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1 TEORIAS

1.2 CRÍTICAS, LIMITAÇÕES E DESDOBRAMENTOS

1.2.4 Convenções sociais

Reflexão elementar em estudos sociológicos (LINDBECK; SNOWER, 2001), a ideia de que indivíduos se comportam também em função da observação a normas ou convenções sociais ― seja por temerem sanções oriundas de sua violação, pela premiação decorrente de sua obediência ou pelos sentidos e crenças a elas atribuídos ― passou a ser considerada, após por muito tempo negligenciada, em diversos campos da economia no mesmo período em que Akerlof (1976; 1980; 1982; 1984) e Solow (1979a; 1979b; 1980; 1990) as incluíram em modelos de determinação salarial (GLAESER; SCHEINKMAN, 2000; HORST et al., 2007; MANSKI, 2000).

35 Segundo Akerlof (2007, p. 11, tradução nossa), a inclusão dessas normas “traz a visão de Keynes sobre o comportamento econômico de volta à vida”. O autor faz a observação, que por este trabalho será continuamente reiterada, de que sugerir a vigência de preferências mais abrangentes não é o mesmo que negar a atuação de forças competitivas e de eventuais comportamentos maximizadores (AKERLOF, 2007).

Mesmo Becker, um dos responsáveis pela revolução do capital humano ― e, portanto, pela hegemonia da perspectiva neoclássica sobre a distribuição salarial ―, passou a defender a incorporação de fatores sociais na teoria econômica em trabalhos posteriores. O autor observa que economistas do século XIX atribuíam grande relevância a interações sociais, que passaram a ser largamente ignoradas nas funções de utilidade desenvolvidas no século XX (BECKER, 1974). O interesse do autor pelos efeitos dessas interações surgiu em seu já mencionado estudo sobre preconceito e práticas discriminatórias, que colocavam em xeque a ubiquidade da premissa do comportamento maximizador (BECKER, 1971).

Posteriormente, explica Becker (1974), “reflexões seguintes gradualmente me convenceram de que a ênfase de economistas mais antigos merecia ser levada muito mais a sério, pois interações sociais tinham significados que transcendiam em muito os casos especiais discutidos por mim e por outros” pesquisadores (BECKER, 1974, p. 1065, tradução nossa). Em trabalho que não aborda a questão distributiva, o autor incorpora um “entendimento geral” das interações sociais na teoria moderna da demanda do consumidor ― explorando, entre outros pontos, comportamentos associados a relações intrafamiliares, à caridade e aos sentimentos de inveja e ódio ―, com o objetivo de oferecer “testemunho persuasivo não só da importância das interações sociais, mas também da viabilidade de incorporá-las em uma análise rigorosa” (BECKER, 1974, p. 1066, tradução nossa).

Interações, fatores, normas ou convenções sociais têm sido descritas por estudos econômicos de diferentes modos. Akerlof (1980) define convenção ou costume social como um “ato cuja utilidade para o agente que o executa depende das crenças ou ações dos membros da comunidade” (AKERLOF, 1980, p. 749, tradução nossa). O autor aponta a presença dessa ideia em estudos econômicos desde Pareto (1935), quem já constatava que agentes econômicos “têm opiniões a respeito de como devem, ou de como não devem, se comportar; [ao mesmo tempo em que] possuem visões sobre como os outros devem, ou não devem, se comportar” (AKERLOF, 2007, p. 8, tradução nossa, grifo original). O cumprimento de normas sociais, segundo Akerlof, dependeria não apenas de sanções decorrentes de sua violação, sentido exógeno em que o termo é comumente entendido na economia, mas também do fato de que os indivíduos que a elas se sujeitam nelas acreditam. A função de utilidade sugerida pelo autor passa a incluir ações que admitem a perda de utilidade na medida em que essas ações se associam à obediência às referidas normas (AKERLOF, 2007; AKERLOF; KRANTON, 2010).

Para Lindbeck e Snower (2001) normas sociais implicam que “certo tipo de comportamento é esperado por outras pessoas e compelido por sanções que são de natureza social e não econômica”. A conformidade com essas normas seria recebida com aprovação,

status e orgulho, enquanto seu desvio acarretaria desaprovação, estigmatização e vergonha”

(LINDBECK; SNOWER, 2001, p. 179, tradução nossa).

