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1.4 As dimensões defensiva e prestacional da dignidade da pessoa humana

1.4.1 A dimensão defensiva (negativa) da dignidade da pessoa humana

De acordo com o até agora visto, a proteção da dignidade da pessoa humana impõe limites à atuação do Estado, da Sociedade Civil e dos particulares.

Tal limitação consiste na proibição de ações arbitrárias por parte dos entes referidos, como forma de proteger a incolumidade da dignidade da pessoa humana, Consiste, em outras palavras, na proibição de afetar indevidamente ou arbitrariamente os direitos individuais fundamentais do homem como a vida, a liberdade, a intimidade, a personalidade, enfim, aqueles valores revestidos e garantidos pela ordem jurídica (em especial pela Constituição) que conformam e dão sentido à idéia de dignidade da pessoa humana.

Tal idéia é assim sintetizada por Farias:

Vale dizer: que o respeito da dignidade da pessoa humana constitui-se em um dos elementos imprescindíveis para legitimação da atuação do Estado brasileiro. Qualquer ação do Poder Público e seus órgãos não poderá, jamais, sob pena de ser acoimada de ilegítima e declarada inconstitucional, restringir de forma intolerável ou injustificável a dignidade da pessoa. Esta só poderá sofrer constrição para salvaguardar outros valores constitucionais.152

De fato, em que pese constituir-se no fundamento de todo o ordenamento constitucional e, por isso mesmo, possuir imensa carga valorativa, a ponto de Silva enquadrá-

151 SARLET, op. cit., 2003, p. 111. 152 FARIAS, op. cit., p. 51.

la como “valor supremo”, a dignidade da pessoa humana não possui feitio “absoluto”.153

A dignidade pode sofrer restrições, pelo critério da ponderação154, em face de outros direitos fundamentais, nomeadamente o direito à vida, bem como em relação à dignidade de outrem.

Contudo, Nunes, muito embora admita que a dignidade de uma pessoa possa sofrer restrições em face da dignidade de outra pessoa, conclui suas idéias aduzindo que a dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto, por ser ele a “luz de todo o ordenamento”.155

Todavia, parece não ser adequado considerar o princípio em tela como absoluto, conforme já referido, uma vez que pode sofrer restrições em uma aparente colisão de dignidades, como, de resto, tal é reconhecido pelo próprio Nunes.

Na esteira do entendimento de Farias, já citado, Sarlet156 entende que a dignidade da pessoa humana não tem feições absolutas, já que pode sofrer restrições diante de eventuais tensões entre a dignidade de diversas pessoas e, até mesmo, diante de um aparente conflito entre o direito à vida e à dignidade.157

Todavia, deve ficar assentado que o princípio da dignidade da pessoa humana é o que goza de maior carga valorativa dentro do sistema jurídico-político, a ponto de ser considerado origem dos demais direitos fundamentais158; daí porque dito princípio, em que pese não se revestir de caráter absoluto, sem dúvida é o que, no conflito aparente com outros princípios (que não ele próprio)159, deve receber maior densidade ou preponderância, sob pena de se

153 SILVA, op. cit., 1998, p. 92.

154 De acordo com a lição de Sarmento: “Ao realizar a ponderação, deve o aplicador do Direito, em primeiro

momento, verificar se o caso concreto está efetivamente compreendido na esfera de proteção de mais de um princípio, o que pode ser feito através da interpretação dos cânones em jogo. Caso se constante que a hipótese realmente é tutelada por mais de um princípio, passa-se a fase ulterior, da ponderação propriamente dita: aí o interprete, à luz das circunstâncias concretas, impõe ‘compressões’ recíprocas sobre os bens jurídicos protegidos pelos princípios em disputa, objetivando lograr um ponto ótimo, onde a restrição a cada bem seja a mínima indispensável à sua convivência com o outro”. SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 56.

155 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002, p.

56-57.

156 SARLET, op. cit., 2003, p. 73.

157 Sobre esse tema, vide ainda SARLET, op. cit., 2003, p. 124-141. 158 SARLET, op. cit., 2004, p. 79.

159 Nessa linha Jacintho assevera: “[...] reiteramos que a dignidade como valor supremo a orientar a interpretação

constitucional é imponderável, insuscetível de ceder, diante do caso concreto, a outro direito, qualquer que seja ele. Como posição subjetiva, plasmada como princípio ou regra, não. Aí, em se tratando do confronto entre dignidade de pessoas diversas, uma pessoa pode ter o seu direito à dignidade relativizado, em benefício da dignidade alheia, mas a dignidade não pode ser relativizada diante de um outro direito.” JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2008, p. 175.

esvaziar seu conteúdo e seu caráter fundante do sistema.160

Ainda que o princípio da dignidade da pessoa humana não tenha caráter absoluto, embora possa sofrer restrições diante da colisão aparente de outra ou outras dignidades, o fato é que tal peculiaridade não o desqualifica como valor supremo do sistema jurídico-político, e nem lhe retira a funcionalidade de impor limites à ação corrosiva da flexibilidade dos direitos trabalhistas.

