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Algumas ponderações e um importante questionamento

3 TRAJETÓRIAS

3.2 O PERCURSO LATINO-AMERICANO E O CASO BRASILEIRO

3.2.2 Algumas ponderações e um importante questionamento

São necessárias algumas qualificações antes de, com a exploração do caso brasileiro, dar prosseguimento ao argumento sugerido até aqui ― apresentado de maneira talvez demasiadamente simples, sem ruídos.

A primeira questão envolve o alcance das projeções e dados discutidos. Conquanto sejam certamente mais bem embasadas que as interpretações anteriores, as novas estimativas são admitidamente limitadas, e cada vez mais imprecisas à medida que se afastam no tempo ― observação que vale também para o caso de países desenvolvidos, sobretudo quando analisamos a trajetória da desigualdade salarial. Elas parecem suficientes, contudo, para estimar patamar e direção das trajetórias no longo prazo, bem como para realizar comparações gerais com outras regiões cujas projeções de trajetória foram construídas com dados da mesma natureza.

De modo geral, é preciso ter em mente as limitações de qualquer medida da desigualdade, mesmo das mais recentes, cujas escolhas estão sempre sujeitas às questões que se pretende responder.168 Neste trabalho, a respeito das projeções já apresentadas e daquelas que ainda serão discutidas, evitamos interpretar valores absolutos ou especular sobre inflexões em anos específicos, sujeitas a rupturas metodológicas ou alterações na coleta de dados, frequentemente desconhecidas ou desconsideradas. É claro que, como observa Atkinson (2008), essas escolhas dependem dos objetivos em questão. Para nossos propósitos, sempre que possível, o melhor caminho parece ser apoiar-se em direções apontadas por mais de um tipo de abordagem, privilegiando tendências e patamares gerais a inflexões e valores pontuais ― procedimento especialmente relevante para discussões realizadas adiante.

Ainda sobre os dados, as projeções abordadas, via de regra, utilizam a distribuição primária dos rendimentos (antes de impostos e transferências), único procedimento possível para períodos anteriores ao começo do século XX, mas não necessariamente para as décadas seguintes, nas quais houve ampliação da tributação e crescente consideração à renda disponível em estudos sobre a desigualdade. Como discutido adiante, caso privilegiássemos a renda disponível (no lugar da primária), a divergência recente entre a América Latina e países

168 Por exemplo, vimos que o percurso da renda detida por estratos do topo parece ilustrar bem a trajetória da desigualdade total, além de ser consistente no longo prazo, mas encontra limitações para explicar mudanças que dizem respeito ao meio da distribuição, como da dispersão salarial. De fato, mesmo as abordagens que utilizam a renda detida por estratos do topo a partir de declarações tributárias, presumivelmente mais consistentes, encontram importantes limitações. Auten e Splinter (2017) mostram que essa abordagem, a partir de críticas ao trabalho de Piketty e Saez (2001, 2004), é grandemente influenciada por mudanças na base tributária, transformações demográficas e fontes de renda ausentes. Segundo os autores, para lidar com essas dificuldades, pesquisadores acabam tendo de lançar mão de numerosas suposições, tornando seus resultados enviesados ― o que acreditam demonstrar com o exemplo explorado (AUTEN; SPLINTER, 2017).

desenvolvidos seria ainda maior dada a virtual ausência de progressividade na tributação em países latino-americanos, como o Brasil.

A respeito das projeções discutidas sobre a América Latina, também é preciso sublinhar que nelas é impossível distinguir os rendimentos do capital e do trabalho. Essas projeções parecem representar bem, no entanto, o percurso da desigualdade salarial. No caso de Williamson (2010, 2015), embora para alguns países os dados se refiram aos rendimentos de estratos do topo via declarações tributárias, na maior parte dos casos parecem ser utilizados rendimentos atribuídos a diferentes grupos sociais ou profissionais. A projeção brasileira, por exemplo, é realizada a partir de censo profissional com dados de rendimentos de 813 grupos de ocupações (MILANOVIC et al., 2011; WILLIAMSON, 2015). As novas projeções de longo prazo de Abad e Astorga (2016), embora para o século XX eventualmente considerem rendas do capital, “dependem amplamente de dados sobre salários para medir a desigualdade” (ABAD; ASTORGA, 2016, p. 2, tradução nossa).

Infelizmente, sobre a América Latina não há evidências robustas a respeito, especificamente, da trajetória da desigualdade salarial. Astorga (2017b) acredita ser responsável pelo único estudo regional consistente de longo prazo sobre diferenciais salariais (entre rendimentos médios de grupos com diferentes qualificações) na América Latina ― outros trabalhos tratam de períodos específicos em determinados países.169 O autor sugere trajetória ascendente contínua por toda a segunda metade do século; na primeira, encontra dois picos: logo nos primeiros anos do século e na década de 1930. A projeção tem, contudo, significativas limitações: entre outros pontos, não conta com dados sobre o grupo de trabalhadores mais qualificados (profissionais, na definição da OIT), o que presumivelmente subrepresenta os diferenciais encontrados.

Em projeção sobre a segunda metade do século, Frankema (2012), a partir de diferenciais salariais entre ocupações industriais, conclui que houve aumento em todo o período nos 15 países latino-americanos analisados ― em patamares muito superiores aos encontrados nos países desenvolvidos comparados (Estados Unidos, Canadá e Austrália). A principal limitação nesse caso é a desconsideração de trabalhadores do setor rural e de serviços.170

Deve-se observar ainda que não se depreende da referência a uma trajetória da desigualdade latino-americana, total ou salarial, que todos os países da região tenham traçado

169 Williamson (1999), por exemplo, aborda países do Cone Sul durante a Primeira Globalização (1870-1920, aproximadamente).

