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As idéias expostas até este estágio da pesquisa evidenciam que a Filosofia e a Ciência Política evoluíram no sentido de proclamar a centralidade do homem dentro do sistema social e político, lapidando, para tanto, a noção de “dignidade da pessoa humana” como atributo que diferencia o ser humano dos demais seres vivos do planeta e, ao mesmo tempo, iguala o homem aos seus semelhantes (outros seres humanos).

Todavia, passadas as experiências históricas da Revolução Industrial e das duas Grandes Guerras Mundiais, que evidenciaram exemplos tristes de violação da dignidade humana, como a opressão dos burgueses contra os operários, no primeiro caso, e a perseguição dos nazistas contra os judeus, no segundo caso, constatou-se que não bastava meramente proclamar a dignidade da pessoa humana.

De fato, era necessário ir além, ou seja, proteger a dignidade humana com instrumentos que pudessem ser exigidos coercitivamente.

Nessa linha de pensamento, Piovesan acrescenta:

Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo do pós- guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciganos.... O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência de determinada raça – a raça pura ariana.112 A dignidade humana, então, passou a ser gradativa e progressivamente apreendida e tratada pelo Direito. Em outras palavras, o Direito passou a absorver e a regulamentar a dignidade da pessoa humana, transformando-a em uma categoria jurídica.

112 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos: desafios da ordem internacional contemporânea. Revista da Escola da

Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. n.1. São Paulo: Revista Oficial do TRT da 2ª Região, 2006, p. 92.

Os primeiros instrumentos jurídicos que passaram a reconhecer e regular a dignidade humana foram os tratados internacionais e as declarações de direitos.113

A esse respeito, Piovesan assevera:

Sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos, no pós-guerra, há, de um lado, a emergência do ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos’, e, por outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e valores. Vale dizer, no âmbito do Direito Internacional, começa a ser delineado o sistema normativo internacional de proteção de direitos humanos.114

Tendo em vista os limites e os propósitos da presente pesquisa, aqui serão abordados o Tratado de Versalhes (1919) e a Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948), tidos como exemplos proeminentes da inserção da idéia de dignidade humana no mundo jurídico. Em seguida, será abordada a constitucionalização da dignidade da pessoa humana.

O Tratado de Versalhes115, firmado em 1919, selou o fim a Primeira Guerra Mundial e criou a Liga das Nações que, mais tarde, transformou-se na Organização das Nações Unidas (ONU), tendo como um de seus braços mais importantes a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Trata-se, como se pode perceber, de documento jurídico de singular importância, considerado pela doutrina trabalhista como o verdadeiro marco inaugural do moderno Direito do Trabalho116, isso porque, o artigo 427 do mencionado Tratado promulgou nove princípios jurídicos trabalhistas117, universalizando o Direito Laboral.

113 Os tratados internacionais e as declarações de direito, que versam sobre direitos humanos e sobre direitos

fundamentais, acabaram sendo açambarcados pelo fenômeno da constitucionalização de direitos, possuindo, a partir daí, uma força normativa, vale dizer, podendo ser exigido o cumprimento dos seus preceitos de forma coercitiva. A propósito, o parágrafo 2º do art. 5º da Constituição assim dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

114 PIOVESAN, op. cit., 2006, p. 92.

115 O texto integral do Tratado de Versalhes pode ser obtido, em língua inglesa, no sítio

http://net.lib.byu.edu/~rdh7/wwi/versailles.html. Acesso em: 14/11/07.

116 A respeito, Camino assevera: “Sem embargo, o fim da I Grande Guerra deve ser mantido como marco do

nascimento do direito do trabalho enquanto ramo autônomo da ciência jurídica, porque foi a partir de então que se verificou o fenômeno de sua universalização. O Tratado Versalhes, de 1919, com seus nove princípios fundamentais, adotados pelos Estados firmatários, passou a informar a regulamentação do trabalho. CAMINO, op. cit., 2003, p. 36-37.

117 Os nove princípios fundamentais do Direito do Trabalho, proclamados no art. 427 do Tratado de Versalhes,

são os seguintes: First -The guiding principle above enunciated that labour should not be regarded merely as a commodity or article of commerce; Second -The right of association for all lawful purposes by the employed as well as by the employers; Third -The payment to the employed of a wage adequate to maintain a reasonable standard of life as this is understood in their time and country; Fourth -The adoption of an eight hours day or a forty-eight hours week as the standard to be aimed at where it has not already been attained; Fifth -The adoption of a weekly rest of at least twenty-four hours, which should include Sunday wherever

Entre esses princípios desponta como de fundamental importância o primeiro, segundo o qual “o trabalho não será considerado mercadoria ou artigo de comércio”.

