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CAPÍTULO 2 TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA

2.1 A didatização dos gêneros

A partir de 1980 a ideia da transposição ganhou proeminência e conceitos como o de “transposição didática” (CHEVALLARD, 1985/1991) ou ainda, “recomposição didática” (TUTIAUX-GUILLON; MOUSSEAN, 1993) começaram a surgir no campo educacional com enfoque na epistemologia escolar.

Chevallard (1985/1991), a principal referência no assunto, relata estudo desenvolvido ao longo da década de 1980 no campo da didática das matemáticas que explicita a passagem do saber acadêmico ao saber ensinado, denominada transposição didática, um processo no qual:

[...] um conteúdo do saber, que foi designado como saber a ensinar, sofre a partir daí, um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O “trabalho” que transforma um objeto do saber a ensinar em um objeto de ensino é denominado transposição didática”.17 (CHEVALLARD, 1985/1991, p. 31).

Bronckart e Plazaola Giger (1996, p. 14), por sua vez, ao retomarem o conceito de Chevallard (1985/1981), consideram que a transposição didática é

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Tradução nossa do original, em espanhol: “un contenido de saber que ha sido designado como saber a enseñar, sufre a partir de entonces un conjunto de transformaciones adaptativas que van a hacerlo apto para ocupar un lugar entre lós objetos de enseñanza. El “trabajo” que transforma un objeto de saber a enseñar en un objeto de enseñanza, es denominado de la transposición didáctica”.

[...] o conjunto de rupturas, dos deslocamentos e das transformações que se operam no momento em que um elemento do saber teórico é tomado pela escola para ser trabalhado em um determinado programa de ensino.18

Os autores consideram que o processo de transposição didática apresenta diferentes etapas, pois se parte do conhecimento científico (o saber teórico) para o conhecimento a ser ensinado (os textos pedagógicos) e, em seguida, para o conhecimento realmente ensinado (a prática pedagógica), considerando-se as transformações desses saberes, nesses três níveis. Entretanto, o grande desafio para a Educação é essa transformação que parte de um conhecimento científico até chegar a um conteúdo didático a ser ensinado aos alunos, sem perder suas características essenciais, pois esse processo transformador exige a determinação ou adoção de um ponto de partida ou ponto de referência que deve ser o saber produzido pelos cientistas, de acordo com as regras da comunidade à qual pertence (CHEVALLARD, 1985/1991).

Nesta pesquisa, nosso ponto de partida são as teorias sobre ensino-aprendizagem de Vygotsky (1991) e as teorias sobre gêneros discursivos, em Bakhtin (2003), e sobre o ensino- aprendizagem de gêneros como instrumento de ensino, em Dolz & Schneuwly (2004).

Adotamos pressupostos seguidos pelos grupos de pesquisa Linguagem, Ação, Formação (LAF), liderado por Bronckart, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, e Análise de Linguagem, Trabalho e suas Relações (ALTER)19, liderado atualmente por Lousada, líder também do grupo ALTER-AGE (FFLCH), além de pressupostos assumidos por estudiosos do gênero tragédia, fundamentais para conhecermos suas características essenciais.

Nesse sentido, antes de tudo, devemos compreender que o ensino de determinado gênero não consiste em transposição fiel dos conhecimentos científicos sobre ele, mas que sempre haverá a transformação desses conhecimentos, para sua adaptação em sala de aula.

Em virtude dessa transformação, normalmente podem ocorrer problemas na transposição do saber científico para textos pedagógicos. Esses problemas dizem respeito, por exemplo, a uma possível falta de legitimidade da teoria de referência, causando distorções no uso de determinados conceitos ou noções.

Chevallard (2005) chama a atenção para essa legitimidade e confirma que a referência de um conteúdo de ensino e o que o legitima é o saber científico elaborado pelos       

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No original, em francês: “l’ensemble des ruptures, des déplacements et des transformations qui s’opèrent lorsqu’un élément de savoir théorique est emprunté par l’Ecole pour prendre place dans un programme d’enseignement déterminé”.

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Salientamos, que o grupo de pesquisa LAF é liderado pelo Prof.º Dr.º Jean-Paul Bronckart e o grupo ALTER não existe mais devido ao falecimento da orientadora e pesquisadora Prof.ª Dr.ª Anna Rachel Machado.

pesquisadores em cada área do conhecimento. Dessa forma, tendo em vista o nosso caso, para que não haja possibilidade de distorções, devemos recorrer às teorias de referência que fundamentam nossa pesquisa.

Tomando por base essas considerações, Bronckart e Plazaola Giger (1996, p. 16) ressaltam que todas as transformações que sofrem os textos pedagógicos para a prática escolar mostram “as diferenças existentes entre as noções advindas de um conhecimento teórico adquirido e as mesmas noções incorporadas no discurso da sala de aula e às atividades propostas aos alunos20”.

Ao considerarmos a teoria da transposição didática, alguns problemas, segundo Chevallard (1991), podem ocorrer, tais como:

1- O processo de descontemporalização: quando o saber ensinado se distancia de sua origem, de sua produção histórica, do saber científico. Para Machado e Cristóvão (2009, p. 131), esse processo denominado pelas autoras autonomização, acontece quando “determinados objetos do conhecimento são separados da teoria global e da problemática científica em que surgiram e em que ganham seu sentido específico”, acarretando outras significações, quando transpostos para o ensino.

