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1.4 As dimensões defensiva e prestacional da dignidade da pessoa humana

1.4.2 A dimensão prestacional (positiva) da dignidade da pessoa humana

Inicialmente, é importante detectar o verdadeiro sentido da dimensão prestacional da dignidade da pessoa humana. Com efeito, quando se fala em “prestar” não significa dizer que a dignidade constitui-se um objeto que se pode entregar pronto e acabado a uma pessoa. Não é disso que se trata.

A dignidade, como se discutiu anteriormente, é a qualidade que distingue o ser humano dos demais seres vivos do planeta. Em outras palavras, por ser o homem dotado de racionalidade, ele possui uma qualidade ou uma dignidade que o distingue (diferencia) dos demais seres vivos.

A esse respeito, Sarlet esclarece:

A dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituíndo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar da possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade.164

Logo, a dignidade da pessoa humana não é um objeto que possa simplesmente ser dado a alguém. A dignidade não é um bem material, mas sim uma qualidade intrínseca do ser humano (um bem imaterial). E por ser uma qualidade intrínseca, é um dado prévio e não necessita do reconhecimento do Direito para existir, muito embora, como salienta Sarlet “[...] importa não olvidar que o Direito poderá exercer papel crucial na sua proteção e promoção”.165

Tendo tudo isso em mente, quando se fala de dignidade da pessoa humana na sua

164 SARLET, op. cit., 2003, p. 41. 165 Idem, p. 42.

dimensão prestacional, o que se “presta” não é a dignidade em si, como se fosse esta um objeto material que pode ser entregue in natura a alguém, mas sim os “meios” com os quais o homem mantém e promove a dignidade que lhe é inata.

Vale dizer, “prestacionar” dignidade é proporcionar, de fato e de direito, os meios que dignificam a existência humana, dando-lhe um “sentido”, uma condição de respeitabilidade.

Nas palavras de Martins:

Reconhecer a dignidade da pessoa humana como um valor supremo, um valor fundante da República, implica admiti-la não somente como um princípio da ordem jurídica, mas também da ordem política, social e econômica. Isto nos remete à noção de que conhecer a dignidade da pessoa humana como fundamento da República significa admitir que o Estado brasileiro se constrói a partir da pessoa humana, e para servi-la. Implica, também, reconhecer que um dos fins do Estado brasileiro deve ser propiciar as condições materiais mínimas para que as pessoas tenham dignidade. Em outra perspectiva, diríamos que a dignidade da pessoa humana passou expressamente a integrar a “fórmula política” da Constituição brasileira.166 Nessa esteira, quando o Estado proporciona educação gratuita e de qualidade à população, ele (o Estado) está “prestacionando” dignidade, já que está assegurando um “meio” com o qual o homem vai “dignificando” a sua existência, ou seja, dando um sentido a sua vida. Ao mesmo tempo, torna o homem, “diferente”, no sentido de edificar-lhe uma personalidade que lhe é única e, ao mesmo tempo, “igual”, em termos de consideração e respeito em relação ao seu semelhante.

O mesmo se aplica em relação à saúde e ao trabalho, na medida em que o Estado, para além de proclamar tais direitos, quando os presta de fato, está garantindo os meios mínimos necessários com os quais o homem irá construir a sua personalidade e dar sentido à sua existência. É desta maneira que alcança a dignidade humana, que lhe torna diferente, um sujeito único e insubstituível, mas ao mesmo tempo igual aos seus semelhantes, por ser credor do mesmo respeito.

Todavia, não é só o Estado que possui a tarefa de prestar os meios para a promoção da dignidade humana. De fato, como se viu anteriormente, o Estado é um ente cultural, fruto da racionalidade humana, que o concebeu para ser um facilitador da vida, capaz de canalizar poder e recursos para viabilizar o convívio ordeiro e pacífico dos homens em sociedade.

166 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental.

Nesse sentido, o Estado é apenas uma das múltiplas formas de organização humana coletiva, não suplantando nem o homem e nem a coletividade, já que estes é que dão sentido e legitimidade àquele.