Ora, está subjacente nesse princípio uma matriz filosófica nitidamente kantiana, já abordada nas linhas anteriores, segundo a qual o homem, por ser dotado de razão, não pode ser instrumentalizado por outro homem, já que é dotado de igual dignidade.

De fato, o trabalho é indissociável do homem que o presta. Vale dizer, o trabalho é o próprio homem trabalhando, daí porque o trabalho não pode ser considerado mercadoria, na medida em que, se o fosse, o próprio homem seria considerado mercadoria, o que é inconcebível e inaceitável, na linha da boa e libertadora filosofia de Kant.118

Como se discorreu anteriormente, Kant diz que as coisas possuem um preço ou uma dignidade. As primeiras podem ser substituídas ou vendidas; as segundas, não. Logo, o homem possui dignidade, já que, por ser único e dotado de racionalidade, não pode ser substituído ou vendido.

Disso tudo se extrai que o Tratado de Versalhes, muito embora não tenha feito alusão literal à “dignidade humana”, em verdade, dela se ocupou e protegeu ao proclamar que “o

practicable; Sixth -The abolition of child labour and the imposition of such limitations on the labour of young persons as shall permit the continuation of their education and assure their proper physical development; Seventh -The principle that men and women should receive equal remuneration for work of equal value; Eighth -The standard set by law in each country with respect to the conditions of labour should have due regard to the equitable economic treatment of all workers lawfully resident therein; Ninth -Each State should make provision for a system of inspection in which women should take part, in order to ensure the enforcement of the laws and regulations for the protection of the employed. Tradução livre: Primeiro - o trabalho não há de ser considerado mercadoria ou artigo de comércio; Segundo - tanto patrões como empregados têm o direito de associação visando a alcançar qualquer objetivo lícito; Terceiro - o salário a ser pago aos trabalhadores deverá assegurar um nível de vida conveniente, em relação à época e ao seu país; Quarto - o trabalho será limitado a oito horas por jornada e quarenta e oito horas semanais; Quinto - o descanso semanal será de, no mínimo, vinte e quatro horas, preferencialmente, aos domingos; Sexto - supressão do trabalho das crianças e imposição de limites ao trabalho dos menores de ambos os sexos, necessárias para permitir-lhes continuar a instrução e assegurar seu desenvolvimento físico; Sétimo - salário igual sem distinção de sexos, por um trabalho de igual valor; Oitavo - tratamento econômico eqüitativo nas leis relativas a condições de trabalho, promulgadas em cada país, para trabalhadores que nele residem legalmente; Nono - organização, em cada Estado, de um serviço de inspeção, que inclusa mulheres, a fim de assegurar a aplicação das leis para a proteção dos trabalhadores”.

118 Essa realidade é apanhada por Hobsbawm, um dos mais expressivos historiadores do mundo do trabalho, o

qual deixa assentado, em suas pesquisas, que, por trás do trabalho está o homem que trabalha, o qual merece a maior consideração. Nessa linha, são as palavras do referido autor: “Em que sentidos e direções desejamos transformar o mundo, ou: nossas pesquisas implicam transformação? Corremos o perigo de esquecer que o sujeito e o objeto de nossas pesquisas são seres humanos? Não deveríamos correr este risco, pois são pessoas – não o “trabalho”, mas homens e mulheres trabalhadores reais, mesmo que freqüentemente ignorantes, míopes e preconceituosos – o que nosso estudo focaliza. Para muitos de nós o objeto final de nosso trabalho é criar um mundo no qual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própria história, ao invés de recebe-las prontas de terceiros, mesmo dos acadêmicos”. HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Tradução de Walden Barcellos e Sandra Bedran. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 30.

trabalho não será considerado mercadoria ou artigo de comércio”, adotando a concepção kantiana que, ao tratar da dignidade humana, veda que o homem seja instrumentalizado para qualquer fim.

Parece pouco e singelo, mas na verdade o princípio em questão tem uma grande força e importância para o mundo jurídico, em especial para o Direito do Trabalho, já que coloca o homem na centralidade do sistema, sinalizando sempre para o aplicador do Direito, como diretriz hermenêutica inarredável, que o capital está a serviço do homem e não o contrário.119

Nessa esteira, vale colacionar a lição de Barbagelata:

[...] el trabajo no deve ser considerado simplesmente como una mercancía o como

un artículo de comercio, expressa un claro propósito que debe servir de guia al

legislador y al intérprete y, al mismo tiempo, reivindica la autonomía del Derecho del Trabajo respecto de la Economia.120-121

Nada obstante, Grandi adverte:

La tensión irresoluta entre trabajo-objeto y trabajo-sujeto continúa recorriendo los intinerarios, simpre más retorcidos, de un derecho del trabajo, cuyo futuro no está segurado. Precisamente, para nuestra fortuna, el trabajo no es más una mercancia; lo prohibe categóricamente la declaración de Filadélfia. Se da el caso, sin embargo, que el trabajo, bajo muchos cielos, continúa siendo tratado como si lo fuese.122-123 Outro princípio importante, que também tangencia a temática da dignidade humana, é o da limitação da jornada de trabalho em oito horas, com vistas a impedir a exploração desmedida do trabalho humano, oriunda da Revolução Industrial, em que o operário vivia para trabalhar, quando o correto, à luz da noção da dignidade humana, deveria ser trabalhar para viver.