170 Sobre a primeira metade do século, Frankema (2012) analisa salários industriais de trabalhadores formais, sobretudo do setor de construção, apenas para alguns países e cidades latino-americanas.

o mesmo percurso; significativas variações nacionais são encontradas. Também com o objetivo de abordar parte dessas ponderações, observaremos mais de perto a trajetória brasileira. Antes, contudo, é preciso discutir uma última questão: ainda que novas evidências refutem o determinismo histórico da trajetória da desigualdade latino-americana, não se pode deixar de abordar o mais sombrio dos legados coloniais.

E a escravidão?

A nova perspectiva sobre a trajetória da desigualdade latino-americana traz consigo implicação controversa. Questionar a importância da herança colonial parece colocar em xeque o entendimento, radicado no pensamento social brasileiro, de que a trajetória da desigualdade na região, e especialmente no Brasil, é determinada pela escravidão. De fato, a relação entre o período escravagista e as atuais desigualdades brasileiras é tema intensamente explorado nas ciências sociais, em trabalhos clássicos e mais recentes, e frequentemente reverberado na opinião pública.171 Não sem razão.

No entanto, embora uma associação geral dificilmente possa ser refutada, alguns pontos têm de ser observados. A discussão realizada neste capítulo não envolve desigualdades, mas uma desigualdade específica, a de rendimentos ― e especialmente os rendimentos salariais. Ou seja, não tratamos da miríade de iniquidades que aflige os estratos mais pobres ― do acesso à saúde, à educação, ao sistema judiciário, à cultura e o tratamento policial, por exemplo ― e tampouco das vias de discriminação e racismo ou dos grandes recortes de classe, gênero e raça, muitos dos quais talvez mais diretamente associados ao legado da escravidão.172

171 Sobre trabalhos clássicos, ver Fernandes ([1964]2008), Furtado ([1959]2005) e Prado Jr. ([1942]1961), por exemplo. Atualmente, Souza (2016) observa que “a sabedoria convencional, familiar aos brasileiros desde a educação básica, atribui à forma de colonização espanhola e portuguesa as origens da elevada concentração de renda, contrastando nossos latifúndios com trabalho escravo às pequenas e médias propriedades do norte dos Estados Unidos” (SOUZA, 2016, p. 332).

172 Deve-se notar ainda que há países que também lamentam passado escravista, como os Estados Unidos, com trajetórias distributivas muito diferentes da brasileira. Presumivelmente, com o fim da escravidão, recém libertos passaram a compor estrato, já robusto, composto por pessoas com mínimas remunerações. Embora haja indícios dos efeitos desse processo em algumas projeções (e.g. BERTOLA et al., 2009), muitos trabalhos admitem dificuldades para compreender essa questão com os dados disponíveis; outros, a ignoram. É curioso notar que, em compêndio relativamente recente com trabalhos que defendem o determinismo histórico de instituições coloniais para explicar a desigualdade latino-americana (DE FERRANTI et al., 2004), a questão específica da escravidão é tratada apenas colateralmente. Para trabalho recente sobre a relação entre a escravidão e a desigualdade brasileira, ver Piketty (2019). Fujiwara et al. (2019) realizam esforços econométricos para tentar medir a relação causal entre a escravidão a desigualdade brasileira.

Mesmo assim, deve ficar claro que não se pretende afirmar que o período de escravidão e as instituições coloniais, de modo geral, não cumpram papel sobre a trajetória da desigualdade de renda latino-americana. Em nosso entendimento, apenas não é possível atribuir a esse fator, a partir do que as evidências disponíveis inferem, lugar exclusivo para explicar as diferenças do percurso latino-americano em relação ao de países atualmente menos desiguais. De todo modo, a conclusão de Williamson (2015) ― de que é um mito que as raízes da desigualdade na região estejam em seu passado colonial ― parece exagerada. Em que pese não determinar toda sua trajetória relativa, a herança colonial talvez possa elencar-se entre as razões pelas quais, por exemplo, a América Latina figura como uma das regiões mais desiguais do mundo, bem como ajudar a compreender por que tem sido tão difícil empregar medidas distributivas sustentadas. Mesmo Williamson (2015) reconhece que, embora o legado colonial não explique o percurso da desigualdade de rendimentos propriamente dito, ele deve estar associado à trajetória de desigualdades políticas ― cujas implicações sobre o desenvolvimento e disparidades econômicos são presumíveis. As novas projeções não devem perder de vista, como observa Astorga (2017a), autor que também refuta o determinismo histórico, que os movimentos da desigualdade também são “condicionados por características estruturais herdadas” (ASTORGA, 2017a, p. 17, tradução nossa).

Com efeito, “características estruturais herdadas” são em essência o tema fundamental desta tese. O legado escravista, embora não determine o percurso da estrutura salarial, parece certamente vinculado a mecanismos que envolvem sua perpetuação. Essa discussão será retomada no Capítulo 4. Neste momento, o ponto central é que, segundo as evidências disponíveis, a trajetória da desigualdade latino-americana, em relação à de países desenvolvidos, tem como principal componente não a presença de características particulares, remetidas ao século XVI, mas a ausência das transformações que, no século XX, tornaram aquelas sociedades muito menos desiguais.