Ostrom (1990, 2000), em análises institucionalistas dedicadas a temas como governança de recursos comuns e ação coletiva, define normas sociais como “entendimentos compartilhados a respeito de ações que são obrigatórias, permitidas ou proibidas”. Segundo a autora, a especificação das normas a serem aprendidas “varia de uma cultura para a outra, entre famílias, e de acordo com a exposição a diversas [outras] normas sociais” (OSTROM, 2000, p. 144, tradução nossa). Além da censura social decorrente de agir em desacordo com normas sociais compartilhadas, Ostrom (2000) aborda o “custo intrínseco”, ou angústia, que acomete indivíduos que não observam convenções em que acreditam. Esse custo é entendido como culpa, quando inteiramente autoinfligido, ou como vergonha, quando o conhecimento do fracasso é conhecido por outros (OSTROM, 1990, 2000).

Glaeser e Scheinkman (2000) constatam que indivíduos agem também em função das ações das pessoas que os circundam e sugerem que tais relações sociais, entendidas como “interações não comerciais” (non-market interactions), ajudariam a explicar ampla gama de fenômenos não ou deficientemente compreendidos pela ortodoxia ― de colapsos do sistema financeiro a variações de índices de criminalidade, passando por grandes recessões. Essas interações não comerciais, que os autores se incumbem de formalizar em modelo matemático, são por eles definidas simplesmente como relações entre indivíduos que não são reguladas pelo mecanismo de mercado (GLAESER; SCHEINKMAN, 2000).

Esses e outros estudos econômicos36 têm compreendido interações sociais, de acordo com Manski (2000), a partir da ideia de que as decisões de um agente econômico afetam as decisões de outros agentes por meio de três canais: das restrições, mais familiar à perspectiva neoclássica; das expectativas, canal explorado por estudos da economia da informação; e das preferências, no qual se destacam trabalhos da teoria dos jogos. Segundo o autor, análises de interações sociais têm ampliado o escopo da teoria econômica não apenas nas áreas macro e microeconômica, mas também no campo da economia do trabalho (MANSKI, 2000).

36 Muitos outros exemplos de estudos que destacam efeitos de interações sociais em diversas áreas da economia poderiam ser mencionados (e.g. BÉNABOU; TIROLE, 2006, 2007; ELSTER, 1989; YOUNG, 2008).

Convenções sociais e a desigualdade salarial

De volta à desigualdade salarial, a discussão sobre os efeitos de fatores sociais tem encontrado terreno fértil em estudos sobre o mercado de trabalho. As abordagens discutidas nas seções anteriores, de modo geral, partem da constatação de que preços no mercado de trabalho frequentemente não coincidem com o equilíbrio competitivo; de que as forças de mercado, sozinhas, não podem explicar a determinação de salários e o desemprego. Como observado, a partir da década de 1970, parte dessas abordagens passou a incorporar “processos de interação social” à compreensão da desigualdade, buscando respostas às constatadas limitações da ortodoxia (KAMBUR, 2002).

O mecanismo de mercado passou a ser entendido, sobretudo a partir dos trabalhos Akerlof (1976; 1980; 1982; 1984) e Solow (1979a; 1979b; 1980; 1990), como determinante insuficiente não apenas pela vigência de determinadas “fricções” ― como restrição ao crédito, imperfeições de mercado, falhas de informação, incerteza, racionalidade limitada e instituições formais ―, em parte exploradas por abordagens já discutidas, mas também pelos efeitos de interações sociais que, embora a essas fricções possam contribuir, delas não necessariamente dependem (AKERLOF, 2007).

Esses processos de interação social têm ascendido junto ao reconhecimento de que o comportamento de trabalhadores e empregadores não deve ser pautado exclusivamente pela maximização da utilidade e do lucro. Ponto a ser desde já sublinhado é que as leis de oferta e demanda, a qualificação dos trabalhadores e instituições formais do mercado de trabalho certamente cumprem, segundo entendimento desta tese, importante papel para explicar diferenciais salariais; no entanto, outros fatores, “não propriamente econômicos”, também os determinam, e não apenas de modo marginal ou constritivo. Recorrentemente sugeridos no percurso até aqui, muitas vezes colateralmente ou em entrelinhas, a esses fatores “não econômicos” nos referiremos preferencialmente como convenções sociais.37 A opção pelo termo acompanha reflexão de Solow (1980) sobre motivos pelos quais o mercado de trabalho frequentemente não responde às forças de mercado.

37 Neste trabalho, preferimos “convenções” a “normas” sociais, embora o último termo seja mais utilizado. Normas sociais parecem remeter mais diretamente a ideia de sanções, que por sua vez constituem apenas um dos aspectos da influência de fatores sociais sobre o comportamento de agentes econômicos, como observado. Os dois termos, no entanto, serão utilizados intercambiavelmente. No mesmo sentido é também utilizado o termo “forças sociais”, definido por Hicks (1955, p. 390, tradução nossa) como “forças não-econômicas”, sejam costumes ou qualquer outro princípio, “que afetam o que as partes da negociação salarial pensam sobre o que é justo ou certo”.

