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1 TEORIAS

1.3 O RETORNO DO INDIVÍDUO À SOCIEDADE

1.3.4 Entre dicotomias: indivíduo e sociedade

A objeção da economia à atuação de convenções sociais tem sido abordada a partir de várias dicotomias ― dedução e indução, abstração e realismo, forças competitivas e não- competitivas, positivo e normativo, econômico e sociológico, por exemplo. Não parece razoável supor que a adesão aos componentes de um dos polos decorra simplesmente do projeto capitalista, ou das classes dominantes, de preservar a ordem econômica; projeto para o qual a teoria neoclássica seria ferramenta.81 Essas oposições talvez sejam mais bem entendidas como facetas de uma antinomia subjacente, mais abrangente, comum a tentativas de entendimento do homem e abreviada na oposição entre indivíduo e sociedade.

Nessa perspectiva, o individualismo, ou a sobreposição da agência individual à estrutura social, remonta a tradição muito anterior à ciência econômica, que encontra no invento liberalista de pensadores contratualistas do século XVII uma de suas origens ― em concepção da sociabilidade e do Estado a partir do indivíduo e seus direitos fundamentais, protegidos da soberania despótica, estranha a esses direitos.82 Com o surgimento da sociologia no século XIX83, sob governos já mais distantes da tirania, a perspectiva individualista encontra sua antítese; estabelece-se dicotomia da qual as ciências sociais nunca se veriam completamente livres, associada a proposições de pais fundadores de duas de suas disciplinas.

Confome explica Elster (1989),

81 Ver Henry (2012) e Zweig (2015). Essa ideia é também recorrente entre autores interessados no tema da desigualdade, sobretudo aderentes das perspectivas radical ou neo(pós)-marxista (e.g. BOWLES, 1973; BOWLES; GINTIS, [1976]2001; EDWARDS, 1979; GORDON et al., 1976; REICH et al., 1973).

82 Embora o termo tenha sido cunhado somente no século XIX, costuma-se atribuir a Hobbes ([1651]1998) e Locke ([1689]1980) origens da perspectiva individualista moderna na medida em que esses autores partem da razão e da deliberação individual para compreender as origens da sociabilidade e da construção do Estado legítimo. Tanto oponentes como proponentes do conceito o associam à criação do mundo ocidental moderno (DUMONT, 1977, 1986; NEDERMAN, 2005).

83 E mesmo desde muito antes da sociologia inaugurar-se ciência, como nas discutidas reflexões de Smith ([1790]1984) sobre o comportamento individual entendido a partir do espelho da sociedade. De fato, não é difícil remeter a perspectiva holística, pré-sociológica, a pensadores gregos (HODGSON, 2004).

one of the most persistent cleavages in the social sciences is the opposition between two lines of thought conveniently associated with Adam Smith and Emile Durkheim, between homo economicus and homo sociologicus. Of these, the former is supposed to be guided by instrumental rationality, while the behavior of the latter is dictated by social norms. The former is "pulled" by the prospect of future rewards, whereas the latter is "pushed" from behind by quasi-inertial forces [...]. The former adapts to changing circumstances, always on the lookout for improvements. The latter is insensitive to circumstances, sticking to the prescribed behavior even if new and apparently better options become available. The former is easily caricatured as a self- contained, asocial atom, and the latter as the mindless plaything of social forces (ELSTER, 1989, p. 99).

Hodgson (2004) observa que, oposto ao individualismo metodológico próprio da economia ortodoxa, o coletivismo (ou holismo) metodológico, comum à sociologia, define-se pela “noção de que todas as intenções ou comportamentos individuais devem ser explicados inteiramente em termos de fenômenos sociais, estruturais, culturais ou institucionais” (HODGSON, 2004, p. 23, tradução nossa). O autor descreve, nos mesmos termos de Elster (1989), a grande dicotomia das ciências sociais:

The social sciences as a whole were characterized as an apparent dilemma between an Adam Smith-like and incentive-driven view of action, on the one hand, and a Durkheim-like and norm-propelled view, on the other. In one discipline there appeared the ‘self-contained’, ‘under-socialized’, ‘atomistic’ and ‘asocial’ individual; in the other the individual seemed sometimes to be the ‘over-socialized’ puppet of ‘social forces’ (HODGSON, 2004, p. 28).

Em que pese considerarmos equivocada a sugestão de Smith como expoente máximo do individualismo ― autor cujo entendimento do homem nos parece ser muito mais abrangente ―, dois grandes entendimentos da agência humana são por essa oposição ilustrados.

