• Nenhum resultado encontrado

1 TEORIAS

1.2 CRÍTICAS, LIMITAÇÕES E DESDOBRAMENTOS

1.2.5 Sobre instituições e convenções sociais

É oportuno abrir breve parêntese sobre a relação entre convenções sociais e instituições. Parte dos estudos que passou a considerar a atuação de convenções sociais sobre a determinação salarial as tem colocado no mesmo cesto de instituições formais do mercado de trabalho, ora tratando ambas do mesmo modo, ora separando-as como coisas demarcadamente distintas.

Embora se trate de campo sem taxonomias consolidadas, algumas distinções são possíveis. Definição de instituições “amplamente aceita por cientistas sociais” é oferecida por Hodgson (2004):

We may define institutions broadly as durable systems of established and embedded social rules that structure social interactions. The term ‘rule’ is broadly understood as an injunction or disposition, that in circumstances X do Y. Hence it includes norms of behaviour and social conventions, as well as legal or formal rules. By their nature, institutions must involve some shared conceptions, in order to make rules operative. According to this definition, systems of language, money, law, weights and measures, traffic conventions, table manners, firms (and all other organizations) are all institutions (HODGSON, 2004, p. 14).43

As convenções sociais a que nos referimos são inequivocamente entendidas como instituições em seu sentido abrangente ― algo evidente para as demais ciências sociais. Estudos econômicos, no entanto, comumente se referem a instituições e a seus efeitos considerando apenas instituições formais; no caso do mercado de trabalho: salário mínimo, sindicatos, regulamentação trabalhista, tributação, etc. Como observado, sobretudo a partir da década de 1990, essas instituições passaram a ser incorporadas pela ortodoxia em estudos sobre a desigualdade salarial desconsiderando, contudo, o papel de convenções sociais (instituições informais ou mais abrangentes).

Tão restrito entendimento do termo parece ser também fruto do processo que levou a economia a tornar hegemônicas algumas das principais premissas neoclássicas. A definição de Hodgson (2004) era comum aos antigos institucionalistas de começo do século XX, como Veblen, Commons e Mitchell, cujo entendimento do homem, a ser discutido ainda neste capítulo, se opunha aos postulados da então emergente escola neoclássica. Foi junto ao decaimento da tradição institucionalista, no pós-guerra, e à ascensão da dominância neoclássica, que o entendimento abrangente de instituições se perdeu (HODGSON, 2004).

Mais tarde, os chamados neoinstitucionalistas ― entre os quais os Nobel laureados Coase (1984, 1998), North (1989, 1990, 1991, 1992) e Williamson (1985, 2000) ―, mais próximos da ortodoxia, pouco fizeram para que instituições fossem, em seu sentido inclusivo, recuperadas. Nee e Swedberg (2008) observam que, apesar de a economia neoinstitucionalista ter contribuído significativamente para explicar a emergência e manutenção de instituições formais e sua relação com agentes econômicos, ela tem ignorado amplamente instituições

43 Similarmente, Crawford e Ostrom (1995) as definem como “regularidades duradouras da ação humana em situações estruturadas por regras, normas a estratégias compartilhadas, bem como pelo mundo físico. As regras, normas e estratégias compartilhadas são constituídas e reconstituídas pela interação humana em situações frequentes e repetitivas” (CRAWFORD; OSTROM, 1995, p. 582, tradução nossa).

informais, como “convenções e normas de comportamento” (NEE; SWEDBERG, 2008, p. 799, tradução nossa).44

À parte a discussão sobre o entendimento neoinstitucionalista, mais importante é a compreensão de que, ao menos no que respeita à desigualdade salarial, não deve haver, segundo propomos, oposição entre instituições formais do mercado de trabalho e convenções sociais, como se ambas consistissem em componentes passíveis de simples dissociação. Instituições formais, especialmente no caso do mercado de trabalho, dificilmente podem ser desvinculadas das demais. Admite Acemoglu (2000), por exemplo, em estudo que enfatiza o papel de mudanças tecnológicas sobre a desigualdade salarial, que ele “tem limitado a discussão [...] a sindicatos e salários mínimos, mas que pode haver outros fatores institucionais importantes”. Segundo o autor, “o declínio do papel desempenhado pelos sindicatos e dos salários mínimos pode ter sido causado por mudanças em normas sociais, que também podem ser responsáveis pelo aumento da desigualdade” (ACEMOGLU, 2000, p. 64, tradução nossa).

Sobre essa relação, o caso da tributação tem sido mobilizado. Frydman e Sacks (2005) e Levy e Temin (2007), por exemplo, afirmam que a tributação progressiva deve ser entendida como um fenômeno endógeno, que reflete convenções sociais presentes na sociedade em determinado período. Como a tributação “frequentemente reflete mudanças em normas sociais”, muito de seu entendimento é perdido quando alíquotas ou leis tributárias são analisadas isoladamente (LEVY; TEMIN, 2007, p. 28, tradução nossa).

