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A trajetória brasileira: disparidades extremas e (quase) intocadas

3 TRAJETÓRIAS

3.2 O PERCURSO LATINO-AMERICANO E O CASO BRASILEIRO

3.2.3 A trajetória brasileira: disparidades extremas e (quase) intocadas

O percurso da desigualdade brasileira é semelhante ao percurso latino-americano. Não há consenso a respeito de dimensões e da trajetória da desigualdade no Brasil antes da década de 1960, quando levantamentos sobre a renda passaram a fazer parte dos censos nacionais. Sobre o período desde então, diversos trabalhos encontram trajetória estável ou ascendente até os últimos anos do século XX (BONELLI; RAMOS, 1995; ESCOSURA, 2005; FRANKEMA,

2009; HOFFMANN, 1995; LONDOÑO; SZÉKELY, 1997; LUSTIG et al., 2012; MORGAN, 2018; SOUZA, 2016). Em meados da década de 1990, por exemplo, Bonelli e Ramos (1995, p. 369) observavam que houve “um aumento quase que contínuo no grau de concentração da renda no Brasil” nos três decênios anteriores.

Há projeções, de origens variadas, sobre períodos anteriores à década de 1960 ― que se tornam mais deficientes à medida que se distanciam no tempo, como observado. O principal esforço de construção do coeficiente de Gini de longo prazo é realizado por Bertola et al. (2009, 2010, 2012) em trabalhos que estimam a desigualdade para os anos 1872 e 1920. Os autores admitem limitações da projeção, realizada a partir de censos realizados naqueles anos; a determinados grupos populacionais são atribuídas rendas “usando uma ampla gama de fontes e premissas”.173 Em que pese a precariedade dos dados, os resultados indicam trajetória ascendente (de 0.55 para 0.66), em patamar elevado, semelhante ao encontrado no restante do século XX.174

Escosura (2005, 2007a) faz projeção ainda mais pretérita ― e imprecisa ―, a partir do que chama de “pseudoginis”, sobre a desigualdade brasileira desde 1850. O autor encontra redução na primeira década analisada e estabilidade levemente ascendente até os últimos anos do século XIX, quando ocorre um novo declínio antes de trajetória de elevação mais inclinada por todo o século seguinte.175

Mais recentemente, duas teses de doutorado dedicam-se à trajetória da desigualdade brasileira no século XX a partir de abordagem inédita que faz uso de dados tributários (SOUZA, 2016; MORGAN, 2018). Acompanhando tendência inaugurada por Piketty e colaboradores,

173 Para 1872, por exemplo, os autores se baseiam em censo com números oficiais sobre rendimentos de variadas ocupações de funcionários públicos. Também estipulam rendimentos para as mulheres e se utilizam de dados profissionais de eleitores do Rio Grande do Sul, extrapolados para o restante do país. Nota-se que em 1872 ainda havia escravidão; os autores atribuem aos escravos renda segundo diferentes relatórios sobre custos de sua manutenção. Para 1920 também são utilizados o censo e procedimentos semelhantes, junto a fontes adicionais (BERTOLA et al., 2009, 2010, 2012).

174 O mesmo grupo de autores havia se dedicado a projeção, menos considerada pela literatura, da desigualdade brasileira para grande parte do século XIX (1838-1939) em retrospecção dos mesmos censos de 1872 e 1920 (BERTOLA et al., 2006). A tendência que estimam é de redução da desigualdade no século XIX. Os Ginis calculados nesse primeiro trabalho, contudo, pareciam aos autores demasiadamente baixos para o Brasil; eles já imaginavam que os valores poderiam aumentar à medida que novas fontes fossem incorporadas, o que de fato ocorreu nos mencionados trabalhos posteriores (Bertola et al., 2009, 2010, 2012).

175 Os “pseudoginis” são construídos como projeções anteriores de anos efetivamente calculados, com base em variações da razão entre salários de trabalhadores não qualificados e o PIB por trabalhador (ESCOSURA, 2005, 2007a). Williamson (2015) cogita, em duas frases, que a inflexão encontrada por Escosura (2007a) na última década do século XIX pode se dever a efeitos provisórios do fim da escravidão. O próprio Escosura (2005, 2007a) não faz menção a essa possibilidade. Essa questão, como observado, é ainda pouco explorada em estudos empíricos sobre a trajetória da desigualdade latino-americana.

ambos os autores optam por, no lugar de indicadores sintéticos, atribuir à trajetória da desigualdade brasileira o percurso da renda concentrada pelo 1% mais rico.176

Souza (2016) conclui que houve trajetória estável, em altíssimo patamar, por todo o período analisado (1926-2013). O autor constata que a renda concentrada pelo 1% mais rico, com algumas oscilações, manteve-se entre 20% e 25% da renda nacional por quase todo o período, sem qualquer tendência sustentada. Entre essas oscilações, Souza (2016) destaca dois momentos de elevação após a instauração de ditaduras (do Estado Novo, durante a Segunda Guerra, e do golpe militar de 1964) e um momento de mais significativa redução entre 1945 e 1960 ― o qual descreve como “mininivelamento” (SOUZA, 2016).