While I find several of the candidate hypotheses entirely believable, I am inclined to emphasize some that might be described as noneconomic. More precisely, I suspect that the labor market is a little different from other markets, in the sense that the objectives of the participants are not always the ones we normally impute to economic agents, and some of the constraints by which they feel themselves bound are not always the conventional constraints. In other words, I think that among the reasons why market-clearing wage rates do not establish themselves easily and adjust quickly to changing conditions are some that could be described as social conventions, or principles of appropriate behavior, whose source is not entirely individualistic (SOLOW, 1980, p. 3).

Solow (1980) afirma que importantes aspectos da distribuição salarial, considerando suas consequências sobre o desemprego, são mal compreendidos quando “insistimos em modelar a compra e venda do trabalho dentro de um conjunto de pressupostos cujo principal mérito consiste em ser muito bem adaptado aos modelos de compra e venda de tecidos” (SOLOW, 1980, p. 3, tradução nossa).

Na esteira de Akerlof e Solow, outros autores buscaram compreender o mercado de trabalho considerando convenções sociais. Lindbeck e Snower (1984, 1986, 2001) desenvolveram a teoria insiders-outsiders, voltada à explicação da rigidez salarial e do desemprego. Segundo a teoria, os trabalhadores em atividade (insiders) não permitiriam a redução de seus salários, o que impediria a contratação de outros trabalhadores (outsiders) em contexto de desemprego, preservando-o. A princípio, os salários não seriam reduzidos pelos empregadores devido aos custos envolvidos na substituição dos trabalhadores, os quais estariam cientes desses encargos no processo de negociação, e à atuação de instituições específicas do mercado de trabalho, como os sindicatos. Originalmente similar a outras abordagens sobre rigidez salarial, a teoria passou a incorporar explicitamente a atuação de convenções sociais, considerando a vigência de “normas sociais que impedem trabalhadores sem emprego de oferecer seus serviços por salários menores que aqueles recebidos pelos trabalhadores contratados, bem como contra a aceitação dessas ofertas pelas empresas” (LINDBECK; SNOWER, 2001, p. 179, tradução nossa).

Bernheim (1994), a partir da ideia de “conformidade” a normas sociais, afirma que preferências individuais devem ser entendidas também a partir da influência de fatores sociais. Esses fatores envolveriam, principalmente, a preocupação de indivíduos com seu status (popularidade, estima, respeito, aceitação), cuja promoção ou preservação seria socialmente recompensada. O autor sugere que seu modelo pode ajudar a explicar propriedades da determinação salarial: no exemplo que utiliza, empresas pagariam salários iguais a trabalhadores de um mesmo grupo, embora alguns sejam notadamente mais produtivos que outros. Empregadores evitariam atar remunerações a diferenças em produtividade

relativamente pequenas, pois os ganhos dessa ação não seriam compensados pelos custos morais envolvidos; eles optariam por recompensar apenas trabalhadores marcadamente proeminentes (e por punir somente aqueles flagrantemente inferiores) (BERNHEIM, 1994).

A importância de fatores sociais para a determinação de salários tem sido recorrentemente apontada por Atkinson (1998, 1999, 2013, 2015). Convencido de que o aumento da desigualdade salarial em países desenvolvidos era insuficientemente explicado pela ortodoxia,38 o autor constata que o fenômeno está associado à crescente apropriação da renda pelos estratos superiores. Dedicando-se à análise de hipóteses alternativas, o autor passou a defender “o reconhecimento explícito do papel de convenções sociais [...] sobre a determinação de pagamentos” (ATKINSON, 1999, p. 2, tradução nossa).

Atkinson (1998) aponta três vias pelas quais convenções atuariam sobre a determinação salarial. Segundo a primeira, o equilíbrio de diferenciais salariais no longo prazo seria de fato determinado pela oferta e demanda, mas convenções sociais imporiam resistência aos ajustes que levariam a esse equilíbrio, assentando “consequências duradouras” sobre a distribuição de salários. A relação entre costumes ou convenções e a rigidez salarial, como observado, foi frisada por Keynes ([1936]2013) e explorada por abordagens seguintes. A segunda via, que buscaria criar pontes entre convenções sociais e as forças de mercado, seria ilustrada por teorias que se dedicavam originalmente a explicar o desemprego involuntário. Os discutidos trabalhos de Akerlof e Solow são apresentados como exemplos (ATKINSON, 1998).

