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4. ACOLHIMENTO E PRÁTICAS PARA A HUMANIZAÇÃO NOS CENTROS DE REFERÊNCIA EM DST/HIV/AIDS.

4.11 A discriminação do paciente HIV positivo.

Embora o hospital não fosse cenário da pesquisa, visitei junto com profissionais do CTA de Itabuna alguns dos pacientes internados. Durante as entrevistas, os

pacientes relataram suas experiências com estas instituições de saúde e avaliaram como péssima a forma como foram ali acolhidos. Compreende-se, a partir dos depoimentos a seguir, a urgência de uma assistência humanizada neste cenário. Compartilhando estas experiências chama-se à atenção para a necessidade do hospital repensar o seu papel sobre a atenção/assistência/cuidado dos pacientes HIV. Lembrei-me, ao tratar deste tema, da definição do meu professor durante o curso da minha residência em Saúde Pública Dr. Cosme Ordoñez Canceler, quando na ocasião definia o hospital como o “museu da morte”, à diferença dos centros de saúde e, em particular, as Unidades de Saúde da Família, as quais ele defende veemente como os “palácios da vida”. A seguir apresentamos alguns dos depoimentos:

Ah, no momento eu não estou tendo problemas, de uns anos pra cá não estou tendo problemas com internações, que nós temos hospitais que nos internam, mas anos atrás era um horror, o descaso era grande, principalmente quem não tinha plano de saúde, quem não tinha condição financeira, a alta que adquiria um apartamento ou um plano bom. (...) Aí tenho que ir pra enfermaria, a minha família que dá um jeitinho de levar televisãozinha que é pra né, pra descontrair um pouco. Dizia né, que a pessoa no hospital fica um pouco depressivo, leva uma coisa outra, fica cercando ali. (E - 18).

Olha veja bem, até hoje aquele, aquele no posto um do Regional, os dois quartos que internam os aidéticos são os palcos de atenção, tem gente que desce ali só pra ver, quem é que ta ou não ta de AIDS. (...) uma senhora ela chegou lá nos visitando, quando é no outro dia eu tô deitado e ela conversando com a amiga assim; “Não entre aí não mulher, tá todo mundo de AIDS aí (...)Não entra aí que todo mundo aí tem AIDS, ela falando e eu ouvindo (E - 10).

No Hospital, tem uma ala reservada aos pacientes de HIV e AIDS né. Então se você chega lá você fala que é soro-positivo eles já na hora te jogam lá naquela ala lá entendeu, você é atendido naquela ala, você não é atendido em outra ala do hospital, tem que ser naquela pelo que eu sei (E - 7).

O sentido do paciente “jogado” em uma ala do hospital dedicada a pacientes que vivem com Aids, representa, na fala, desta paciente um descaso com a assistência a estes pacientes. Como ele referiu-se ao hospital em um trecho de entrevista já citada, “lá só Deus sabe o que lhe espera”.

A família presente no hospital e os “jeitinhos” para levar uma rádio, televisão e outras comodidades para o ambiente hospitalar foi também relatado por Amin (2001) observando internações em dependências de Doenças Infecciosas em um hospital público de Rio de Janeiro.

Interrogamos-nos, a partir dos depoimentos aqui expostos, como também o fizeram Sabala e Marques (2006), se a prática de reservar, nas instituições de saúde, uma área para oferecer uma atenção diferenciada é justificada pela clínica – epidemiologia e as questões condizentes com a procura de uma “assistência privilegiada para pacientes necessitados” ou trata-se meramente de uma prática discriminatória. Porém, no seguinte depoimento a prática discriminatória dá-se explicitamente, no agir da profissional.

Eu tava grávida do segundo filho meu e eu tinha anemia (...) meu médico me internou pra mim tomar sangue (...) eu fiquei na porta conversando com as mães que estavam amamentando os filhos e uma enfermeira [auxiliar de enfermagem] chegou pra mim e falou: “Você não pode estar aí.” Eu perguntei pra ela o porquê se era norma do hospital ou se era por causa do problema meu de saúde. Ela disse que era por causa do meu problema de saúde.(...) eu disse pra ela que o meu problema de saúde no conversar com as pessoas não transmitia e meu médico estava junto né, meu médico chegou na hora e pediu para ela ser transferida de setor, achou que ela não era apropriada para trabalhar naquele setor no momento.(E - 16).

Perguntado se alguma vez vivenciou alguma uma experiência desagradável/mal- trato em uma instituição de saúde devido a ser soro-portador, outro entrevistado dá este depoimento lamentável.

Sim. Tinha uma enfermeira [auxiliar de enfermagem] que dizia pra minha irmã, dizia que eu era nervoso porque sabia que eu ia morrer, isso pra mim é uma discriminação ou não é? (E - 10).

O preconceito seria uma das barreiras, segundo a entrevistada, para atingir a humanização da assistência nas instituições da localidade. As práticas discriminatórias lamentavelmente ainda coexistem, umas por atrás de uma “intenção” por uma assistência desigual, porém afastando portadores de não portadores e outras mais explícitas no agir/práxis de profissionais de saúde em

serviços de saúde, onde paradoxalmente se esperaria deles uma assistência digna e humanizada.