Efetivamente, como bem salienta Bobbio:

É inegável que existe uma crise de fundamentos. Deve-se reconhecê-la, mas não tentar superá-la buscando outro fundamento absoluto para servir como substituto para o que se perdeu. Nossa tarefa, hoje, é muito mais modesta, embora também mais difícil. Não se trata de encontrar o fundamento absoluto – empreendimento sublime, porém desesperado – mas de buscar, em cada caso concreto, os vários

fundamentos possíveis.161

Após esse parêntesis, retomando-se a trilha que vinha conduzindo esta pesquisa, é importante ter presente que não só o Estado, mas também a Sociedade Civil e o particular devem se abster de violar a dignidade de uma dada pessoa, não só por temor de coerção jurídica, mas também por imperativo ético de alteridade, cuja máxima reza: “não faças ao próximo aquilo que não queres que faça a ti mesmo”.

Dando-se seguimento a essa abordagem, agora sob outro prisma, salienta-se que a dimensão defensiva da dignidade da pessoa humana pode e deve ser acionada quando o homem atenta contra a sua própria dignidade.

Com efeito, assim como a vida, a dignidade é um direito inalienável e irrenunciável, razão pela qual o sistema ético jurídico não admite que o homem agrida a si mesmo e a sua dignidade.

Vale dizer, por força do princípio da dignidade humana, o Estado, a Sociedade Civil e

160 A propósito, cumpre registrar que na 1º Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho,

evento promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), pela Escola Nacional de Magistrados do Trabalho (ENAMAT) e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), de 21 a 23 de novembro de 2007, na sede do TST (Brasília, DF), restaram aprovados 79 Enunciados sobre Direito Material e Processual do Trabalho, despontando como primeiro Enuciado o seguinte, que ratifica justamente a idéia aqui defendida: “DIREITOS FUNDAMENTAIS. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO. Os direitos fundamentais devem ser interpretados e aplicados de maneira a preservar a integridade sistêmica da Constituição, a estabilizar as relações sociais e, acima de tudo, a oferecer a devida tutela ao titular do direito fundamental. No Direito do Trabalho, deve prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana”. Disponível em: http://www.anamatra.org.br/jornada/index.cfm. Acesso em: 17/01/2008.

o particular devem proteger o homem, principalmente quando fragilizado ou em situação de desvantagem, em face dos seus próprios atos, quando atentatórios da sua própria dignidade162.

Nessa esteira, colhe-se a lição de Sarlet:

O dever de proteção imposto – e aqui estamos a nos referir especialmente ao poder público – inclui até mesmo a proteção da pessoa contra si mesma, de tal sorte que o Estado se encontra autorizado e obrigado a intervir em face de atos de pessoas que, mesmo voluntariamente, atentem contra sua própria dignidade pessoal.163

Essa perspectiva da dimensão defensiva da dignidade da pessoa humana encontra eco no princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas, princípio esse que será definido e abordado em detalhes no capítulo seguinte.

Por força do princípio da irrenunciabilidade, o empregado é reconhecido como sujeito vulnerável na relação contratual com o seu empregador, razão pela qual o sistema jurídico não permite que o empregado renuncie a direitos trabalhistas mínimos (fundamentais), justamente para lhe proteger contra atos que, ainda que praticados em conformidade com sua vontade, atentem contra a sua própria dignidade.

O princípio da irrenunciabilidade, nessa linha, bem coadunado com a dimensão defensiva da dignidade da pessoa humana, tem também um efeito coletivo, no sentido de não permitir que um determinado trabalhador, ao renunciar a um determinado direito trabalhista, “abra as comportas” para que outros trabalhadores, a fim de não perderem os seus postos de trabalho, sejam também obrigados a renunciar ao mesmo direito.

Tal noção é fundamental para esta pesquisa, em especial para compreender os efeitos nocivos da flexibilização dos direitos trabalhistas, objeto do terceiro capítulo, e o papel da ação afirmativa da dignidade da pessoa humana como forma de resistência à dita flexibilização (proposta inédita desta Tese), que obriga o trabalhador a renunciar direitos, tema que será aprofundado no quarto e último capítulo deste estudo.

162 Nesse ponto, oportunas as palavras de Silva: “Assim como a responsabilidade pela própria vida, o dever de

ajudar a viver quando o outro ainda não tem, ou não mais tem, capacidade de fazê-lo por si mesmo, não é uma imposição heterônoma, um dever imposto de fora, mas uma resposta a algo que diz respeito à natureza da cada homem e de todos os homens. Esclarece Erich Fromm que responsabilidade e resposta têm a mesma raiz, respondere. Ser responsável significa, portanto, estar disposto a responder. Em termos de pensamento forte, a vida é considerada o fundamento da dignidade da pessoa humana na exata medida em que cada homem está disposto a responder às demandas de sua natureza”. SILVA, Reinaldo Pereira e. Bioética e

biodireito: as implicações de um reencontro. 2002, p. 2. Disponível em:

<http://www.advocaciapasold.com.br/artigos. Acesso em: 15/10/ 2007.

Feito esse apanhado sobre a dimensão defensiva, cumpre-se agora encerrar este capítulo, abordando a dimensão prestacional da dignidade da pessoa humana, noção que também é de grande importância para compreender a Tese aqui defendida, já anunciada nas linhas pretéritas.