A terceira via, mais bem advogada por Atkinson (1998, 1999, 2015), argumenta que as leis de oferta e demanda, embora cumpram evidente papel, devem ser entendidas como fator que “apenas estabelece limites para possíveis diferenciais salariais”, de modo que “mudanças nesses diferenciais podem ser reflexos de mudanças em convenções sociais” (ATKINSON, 1999, p. 2, tradução nossa). Contrapondo-se à ortodoxia, Atkinson (2015) observa que “na análise de oferta e demanda dos livros-texto, o salário é determinado pela contribuição ao resultado, e nada mais”. Segundo o autor, as “forças de mercado, embora indiscutivelmente potentes, concedem espaço considerável para atuação de outros determinantes, e ― mais fundamentalmente ― os mercados operam dentro de um contexto social que influencia a distribuição da renda” (ATKINSON, 2015, p. 89, tradução nossa). Como observado, Lester

38 Segundo Atkinson (1999), em fins do século XX observou-se “o triunfo da oferta e demanda” na discussão sobre determinantes de diferenciais salariais e seu aumento em países desenvolvidos. “Um fenômeno econômico de grande importância explicado por nada mais que curvas de oferta e demanda que são aprendidas por um estudante do primeiro ano”, explica (ATKINSON, 1999, p. 13, tradução nossa). Tal consenso, já observado, envolvia a ideia de que o crescimento da desigualdade salarial seria decorrente da mudança da demanda relativa de trabalhadores menos qualificados para trabalhadores mais qualificados ― mudança ora explicada pela liberalização do comércio internacional, ora pela mudança tecnológica favorável à mão de obra mais qualificada (ATKINSON, 1998, 1999).

(1952) já sugeria que as leis de oferta e demanda apenas estabeleceriam limites para a dispersão salarial; é dentro desse intervalo que, segundo Atkinson (1998, 1999), convenções sociais, como noções de justiça e de equidade, atuariam.

Ideia importante a ser destacada dentre as reflexões de Atkinson (1999) é que diferentes “normas de pagamento” podem explicar tanto diferenças na dispersão salarial entre países como mudanças em diferenciais salariais ao longo do tempo. Essas normas poderiam vigorar ora mais próximas de imperativos redistributivos, ora mais associadas à produtividade individual, a depender de circunstâncias históricas e institucionais (políticas governamentais, atuação de sindicatos, choques econômicos). O segundo momento ajudaria a explicar o aumento da desigualdade salarial em países desenvolvidos, associado a maior apropriação da renda pelos estratos superiores nas últimas décadas do século XX: sendo a desigualdade, “ao menos em parte gerada socialmente”, teria havido uma “inclinação (tilt) da relação salário/produtividade, afetando tanto os mais bem pagos como aqueles com menor remuneração; [...] uma mudança de norma de pagamento redistributiva para uma em que as forças de mercado são dominantes” (ATKINSON, 1999, p. 23, tradução nossa).

Mais recentemente, acredita Atkinson (2013), a Grande Recessão de fins da primeira década do século XXI teria contribuído para popularizar a constatação de que a determinação de salários não depende unicamente do mecanismo de mercado, abrindo espaço para a intervenção de governos na desigualdade salarial. “Cidadãos estão cada vez mais conscientes do fato de que o salário não é simplesmente um produto das forças de mercado, mas de que ele é influenciado por instituições e normas sociais que governam o comportamento de trabalhadores e empregadores” (ATKINSON, 2013, p. 7, tradução nossa).

Em suma, bastante influenciadas por Solow (1980, 1990), as reflexões de Atkinson têm ajudado a fortalecer constatação, crescentemente admitida, de que o mercado de trabalho não deve ser entendido como os demais: a determinação de salários não responderia às mesmas regras atribuídas aos mercados de tecido ou de leite.

[The supply-and-demand model] treats the labour market in the same way as the market for milk. The market for milk is typically a simple matter. We know where the dairy or the supermarket shelf is located, and we are pretty sure what is contained in the bottle [...]. The labour market is indeed quite different from the market for milk. Workers have to search for jobs; employers have to search for workers. Neither is sure what they are getting, and the relationship, once entered into, is in most cases less easily ended than simply going to a different supermarket. Taking a job is more than a cash transaction, and therefore the social context is of greater importance. In particular, as Solow says39, the labour market “cannot be understood without taking

account of the fact that participants, on both sides, have well-developed notions of what is fair and what is not” (ATKINSON, 2015, p. 90).