119 A propósito, Delmas-Marty registra: “Fazer do respeito às normas sociais mínimas condição prévia à

participação no comércio internacional, tal é a idéia simples que se denomina ‘cláusula social’. Simples, sem dúvida, mas cuja realização é sempre retardada pelas fortes reclamações e suspeitas lançadas pelos que dela compartilham, e pelos seus adversários. A idéia germinou já em 1919, com a criação da OIT pelo Tratado de Versalhes: ‘O trabalho não deverá ser considerado como uma mercadoria ou um objeto de comércio’. DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Tradução de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003, p. 60.

120 Tradução livre: “o trabalho não deve ser considerado simplesmente com uma mercadoria ou um artigo de

comércio, expressa um claro propósito que deve servia de guia ao legislador e ao intérprete e, ao mesmo

temo, reivindica a autonomia do Direito do Trabalho a respeito da Economia”.

121 BARBAGELATA, Hector-Hugo. El particularismo del derecho del trabajo. Montevieo/Uruguai: Fundación

de cultura universitaria, 1995, p. 13-14, grifos do autor.

122 Tradução livre: “A tensão insolúvel entre trabalho-objeto e trabalho-sujeito continua recorrendo os itinerários,

sempre mais retorcidos, de um direito do trabalho, cujo futuro não está assegurado. Precisamente, para nossa sorte, o trabalho não é mais uma mercadoria; tal é proibido categoricamente na Declaração da Filadélfia. Se dá o caso, todavia, que o trabalho, em baixo de muitos céus, continua sendo tratado como se fosse”.

123 GRANDI, Mario. “El trabajo no es una mercancia”: reflexiones al margen de una formula para volver a

meditar. In: Estúdios en homenaje al Prof. Héctor-Hugo Barbagelata. Montevideo-Uruguai: Fundacion de Cultura Universitária, 1997, p. 206.

Com tal princípio, para além de estabelecer um limite máximo diário de trabalho, buscou-se garantir ao homem espaços de tempo na sua rotina diária para que este pudesse se dedicar à família, ao lazer, à cultura e ao esporte, bem como participar de entidades coletivas, como associações, sindicados e partidos políticos.

Em última análise, a limitação da jornada de trabalho trouxe como efeito reflexo a possibilidade de o homem garantir e promover a sua própria dignidade através do aprimoramento de suas potencialidades individuais e coletivas.

Outro princípio fundamental foi o de assegurar ao trabalhador um patamar salarial digno, capaz de satisfazer as necessidades vitais básicas com alimentação, saúde, educação, moradia e lazer. Tal princípio, além de assegurar um piso salarial ao trabalhador, impedindo a prática que reinava na Revolução Industrial de empregar apenas o operário que se submetia a laborar por menor salário, visou, também, a consagrar o princípio da isonomia salarial, ou seja, fixar igual salário para atividades semelhantes, tolhendo-se, assim, discriminações e favorecimentos.

Por tal razão, percebe-se que na idéia de fixar um patamar salarial mínimo para uma existência digna e a proibição de desigualdade salarial está subjacente a intenção de assegurar e de promover a dignidade humana, não permitindo que o trabalhador seja reduzido à condição indigna (abaixo das condições mínimas de subsistência) ou tenha a sua dignidade inferiorizada em relação a um colega de trabalho, em igualdade de condições (isonomia salarial).

Por fim, cabe mencionar-se o princípio da livre associação dos trabalhadores em sindicatos, direito este de fundamental importância para a classe operária, já que, pela organização coletiva, os obreiros conseguiram se fortalecer e reivindicar melhores condições de trabalho, aumentando o leque de direitos trabalhistas e de outros direitos sociais (como, por exemplo, a saúde e a previdência) que foram assegurando e promovendo a dignidade do trabalhador, resgatando a centralidade do homem na relação entre o capital e o trabalho.

Em síntese, o Tratado de Versalhes constituiu-se um marco histórico importante para a consagração e a proteção jurídica da dignidade humana. Os seus poucos princípios, em verdade, disseram muito para a humanidade, lembrando que o homem deve ser o sujeito e não o objeto da pujança econômica e do processo tecnológico.

