo da oferta e demanda” como determinante de diferenciais salariais ― refere-se ao modo como se tornou consensual o papel de um único mecanismo. O autor observa que essa visão se tornou amplamente influente para a formulação de políticas em instituições internacionais em ambos os lados do Atlântico, como o FMI e a OCDE. Contrário a essa perspectiva, Atkinson (1999) oferece proposição alternativa, explorada adiante.

(KATZ; AUTOR, 1999, p. 1464, tradução nossa). No que respeita a esta tese, mais importante é observar que a maior parte dos trabalhos neoclássicos que as tem incluído atém-se a instituições formais, cujo entendimento limita-se ao emprego de variáveis específicas de indicadores do mercado de trabalho, convenientemente mensuráveis. O papel de instituições informais, em sentido mais amplo, como parte do que virá a ser compreendido neste trabalho como convenções sociais, costuma ser por esses trabalhos completamente negligenciado.

De todo modo, conforme concluem Dinardo et al. (1996), as descobertas sobre a importância das instituições do mercado de trabalho estão “em concordância com análises que eram comuns antes do advento da muito disseminada ‘análise da produtividade marginal’ e do crescente foco em fatores ‘econômicos’, como a oferta e demanda” (DINARDO et al., 1996, p. 1040, tradução nossa). É a partir dessa incorporação das instituições, ainda que de modo limitado, que volta a ser trilhado caminho para compreensão da desigualdade salarial também por sua dimensão social, perspectiva que não a resume às forças de mercado e aos esforços e predicados individuais. Nesse percurso, veremos que a consideração a instituições pela ortodoxia talvez seja atualmente observada também graças a importantes transformações do pensamento econômico nas primeiras décadas do século XX.