Entretanto, uma experiência diferente, em um hospital público diferente em São Paulo.

Fui pro pronto socorro [em São Paulo], chegando no pronto socorro primeira coisa que eu fiz, foi avisar a enfermeira que ia fazer os curativos que eu era soro-positivo, mas não teve nem, nem chance dela, tava numa distância muito maior assim como estamos nós dois, primeira coisa que eu fiz foi falar pra ela que era soro-positivo e ela “não filha tudo bem, não tem problema” colocou a luva veio, cuidou dos meus ferimentos normal, me tratou como todo ser humano deve ser tratado, sem nenhum tipo de preconceito. Agora aqui é complicado, eles tem realmente aqui o preconceito é muito grande, nos hospitais, nos postos de saúde (E - 7).

Uma paciente relata sua experiência na procura de atendimento no Pronto Socorro de um hospital fora do estado e como ela sentiu-se, naquele momento, acolhida por parte dos trabalhadores/funcionários da instituição.

O hospital, como foi comentado da maioria dos depoimentos representa ainda um espaço onde se dá uma prática discriminatória e uma falta à assistência humanizada. A questão do estigma em serviços de saúde e, principalmente em um hospital em Scotland foi abordada por Green e Platt (1997) ao pesquisar a percepção de satisfação para pacientes e acompanhantes dentre outros nessa instituição em 1993. Os pacientes referiram terem sido vítimas de discriminação principalmente por negativa de atendimento, uso exagerado de equipamentos de proteção individual e percepção do medo de contágio dos seus cuidadores, como também, por uma política de dispor de áreas isoladas para pacientes HIV nessa instituição. Ainda os autores encontraram um aprofundamento ou duplo estigma em pacientes homossexuais e usuários de drogas.

Os depoimentos dos pacientes não são muito diferentes dos resultados da pesquisa britânica. Estes nos apresentaram o hospital como “museu da morte”, nas palavras do Dr. Ordoñez Canceler, deixou-nos intensamente angustiado.

Em um estudo sobre internação hospitalar reportaram como é função do médico dar as explicações para os pacientes sobre a sua doença e os auxiliares de nível médio limitam-se a falar sobre a prescrição. Este fato gera muita ansiedade nos pacientes que se sentem isolados e planejam as perguntas que irão fazer ao médico no dia seguinte. Tais resultados concordam com este trabalho.

Comentam Correia (2002) e Alves et al (2004), que o significado da Aids para os profissionais de enfermagem (auxiliares e técnicos) no exercício do cuidado de pacientes com HIV/ Aids é fortemente marcado por elementos negativos, sofrimento, medo, preconceito e inclusive uma imagem simbólica da morte evidente.

A gente vê preconceito dentro do próprio hospital. Que muitos amigos meus que já passaram, que eu nunca fiquei internada nem quero, graças a Deus. Passar por isso que eles passaram, dentro do próprio hospital ser rejeitados pelos enfermeiros, o próprio médico também. (...) Não querer tocar [os médicos], não examinar, sabe? Só dizer, só entregar a receita, tá ótimo. Isso já pra ele já, já são sentido. Aí passar, as enfermeiras passar, “Tem AIDS.” Já é uma coisa, já magoa muito uma que tem o vírus [refere-se ao hospital e outras instituições de saúde](E - 14).

Eu já sofri de chegar no posto e vim três, quatro pra olhar pra ver se você realmente tá bem, se você tá diferente, uma chamar a outra e olhar você assim mesmo na descrição mas você percebe o que está acontecendo, mas eu acho que a partir de uns anos, de uns dez anos pra cá, principalmente cinco anos pra cá acho que as pessoas já tão bem mais informadas, mas aqui na Bahia ainda existe muito preconceito (E - 5).

Segundo o Boletim da OPAS, em um trabalho publicado por Vlassoff (2003), deve-se trabalhar contra a discriminação de pacientes com HIV/Aids por parte de profissionais de saúde. Apesar dos conhecimentos atuais, ainda existem profissionais médicos no continente americano que associam a infecção pelo HIV a uma morte sem remédio [Você tem Aids, então você vai morrer]. Para o autor existem muitas razões pelas quais os trabalhadores dos serviços de saúde reagem negativamente ante as pessoas que vivem com o vírus do HIV. Essas reações estariam carregadas de preconceito devido aos profissionais acreditem que estão atendendo pessoas promíscuas ou usuários de drogas. Entretanto, o próprio artigo

reconhece que embora não existam relatórios fiéis sobre a discriminação, ela está aparentemente diminuindo. Considera que há uma deficiência de pesquisa na questão da discriminação em serviços de saúde e que, por este motivo, não se conhece ao certo a magnitude do problema e as múltiplas facetas que este traz consigo. Esta necessidade tem sido levantada no cenário brasileiro por Parker e Camargo (2000) que salientam também sobre as dificuldades de financiamento para desenvolver as pesquisas necessárias para compreender estas questões no país.