No entanto, a economia neoclássica parece ter construído uma versão peculiar, e mesmo paradoxal, da tradição individualista. Ora, em oposição à inexorabilidade da determinação social durkheimiana, é reivindicada a agência individual; a possibilidade de que o indivíduo possa agir, discernir, escolher ante as estruturas que o acomodam.84 Economistas ortodoxos concebem um indivíduo livre de amarras sociais conferindo-lhe, contudo, outras amarras ― da racionalidade perfeita e da otimização do autointeresse. Ao contrário da autonomia e pluralidade individual, na economia passa a haver um único indivíduo, universal, prisioneiro de um interesse (próprio) soberano; todo comportamento passa a ser previsível quando executado por esse autômato otimizador. Assim, a principal limitação da teoria neoclássica

84 Trata-se de um dos meios pelos quais autores pós-modernos, por exemplo, afeitos a percursos e narrativas individuais, chacoalham fundamentos sociológicos clássicos (MURPHY, 1988).

talvez não decorra de sua associação com o individualismo, mas da versão aberrativa, em termos sociológicos e antropológicos, que ela sustenta.

Ainda que se admitam caricatos os dois polos extremos desse dualismo85, o ponto central é que, no entendimento da desigualdade salarial pela economia neoclássica, aquela que pauta não apenas políticas públicas, mas também narrativas sobre a justiça da distribuição (AKERLOF; KRANTON, 2010), esse “homem econômico”, constructo do século XX, preservou-se intocado, completamente alheio a relações, seja entre grupos ou classes sociais. Como observa Fleetwood (2008), na literatura sobre o mercado de trabalho, a estrutura social, componente central de grande parte da teoria social, é termo estranho ao mainstream econômico (FLEETWOOD, 2008).

A ascensão desse entendimento, indiferente a interações sociais, talvez seja explicada não apenas pela adesão neoclássica à tradição individualista, mas também por transformações profundas inauguradas pelo século XX. Em países desenvolvidos, a desigualdade e a rígida estratificação social sob a qual indivíduos se encontravam atados derrocaram enormemente, em dimensões talvez inéditas (PIKETTY, 2014; REDER, 1968), promovendo a percepção ― em certa medida correta, sobretudo relativamente ― de que as remunerações dos indivíduos dependem de seus esforços e escolhas. É nesse contexto que a teoria do capital humano encontrou fundamentos para construir abordagem sobre a determinação de salários que partisse das escolhas individuais; que deixasse de considerar os efeitos da estrutura social sobre o indivíduo, tomando esse indivíduo como fonte exclusiva para a compreensão de seus rendimentos. O golpe final para a destituição das relações econômicas das relações sociais foi, em certa medida, amparado por novas percepções sociais que então se assentavam.86

Entre as razões para que esse entendimento seja crescentemente questionado, devem ser sublinhados dois importantes pontos. Contrariando expectativas, após ter diminuído e permanecido estável por grande parte do século XX, a desigualdade salarial em países desenvolvidos tem aumentado nas últimas décadas por razões não explicadas apenas pelas características individuais. O segundo ponto é que essas grandes transformações sobre a estrutura salarial não foram observadas em países periféricos, como o Brasil, onde é muito mais difícil afirmar que a desigualdade salarial depende apenas das escolhas e características individuais. De fato, o entendimento da desigualdade (em teorias, métodos, previsões) tem sido

85 Não apenas o individualismo metodológico é amplamente questionado, mas também o coletivismo, dentro da própria sociologia, onde há muito se critica a ideia de que indivíduos são meras marionetes de forças sociais (HODGSON, 2004).

construído por pesquisadores, e sobre a realidade, de países desenvolvidos. Países em desenvolvimento, mesmo em grandes obras mais recentes, são admitidamente negligenciados (PIKETTY, 2014, 2017). Se determinantes neoclássicos, que ignoram a atuação de convenções sociais, têm sido amplamente questionados por autores que se atêm à realidade de países desenvolvidos, esses determinantes, sozinhos, encontram lugar certamente menor como explicação para a desigualdade salarial brasileira.

Acompanhando Sørensen (1996), nesta tese exploramos a ideia essencial de que, em grande medida, “vantagens obtidas pelo acesso a uma posição na estrutura social independem do comportamento do ocupante dessa posição” (SØRENSEN, 1996, p. 1335, tradução nossa). Essas vantagens, segundo propomos, seriam explicadas, especialmente no caso brasileiro, menos pelos esforços e escolhas do indivíduo que por estruturas e convenções sociais que o precedem.

Se as relações econômicas são relações sociais, como concluímos, para compreender a atuação de convenções sociais sobre a desigualdade salarial é preciso analisar não apenas leis endógenas ou escolhas individuais, presumidas pela ortodoxia, mas as referidas transformações sociais observadas nas primeiras décadas do século XX; o modo como essas transformações levaram nações a caminhos distributivos significativamente diferentes. Esse é objetivo do Capítulo 3.

Antes, no entanto, um segundo capítulo é necessário. Até aqui tratamos dos caminhos de ideias e teorias que se propõem a explicar a determinação salarial; sugerimos que o entendimento hegemônico, constructo do século XX, negligencia a atuação de fatores sociais e que esses fatores cumprem papel importante para a compreensão da desigualdade salarial. Após sucessivas páginas teóricas, deve emergir a pergunta: há evidências empíricas que sustentam essas proposições? É a elas que o próximo capítulo se dedica.