Mais tarde, agora após o término da Segunda Grande Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas proclamou a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”124, em resposta às atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus e, também, pelos milhares de mortos em função do lançamento, pelos Estados Unidos, da bomba atômica sobre as cidades japonesas de Nagasaki e Hiroxima.

Tal declaração constituiu-se num verdadeiro apanágio da dignidade humana, a sua consagração definitiva como categoria jurídica, merecedora de proteção e de promoção universais, como forma não só de permanentemente lembrar a importância e a proeminência da condição humana, mas também de proteger juridicamente a dignidade dos indivíduos.

Nessa perspectiva, vale mencionar a lição de Piovesan:

A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente, vem a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passam a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.125

Como se percebe, a proteção da dignidade da pessoa humana já é sinalizada no preâmbulo da Declaração, que inaugura seu texto com o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana”. Vale se dizer, que os homens são iguais em dignidade e, por isso mesmo, são merecedores do mesmo tratamento jurídico, sem distinções, devendo ser colocados a salvo de arbitrariedades, de abusos e de perseguições.

O artigo primeiro da Declaração estabelece que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns com os outros, com espírito de fraternidade”. Esse dispositivo, para além de consagrar a dignidade humana como princípio jurídico, delimita seu conteúdo e seu contorno.

Com efeito, pela literalidade do dispositivo em questão, verifica-se que a dignidade não traduz mais a idéia de classe (dignidade que distingue e desiguala), mas sim a noção de

124 O texto integral da Declaração em tela pode ser obtido no sítio http:www.onu-brasil.org.br/documentos-

direitoshumanos.phb. Acesso em 15/10/07.

125 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 6. ed. São Paulo: Max

dignidade estabelecendo uma identidade comum entre os homens (dignidade que iguala), que é justamente o fato de possuírem razão e consciência, situação que põe o homem como credor e devedor do mesmo tratamento jurídico dispensado ao seu semelhante.

O colorido do preceito em questão é justamente uma visão dinâmica e construtiva da dignidade humana, que não se conforma só com o reconhecimento e a declaração de que os homens, por serem dotados de razão e de consciência, são iguais em dignidade. De fato, o preceito vai além, para conclamar que os homens ajam em relação uns com os outros com espírito de fraternidade.

Ora, é justamente esse espírito de fraternidade que faz o homem diferente dos demais seres vivos que habitam o planeta, permitindo manter e edificar uma sociedade justa e solidária, capaz de viver em paz, calcada não só no respeito recíproco entre os homens, mas no desejo destes de servir o seu semelhante naquilo que for possível, para que ele possa desenvolver ao máximo as suas potencialidades e fazer-se digno de fato.

Em resumo, mais do que declarar e reconhecer, o tal preceito conclama os homens a construirem, materialmente, a dignidade humana, portando-se como homens dignos e proporcionando dignidade aos seus semelhantes, através de ações calcadas no espírito de fraternidade, próprio da condição humana.126

Essa noção é de fundamental importância para se entender as dimensões defensiva (negativa) e prestacional (positiva) da dignidade humana, que serão abordadas oportunamente na seqüência deste capítulo.

De outra sorte, o artigo quarto da Declaração preconiza que ninguém será mantido em escravidão ou servidão, e que a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas. Aqui está reiterada a idéia de que o homem é dotado de dignidade, razão ela qual não pode ser tratado como res127, ou seja, como objeto de comércio.

A escravidão talvez seja a forma mais degradante de tratamento humano, pois lhe retira não só a liberdade, como também a própria dignidade humana. Daí a vedação de sua

126 Como adverte Delmas-Marty: “A universalidade dos direitos do homem remete preferencialmente a um

universo mental que a um universo real. Afirmada pela declaração ‘universal’ de 1948, ela essencialmente ainda está por ser construída. Trata-se, pois, como a globalização econômica, de um processo em curso, que possui as interrogações suscitadas pela sua aparente fragilidade”. DELMAS-MARTY, op. cit., p. 19.

prática, em qualquer de suas formas.128

Na atualidade, infelizmente, nada obstante o preceito em discussão, a escravidão continua sendo praticada pelo homem, de diversas maneiras, em diversos setores produtivos, em vários pontos do planeta.129

Todavia, calcado no princípio da dignidade da pessoa humana, o Estado, a Sociedade Civil e os particulares vêm travando ações de combate à escravidão, seguindo o firme propósito de erradicá-la, já que a sua existência é uma marca vergonhosa daquilo que o homem é capaz de fazer quando emprega sua racionalidade de forma egoísta e destrutiva. Tal