A respeito, são pertinentes as palavras de Vieira:

O Estado e/ou mercado não podem mais se arrogar o monopólio de planejar e praticar ações sociopolíticas de interesse público deixando de fora a sociedade. Tanto o estatismo, como o neoliberalismo, deixam a sociedade em segundo plano. A saída que vem sendo tentada pelo movimento cidadão se dá por meio de um pós- liberalismo, no qual se tem um Estado socialmente controlado e um mercado socialmente orientadao. A sociedade torna-se uma ‘esfera social-pública’, constituída a partir de idéias próprias e independentes do Estado e do mercado. Essa nova esfera é não-estatal e não-mercantil, pois escapa do domínio do Estado e à lógica de lucro do mercado.167

Tendo isso presente, o que se quer deixar assentado é que o particular (a pessoa individualmente considerada) e a coletividade (a Sociedade Civil, nas suas múltiplas facetas) também têm o dever (tarefa) de prestar os meios para que o homem viva com dignidade.

Dito isso, vislumbra-se que a Sociedade Civil vem se engajando nessa cruzada desencadeada pela Constituição, não só na luta para a defesa, mas também para a promoção da dignidade da pessoa humana.

É assim que as Organizações Não-governamentais (ONG’s) vêm crescendo em número para, sozinhas ou em ação conjunta com o Estado, atuar nas mais variadas áreas de prestação de direitos sociais, voltadas à promoção da dignidade do homem, v.g., na alfabetização de jovens e adultos, na proteção da mulher e na proteção do idoso.168

Na mesma linha das ONG’s, atuam as associações de bairro, todavia com atividades específicas no atendimento das necessidades locais, como iluminação e pavimentação públicas, criação de creches, de postos de saúde e de escolas; e os sindicatos, na defesa e na promoção dos direitos das categorias profissionais que congregam, implementando ações para resistir à precarização do contrato de trabalho imposta pela onda flexibilizante oriunda do neoliberalismo econômico.

167 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001,

p. 79-80.

168 A propósito, Keller registra: “As Organizações Não Governamentais (ONG’s), têm melhor organização, mais

dinamismo e maior capacidade de influência junto ao poder do que os movimentos sociais isolados, com fins específicos. Elas tiveram participação fundamental na criação de instrumentos legais para a tutela e defesa dos Interesses Difusos”. KELLER, Arno Arnoldo. O descumprimento dos direitos sociais: razões políticas,

Quanto aos particulares, vale registrar o crescente número de pessoas que se engajam nos mais diversos segmentos da Sociedade Civil e do próprio Estado para prestar trabalhos voluntários, saindo do seu individualismo para se solidarizar com o próximo, levando dignidade ao seu semelhante e, ao fazê-lo, dignificando-se também.169

Todas essas múltiplas formas de atuação do Estado, da Sociedade Civil e dos particulares, que aqui se denominam “ações afirmativas da dignidade da pessoa humana”, serão mais aprofundadas no último capítulo desta pesquisa, em que serão aplicadas tais ações como forma de resistência contra a flexibilização dos direitos trabalhistas, numa concepção inédita do tema.

Não se desejando antecipar nada desse assunto para esse momento, mas com o intuito de assinalar a importância do tema que anima e impulsiona este estudo, não se pode deixar de destacar a advertência de Silva:

Não basta, porém, a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social como

fim da ordem econômica. É de lembrar que constitui um desrespeito à dignidade da

pessoa humana um sistema de profundas desigualdades, uma ordem econômica em que inumeráveis homens e mulheres são torturados pela fome, inúmeras crianças vivem na inanição, a ponto de milhares morrerem na tenra idade. Não é concebível uma vida com dignidade entre a fome, a miséria e a incultura, pois a liberdade humana com freqüência se debilita quando o homem cai na extrema necessidade, pois, a igualdade e a dignidade da pessoa exigem que se chegue a uma situação social mais humana e mais justa.170

Também, é digna de registro, a observação de Bobbio:

169 Vale apontar o projeto “Amigos da escola”, da Rede Globo, através do qual, pessoas prestam serviços

voluntários em estabelecimentos de ensino públicos ou privados. A respeito, vide o sítio http://amigosdaescola.globo.com/TVGlobo/Amigosdaescola/0, , AA1277302-6960, 00.html. De acordo com o contido neste sítio, consultado em 3/10/2007, “Amigos da Escola é um projeto criado pela Rede Globo (TV Globo e emissoras afiliadas) que tem o objetivo de contribuir com o fortalecimento da escola pública de educação básica por meio do trabalho voluntário e da ação solidária, e implementado em parceria com o Faça Parte, Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), além de instituições e empresas comprometidas com a educação de qualidade para todos. O projeto incentiva a participação de voluntários (inclusive alunos, professores, diretores e funcionários) no desenvolvimento de ações educacionais - complementares, e nunca em substituição, às atividades curriculares/educação formal - e de cidadania em benefício dos alunos, da própria escola e seus profissionais e da comunidade. O Amigos da Escola é um projeto de comunicação, de implementação descentralizada. Ele utiliza a força mobilizadora da Rede Globo para sensibilizar a população e a comunidade escolar a darem sua contribuição para a melhoria contínua da escola pública (em seu papel essencial de educação formal e centro da comunidade); e desenvolve ferramentas úteis para a escola que realiza, ou pretende realizar, atividades com voluntários”.