Estudos sobre o mercado de trabalho também têm lançado mão da atuação de convenções sociais para explicar a manutenção de baixos rendimentos entre determinados grupos. Essas convenções estariam associadas não apenas a comportamentos discriminatórios (não maximizadores) de empregadores, explorados pela literatura neoclássica, mas também a práticas de afirmação de identidade entre membros de grupos minoritários. Austen-Smith e Fryer (2003, 2005), por exemplo, sugerem que estudantes negros norte-americanos se dedicariam menos aos estudos em função da obediência à norma de “não agirem como brancos”, tornando seus salários posteriormente inferiores aos de outros grupos.40

Similarmente, Oxoby (2004), em trabalho sobre a subclasse (underclass) norte- americana, discute o “desejo inato de indivíduos por recompensas sociais não pecuniárias e o processo de adaptação psicológica que acompanha a vida em pobreza” (OXOBY, 2004, p. 727, tradução nossa). Segundo o autor, na medida em que o status é tradicionalmente vinculado à renda, indivíduos muito pobres não seriam considerados dignos e, como consequência, poderiam abandonar determinadas convenções sociais ― como normas associadas à ética de trabalho ou ao objetivo de trabalhar duro para melhorar sua posição social ―, engajando-se em outras formas de aquisição de status. Decorrente da sensação de dissonância em relação às normas sociais tradicionais, que os levaria a perseguir outras normas, esse “processo de adaptação psicológica” ajudaria a explicar o crescimento da subclasse ― e, presumivelmente, da desigualdade salarial. Esse aumento da desigualdade, por sua vez, também contribuiria para comportamentos desviantes das normas sociais tradicionais (OXOBY, 2004).

Fator que tem evidenciado o papel de convenções sociais na literatura sobre a desigualdade, além da contribuição da crise econômica de 2008 apontada por Atkinson (2013), é a crescente percepção de singular apropriação dos rendimentos do trabalho pelos estratos superiores, principalmente nos Estados Unidos. A expressiva concentração salarial detida pelo 1% mais rico, que levou Atkinson (1998, 1999) a considerar o papel de fatores sociais, tornou- se tema de destaque no século XXI. Embora outras explicações há muito rondassem o fenômeno, passou a ganhar força a ideia de que mudanças em convenções sociais poderiam

40 Os autores observam que essa constatação não é acompanhada pela sugestão de que indivíduos negros podem ser responsabilizados pela situação em que se encontram ― como estudos associados à “cultura da pobreza”, controversos em outras ciências sociais, parecem sugerir (LAMONT; SMALL, 2008). A obediência a essas normas, observada em outros grupos minoritários, não seria própria de estudantes negros: “É transparente que esse comportamento é resultado de uma interação estratégica da qual qualquer grupo com as mesmas condições iniciais seria vítima” (AUSTEN-SMITH; FRYER, 2005, p. 572, tradução nossa).

ajudar a explicar o evidente fato de que imódicos salários de executivos não podem corresponder simples e diretamente à produtividade a eles presumida.41

Em análise da trajetória da desigualdade norte-americana, Piketty e Saez (2001) enfatizam “o papel de mudanças em normas sociais como potencial explicação” para a queda da fatia da renda do trabalho detida pelos estratos do topo ― e da desigualdade salarial como um todo ― observada na primeira metade do século XX, bem como para o retorno do movimento de concentração salarial verificado principalmente a partir da década de 1970, associado às remunerações de executivos (PIKETTY; SAEZ, 2001, p. 2, tradução nossa). Segundo os autores, tanto a diminuição como o aumento da desigualdade salarial teriam ocorrido de maneira demasiadamente abrupta para serem explicados por determinantes neoclássicos, como mudanças na demanda decorrentes de transformações tecnológicas (PIKETTY; SAEZ, 2001).

Acompanhando as reflexões dos economistas franceses, Krugman (2005, 2007) afirma que normas de equidade podem ter sido responsáveis pela convergência de rendimentos entre o New Deal e a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos e que o aumento da desigualdade salarial nas últimas décadas pode estar associado ao esvaecimento dessas mesmas normas.

Much more than economists and free-market advocates like to imagine, wages ― particularly at the top ― are determined by social norms. What happened during the 1930's and 1940's was that new norms of equality were established, largely through the political process. What happened in the 1980's and 1990's was that those norms unraveled, replaced by an ethos of “anything goes”. And a result was an explosion of income at the top of the scale (KRUGMAN, 2005, p. 15).

Krugman (2005, p. 15, tradução nossa) observa que o enfoque das reflexões de Piketty