Por último, deve-se ressaltar que a questão do preconceito é marcante durante as entrevistas, Devido a um vínculo dos profissionais com a instituição que atende pacientes com HIV/Aids alguns dos relatos colhidos mostraram uma preocupação dos profissionais em serem identificados como aqueles que só atendem HIV/Aids e que isto venha a prejudicar a procura dos mesmos por parte da população. Para os profissionais o estigma poderia até vir dos próprios colegas e o fato de associar a sua clientela à sua atividade poderia inclusive estender a discriminação aos próprios pacientes. Algo assim como cliente de médico que lida com Aids, deve estar com a doença. O depoimento a seguir, dado de forma informal logo depois de terminada a entrevista com o gravador desligado, ilustra exata situação:

Um dos médicos nos comenta que no seu consultório particular atende todas as doenças, por este motivo, seria um lugar seguro para manter o sigilo a diferença do Centro de Referência, onde ele somente atende pacientes que vivem com HIV/Aids. A seguir, de forma tímida pelo fato de revelar a identidade do colega, relata que em ocasião de um encaminhamento de um paciente de seu consultório o profissional teria reclamado com ele por estar-lhe encaminhando um paciente portador do vírus. Tratava-se de uma paciente que freqüentava desde algum tempo o seu consultório particular e que necessitava de um procedimento cirúrgico. Entretanto, a paciente

não era portadora do HIV, simplesmente carregava consigo o estigma devido, não a seu estado de saúde, e sim a profissão do seu médico conhecido por atender pacientes HIV positivos. Logo esclarecido o mal entendido do colega, o profissional recriminou-lhe a conduta, por ele, assumida com a paciente.

Concordamos com Sadala e Marques (2006) que a partir de um trabalho com profissionais de saúde encontraram-se nas falas destes profissionais que a discriminação a pacientes que vivem com HIV/Aids seria um problema superado dentro dos CTA, porém ainda encontramos atos, interpretados como preconceituosos, pelos pacientes em outras unidades de saúde e hospitais.

Durante o tempo que nos dedicamos ao campo nos CTA visitados não nos deparamos com nenhuma situação de preconceito por parte dos profissionais com os pacientes. Inclusive nas entrevistas os pacientes não nos relataram ter sofrido de atos de preconceito explicito nos Centros.

Os resultados da pesquisa apontam para a necessidade de repensar a organização, práticas e disponibilidade dos profissionais para alcançar uma assistência humanizada e integral à saúde. O “médico da instituição”, visto como profissional que presta serviço ao Centro no curto período do dia, diferentemente do médico que fica disponível aos pacientes em todo momento foi o fator mais apontado como negativo, pelos pacientes, nas entrevistas.

A equipe multi-profissional faz-se necessária para médicos e pacientes, como estratégia de enfrentamento à complexa demanda que a Aids imprime. Entretanto, a organização dos profissionais baseia-se no modelo médico hegemônico enfraquecendo a integridade da assistência e o trabalho em equipe. A seu respeito, propõe-se uma abordagem coletiva dos problemas de saúde com a participação de

todos os profissionais. Estudos de casos, oficinas e seminários conjuntos apresentam-se como um caminho para a prática inter ou trans-disciplinar.

Os comportamentos discriminatórios explícitos, desvelados no estudo, aconteceram no ambiente hospital e unidades de saúde. Nestes espaços aspectos como a formação profissional estariam relacionados aos sentimentos de insegurança, medo do contágio, estruturas/áreas individualizadas que poderiam ser compreendidos pela falta de preparo dos profissionais e dos serviços e hospitais gerais para a assistência e prevenção ao HIV/AIDS.

O sentimento de isolamento, de dependência, de perda de autonomia para as coisas do cotidiano como horário para comer, tomar banho, dentre outras e, a insegurança no espaço hospitalar fazem com que os pacientes sentam-se (des)assistidos pela equipe. Segundo Sant’ana (2000) neste sentido o paciente sofre uma ruptura da sua existência como se ficasse com um tipo de déficit para o mundo separando-se de todos: família, bairro, residência, amigos etc.

A autora compara o hospital com o aeroporto não só pela sua semelhança física, mas pela tirania do tempo. Os pacientes, como foi relatado nas entrevistas, aguardam ansiosos pela chegada da equipe para transladá-los/decolá-los.

O entra e sai dos profissionais nas enfermarias e, o desconhecimento dos pacientes sobre os exames futuros, acabam aumentando a ansiedade dos mesmos. Concordamos com Amin (2001) e Toralles-Pereira (2004) sobre a urgente necessidade em chamar a atenção das equipes para se esforçar por entender como os pacientes lidam com a sua doença/cuidado e quais as suas expectativas com a assistência.

Os Centros Especializados funcionariam como “ilhas de assistência verticalizadas" tendo inclusive dificuldade de se inserir no Sistema de Saúde. Os

pacientes e profissionais nos levam a refletir sobre as competências que se espera dos profissionais da saúde em cuidar e relacionar-se com pessoas com HIV/AIDS, assim como sobre o impacto dessa formação na eficácia do programa de assistência e prevenção da doença.

5. A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE. UMA BREVE INTRODUÇÃO AO

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