2- A naturalização: o processo pelo qual se trata o saber a ser ensinado, sem considerá-lo como sendo historicamente criado e aberto a diferentes modalidades de relação com outros saberes, entre eles o saber acadêmico.

3- Descontextualização: quando se desfaz a relação entre o saber a ser ensinado e o saber científico, em seguida observando-se uma recontextualização em um discurso diferente, modificando-se, assim, o seu emprego, ou seja, seu sentido original. Machado e Cristóvão (2009, p. 131) afirmam que esse processo seria o fenômeno da dogmatização, em que

[...] certas noções que, no quadro da ciência de base, aparecem com o estatuto de hipótese ou de proposta de estudo, podem ser apresentadas nos documentos oficiais de modo assertivo, como verdades absolutas já estabelecidas e consensualmente aceitas no campo científico em questão. 4- A despersonalização: quando o saber científico se desvincula de seu produtor.       

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No original, em francês: “les différences qui existent entre la présentation d’une notion dans un livre du maître ou dans un manuel, et la manière dont cette même notion est effectivement mise en oeuvre en situation de classe, dan les discours de l’enseignant ainsi que dans les activités ou exercices proposés aux élèves”.

No caso dos PCN’s-LP, a transposição didática dos saberes científicos sobre gêneros efetuou, sim, o apagamento dos nomes dos autores da proposta de focar a produção escrita em gêneros de texto. Omite-se a produção proveniente do grupo de pesquisa LAF, principalmente a de Schneuwly e Dolz, sendo Bakhtin o único autor citado como fonte inspiradora (MACHADO, 2009b).

Em geral, o trabalho de transposição didática, segundo Chevallard (2005), é desenvolvido pela noosfera, a instância dos especialistas que age como um verdadeiro filtro entre o saber científico e o saber a ser ensinado na sala de aula, expresso nas propostas curriculares e nos livros didáticos.

Na noosfera encontram-se todos aqueles que influenciam os rumos do ensino, fazendo com que o saber científico se transforme até chegar às instituições escolares. Outro importante elemento da transposição didática a ser considerado são as relações de pertinência que o saber científico deve ter para ser transposto. Para isso, há a necessidade de se analisar o saber que se ensina a partir de uma fundamentação teórica relevante.

Chevallard (2005, p. 16) ainda atribui ao professor a necessidade de exercer uma vigilância epistemológica em seu trabalho. Dessa forma, a transposição didática é, para o professor,

[...] uma ferramenta que permite recapacitar, tomar distância, interrogar as evidências, pôr em questão as ideias simples, desprender-se da familiaridade enganosa de seu objeto de estudo. Em uma palavra, é o que lhe permite exercer sua vigilância epistemológica.21

Para Machado (2009b), seguir esse princípio da pertinência é uma forma para se diminuir a possibilidade de desvios no saber a ser ensinado, pois, assim, é necessário que as escolhas sejam determinadas em função do processo de ensino-aprendizagem, tendo em vista as finalidades e objetivos escolares. Há, ainda, uma outra característica nesse processo, que diz respeito à adaptação do saber ao aluno. O trabalho realizado na noosfera reorganiza o saber produzindo um novo texto e, nesse movimento, busca-se a organização de um bom ensino, visto que o ensino, antes de ser bom precisa ser possível, e, assim, a noosfera acaba considerando alguns elementos e deixando para trás outros, em função dos alunos.

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Tradução nossa do original, em espanhol: “una herramienta que permite recapacitar, tomar distancia, interrogar las evidencias, poner em cuestión las ideas simples, desprenderse de la familiaridad enganosa de su objeto de estudio. Em uma palabra, lo que le permite ejercer su vigilância epistemológica”.

Em relação ao ensino de gêneros, Machado e Cristóvão (2006) afirmam que o processo de transposição didática pode provocar problemas diante da diversidade de concepções sobre os gêneros e sobre o seu ensino.

Assim, para se investir no trabalho com gêneros de texto, é necessário conhecermos a questão da transposição didática no que diz respeito aos conhecimentos teóricos sobre a produção de texto e a adaptação desses conhecimentos à realidade dos alunos, assumindo determinada teoria sobre o ensino-aprendizagem, como, no nosso caso, a de Vygotsky.

Portanto, desenvolver material didático para o ensino de gêneros envolve não só o domínio dos conhecimentos voltados para o ensino-aprendizagem de um gênero específico, no nosso caso o gênero tragédia adaptada de Prometeu, assim como os conhecimentos que vem da Secretaria de Educação, dos livros didáticos, dos cursos de formação, além dos conhecimentos científicos sobre o gênero a ser ensinado.

Dessa forma, os conhecimentos selecionados, como os modos de transformá-los em conhecimentos a serem ensinados, estarão presentes na sequência didática de determinado gênero, a partir da elaboração do modelo didático desse gênero e são esses conhecimentos que discutiremos na próxima seção.