170 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de

Deve-se recordar que o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexiqüibilidade. Quando se trata de enunciá- los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto justificá-los, mas o de protegê-los.171

Nesse afã, no capítulo seguinte serão abordados os princípios do Direito do Trabalho, visando, justamente, descortinar as bases filosóficas desse ramo do Direito, para esclarecer a razão pela qual é dotado de normas que protegem o homem trabalhador na sua relação jurídica com o empregador, sujeito esse que detém o capital e os meios de produção.

Tal estudo é necessário para entender a razão de ser do Direito do Trabalho, assim como para dimensionar os efeitos nocivos que o fenômeno da flexibilização vem imprimindo ao trabalhador, suprimindo ou precarizando os seus direitos laborais arduamente conquistados ao longo da história.

Nesse sentido, conhecer os princípios do Direito do Trabalho é o primeiro passo para entender os efeitos perversos da flexibilização dos direitos trabalhistas. Aplicar os citados princípios, como se verá no último capítulo desta pesquisa, é uma forma de resistir aos efeitos precarizantes da flexibilização; são ações afirmativas, voltadas à defesa da dignidade da pessoa humana. Daí a importância e a relevância do que adiante será abordado.

171 BOBBIO, op. cit., 2004, p. 43.

CAPÍTULO II

2 A BASE PRINCIPIOLÓGICA E A CRISE DO DIREITO DO TRABALHO

O aporte teórico sobre a dignidade da pessoa humana, oriundo do capítulo anterior, cabe adequadamente no Direito do Trabalho, atualizando e fortalecendo as suas bases.

Com efeito, o Direito do Trabalho é marcado pelo seu conteúdo tutelar em relação ao trabalhador, ou seja, as normas jurídicas que o compõem são voltadas à proteção da parte mais fraca da relação de trabalho, que é justamente a pessoa do trabalhador.

Daí porque, como salienta Camino, “a desigualdade econômica, que deixa o empregado à mercê do empregador, é fator de profunda indignidade. A busca de compensação dessa desigualdade, de alcançar uma igualdade verdadeira, bustancial, é a busca da realização da dignidade da pessoa humana”.172

Como visto no capítulo pretérito, com o Tratado de Versalhes, proclamou-se o princípio segundo o qual o trabalho não há de ser considerado mercadoria ou artigo de comércio. E tal princípio prende-se ao fato de que o trabalho é indissociável do homem que o executa.

Logo, o Direito do Trabalho, que tem por objeto a regulação do trabalho humano, repousa as suas bases na proteção e na promoção da dignidade da pessoa humana, nomeadamente o trabalhador, ligando-se umbilicalmente ao Direito Constitucional, que tem, em última análise, o mesmo objetivo precípuo.

172 CAMINO, op. cit., 2003, p. 107-108.

A propósito, Camino leciona:

O trabalho humano está, assim, em ordem privilegiada em relação ao capital. Este assenta-se no princípio da livre iniciativa, relativizado em função do valor preponderante da dignidade da pessoa humana. Se assim dimensionada a escala de valores fundantes na Constituição Brasileira, realça-se a profunda identidade do direito do trabalho com a concepção do Estado democrático de Direito.173

Para entender o feitio protetor do Direito Laboral, que deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, é importante resgatar a sua origem histórica, a fim de verificar sobre que base principiológica tal Direito se erigiu e se desenvolveu ao longo do tempo.

Nas linhas que seguem, tal temática será tratada de forma sintética, necessária para os fins imediatos desta pesquisa. Na seqüência, serão abordados os princípios do Direito do Trabalho, os mais importantes, sem olvidar de antes estabelecer, ainda que rapidamente, a noção de princípio e a sua funcionalidade para o sistema jurídico.

Por fim, o capítulo abordará a crise dos princípios do Direito do Trabalho nos tempos atuais, frente ao fenômeno da globalização econômica neoliberal, que vem pregando a necessidade da flexibilização dos direitos trabalhistas como imperativo de redução de custos e de competitividade das empresas no mercado globalizado.

2.1 A Revolução Industrial e a contra-revolução social: um direito imprimido pelo