Morgan (2018), em análise sobre o mesmo período (1926-2016), também destaca a estabilidade da concentração de renda, cuja persistência, afirma, “não é vista em nenhum outro lugar do mundo” (MORGAN, 2018, p. 81, tradução nossa). A exceção sublinhada é o momento de redução da desigualdade entre 1942 e 1964, semelhante ao apontado por Souza (2016), ao qual se refere como “nivelamento não sustentado”. A esse momento retornaremos na seção seguinte.177

Em que pesem as vantagens da análise de estratos específicos a partir de dados tributários para estimar percursos da desigualdade, já apontadas, para os propósitos desta tese devemos lembrar, como faz Piketty (2014), que o 1% mais rico “vive, antes de tudo, da renda proveniente do patrimônio” (PIKETTY, 2014, p. 302). É possível que transformações profundas afetem os 99% restantes, cujas rendas provêm sobretudo dos rendimentos do trabalho, sem que o percentual da renda detida pelo extremo topo seja alterada.178 De todo modo, sejam coeficientes de Gini calculados a partir de pesquisas domiciliares, ou corrigidos com dados tributários, seja o estrato da renda concentrada pelo topo, as medidas de desigualdade disponíveis no longo prazo mostram trajetória ascendente e a ausência de qualquer grande compressão da desigualdade brasileira no século XX.

176 Souza (2016) observa que em seu trabalho, admitidamente sobre os mais ricos, “o termo “desigualdade” [é] utilizado basicamente como sinônimo de ‘concentração no topo’” (SOUZA, 2016, p. 234).

177 Morgan (2018) e Souza (2016) realizam exercício de corrigir os coeficientes de Gini calculados a partir das PNADs, que subrepresentam rendimentos do topo, a partir de dados tributários. A trajetória, contudo, não é significamente alterada. As abordagens dos dois trabalhos não coincidem pelo acaso: Morgan (2018) escreveu junto com Souza o capítulo de sua tese que discute a trajetória da desigualdade brasileira (MORGAN, 2018). 178 De fato, é exatamente o que teria acontecido na primeira década do século XXI no Brasil, segundo as projeções de Souza (2016) e Morgan (2018): a participação do 1% mais rico manteve-se estável a despeito de significativa redução da desigualdade salarial. Os autores parecem levar em conta a importância dos percursos dos demais estratos, mas com os dados tributários de que dispõem só podem fazer projeções de longo prazo (até 1926) para o 1% do topo. A participação de outros estratos só pode ser analisada após a década de 1970, quando pesquisas domiciliares já se encontram disponíveis.

Figura 4 - Percursos da desigualdade no Brasil e países selecionados no século XX

Fontes: As linhas contínuas referem-se aos coeficientes de Gini calculados a partir de pesquisas domiciliares e “tabelas sociais”; as pontilhadas, aos Ginis corrigidos com dados tributários; e as linhas traçadas, que ao contrário das demais devem ser lidas a partir do eixo direito, referem-se ao percentual da renda detida pelo 1% mais rico. Elaboração própria a partir de dados de: Brasil I (IPEA, 2018); Brasil II (ESCOSURA, 2005); Brasil III (BERTOLA et al., 2009); Brasil IV (FRANKEMA, 2009); EUA (MILANOVIC, 2013 e ATKINSON et al., 2017); França (MORRISSON; SNYDER, 2000 e ATKINSON et al., 2017); Brasil corrigido e Brasil 1% (SOUZA, 2016); EUA e França corrigidos e EUA e França 1% (WID, 2018).179

As projeções de longo prazo, como observado, dificilmente permitem distinguir rendimentos do trabalho e do capital. Embora projeções específicas sobre a desigualdade da renda do trabalho por todo o século XX sejam raras, Astorga (2017b), no referido estudo sobre a desigualdade salarial latino-americana, oferece dados também sobre a trajetória brasileira: diferenciais salariais, após significativa redução entre 1907 e 1927, aumentaram por todo o século XX. A também já mencionada projeção de Frankema (2012) sobre a segunda metade daquele século, realizada a partir de salários industriais, chega à mesma conclusão.180

179 Com exceção das últimas décadas do coeficiente de Gini francês (não corrigido), as projeções tratam da distribuição primária. Em Brasil 1%, utilizamos as médias de três quinquênios calculadas por Souza (2016) (1930- 1935, 1970-1975, 2010-2015). Dadas as fontes de origens diversas, o gráfico não permite comparação entre valores absolutos, apenas ilustra patamares e tendências gerais.

Em resumo, via coeficiente de Gini ou estratos específicos, seja com rendimentos totais ou do trabalho, a maior parte das projeções sobre a desigualdade brasileira de longo prazo sugere, com pontuadas oscilações, trajetória estável ou ascendente até os últimos anos do século XX (BERTOLA et al. 2009; 2010, 2012; ESCOSURA, 2005, 2007a; FRANKEMA, 2009; ASTORGA, 2017a, 2017b; MORGAN, 2018; SOUZA, 2016).181