Não faltam exemplos sobre como instituições formais são influenciadas por normas sociais mais abrangentes, bem como sobre os efeitos de instituições e políticas públicas sobre normas de equidade (e.g. FRYDMAN; SACKS, 2005; LEVY; TEMIN, 2007; PIKETTY, 2014; PIKETTY; SAEZ, 2014a, 2014b; RODGERS, 1992; STIGLITZ, 2013; WEISSTANNER; ARMINGEON, 2018), de modo que não parece ser “proveitoso analisar instituições individuais sem primeiro explorar sua interdependência” (RODGERS, 1992, p. 590, tradução nossa). A

44 Embora autores neoinstitucionalistas não considerem apenas instituições formais, o neoinstitucionalismo concentra-se mais em determinadas instituições econômicas e políticas que em efeitos de convenções sociais mais abrangentes, sobretudo na comparação com os antigos institucionalistas. Contrariamente a seus colegas do início do século XX, eles buscam explicar as instituições a partir das interações individuais ao invés de compreender essas interações a partir de instituições (abrangentes) (HODGSON, 2004; RODGERS, 1992). De modo geral, a perspectiva neoinstitucionalista opõe-se criticamente aos institucionalistas antigos por acreditar que a teoria neoclássica não deve ser descartada, mas utilizada “para analisar o funcionamento das instituições e descobrir o papel que elas desempenham no funcionamento da economia” (COASE, 1984, p. 230, tradução nossa). Mais que questionar postulados do mainstream, sua primeira intenção é complementá-los (FLEETWOOD, 2008; NABLI; NUGENT, 1989; RODGERS, 1992). Deve-se observar que, mais recentemente, alguns autores neoinstitucionalistas, como Douglass North, passaram a defender entendimento mais abrangente das instituições, abandonando a rigorosa necessidade de eficiência (HODGSON, 2017).

relação entre instituições formais e convenções sociais, cara a importantes argumentos desenvolvidos por esta tese, será retomada em capítulos seguintes.

Em síntese

Por perspectivas menos e mais próximas da ortodoxia, reflexões sobre efeitos de fatores sociais sobre a determinação salarial são crescentemente observadas neste início do século XXI, também graças às diferentes contribuições das abordagens discutidas no percurso do pensamento econômico descrito até aqui. Mesmo influentes órgãos internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), têm questionado o postulado de que salários são, ou devem ser, determinados apenas pela oferta e demanda.

The ILO has long emphasized that “labour is not a commodity” and that, this being so, the price of labour cannot be determined purely and simply through the application of the rule of supply and demand [...]. As pointed out by Piketty45, “the price system knows neither limits nor morality” (ILO, 2016, p. 2).

A literatura sobre a atuação de convenções sociais sobre a determinação salarial, embora em ascensão, deixa em aberto importantes perguntas. Exploradas sobretudo em trabalhos sobre a desigualdade em países desenvolvidos, que papel desempenhariam normas sociais para explicar a dispersão salarial em países em desenvolvimento, como o Brasil? Abordadas com especial foco sobre grandes remunerações de executivos, que lugar teriam para a compreensão de aspectos da distribuição salarial para além da concentração no topo? Dadas as evidentes limitações e dificuldades próprias desse tipo de análise, de que meios dispomos para realizá-la? Por fim, é possível sugerir contornos e propriedades de convenções sociais particularmente associadas à extrema e persistente desigualdade brasileira? É a partir do próximo capítulo que dessas questões esta tese se aproxima.

Neste, importa encontrarem-se bem assentados o percurso do pensamento econômico que abriga a crescente consideração à atuação de convenções sociais e o que se pretende dizer quando lançamos mão deste termo. Em resumo, diferentes denominações são atribuídas ao que chamamos de normas ou convenções sociais. Sua propriedade central, no entanto, em todos os casos, envolve a ideia de que indivíduos não respondem somente às imposições da racionalidade e da maximização, e de que fatores sociais, e não apenas individuais, explicam a

determinação salarial. Por fatores sociais, entende-se que o comportamento ― em qualquer esfera das relações humanas, inclusa a econômica ― não pode ser reduzido à dimensão individualista atomizada, preconizada pela teoria neoclássica, mas também por relações sociais, impositoras de expectativas, estímulos e coerções, reforçadas por hábitos, costumes ou tradições, próprias de um ser humano cuja sociabilidade é intrínseca.

Uma questão fundamental ainda precisa ser explorada. Sendo a economia o domínio próprio para o entendimento das ações relacionadas à “obtenção e ao uso de requisitos materiais para o bem-estar”, segundo a influente definição de Marshall ([1920]2013, p. 1), resta entender como surgiu e se tornou amplamente hegemônica a ideia de que o indivíduo pode ou deve ser atomizadamente compreendido em estudos econômicos. Que processo, ou caminho, levou a economia, em contraste com as demais ciências sociais, a assim considerá-lo? ― a desprover suas ações dos efeitos de quaisquer interações com outros indivíduos. Em que medida seria correto afirmar que convenções sociais envolvem ações “não propriamente econômicas”?