• Nenhum resultado encontrado

5. A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE UMA BREVE INTRODUÇÃO AO OBJETO.

5.7 A relação médico-paciente: perspectiva avanço tecnológico

O debate sobre a relação médico-paciente no cenário nacional centra-se, a nosso ver, em várias vertentes. Duas delas, que nos chamam a atenção são: a introdução da tecnologia na relação médico-paciente e suas nuances com o distanciamento da clínica médica. Neste tópico, pretendem-se discutir algumas dessas vertentes, porém centram-se naquelas que consideramos importantes para elucidar o tema tratado nesta tese.

A relação médico-paciente desde um ponto de vista bioético-tecnológico é discutida por médicos, na sua maioria, professores do ensino da clínica médica e bioeticistas. Dentro desse grupo, destacam-se Galvão, Sirqueira, Sabattini, Eliana Azevedo, Cruz Neto, dentre outros. Para estes autores, a crise na relação estaria fundada no deslocamento da figura do médico ante a ameaça do avanço tecnológico.

Utilizando uma analogia com os problemas bioéticos da atualidade discutidos e classificados por Berlinguer (1991), a relação médica no contexto da medicina moderna ocidental-biomédica-hospitalocêntrica apresenta duas vertentes problemáticas: mudanças no cotidiano de uma relação médico-paciente voltada para a boa clínica geral e sua visão humanística do sujeito e, outra vertente mais periférica de fronteira, mais preocupada com os avanços da biotecnologia, a genômica e a clonagem de seres humanos. Ainda, há uma preocupação bioética ligada ao direito que procura caminhos para avaliar o poder dos médicos, a necessidade de consentimento informado e outras questões que emergem a partir de processos jurídicos contra erros médicos em exercício da medicina, seja pela rotina da prática clínica ou pelo uso de uma tecnologia médica mais invasiva.

Para Cruz Neto (2003), a relação médico-paciente deve ser avaliada constantemente, ela, segundo o autor, “representa a mais importante das relações humanas onde estão contidas as dinâmicas de enfrentamento e restabelecimento do equilíbrio saúde - doença” (Cruz Neto, 2003:307).

Em uma sucinta opinião sobre o tema, Cruz Neto (2003) aponta para dois pilares que vem dificultando a relação médico-paciente no contexto da medicina no mercado da saúde, são eles: (1) a questão da formação médica e a valorização da especialização, que discutiremos mais adiante, e (2) a relação profissional dos médicos com os laboratórios e indústrias farmacêuticas. Ambas as linhas trazem consigo a discussão da inserção da tecnologia neste espaço. No entanto, a primeira enfatiza o crescimento na procura de novos profissionais por cursos especializados, nem sempre condizentes com uma boa prática médica, em detrimento de uma medicina mais voltada para o ser humano com uma visão humanística-social. A valorização da especialização, na opinião do autor, mudou as lentes da prática.

Abandonou-se uma visão generalista do homem e o seu lugar, que gradativamente foi substituído, instaurando-se um “minifúndio” dos especialistas que insistem na visão reducionista de um corpo humano dividido em partes. A boa clínica geral vem se distanciando de seu objetivo primaz: o ser humano.

A respeito disto, o autor afirma que a interação de médicos e pacientes sob a ótica de uma medicina verticalizada/super-especializada vem sofrendo na condução do cuidado com consecutivos desacertos, uma vez que os pacientes percebem um distanciamento/abandono por parte do médico. Assim, Cruz Neto (2003) chama atenção para que os profissionais percebam suas incoerências e procurem refazer os laços do processo interativo visando à demanda/anseios dos seus pacientes enquanto seres humanos.

Para Boaventura Santos, a ciência moderna traz consigo a questão da especialização, disciplina e olhar verticalizado e, que por este motivo, acarreta efeitos negativos.

Na ciência moderna, o conhecimento avança pela especialização. O conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje se reconhece ser o dilema básico da ciência moderna: o seu rigor aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que espartilha o real. Sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor. É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. Esses efeitos são, sobretudo, visíveis no domínio das ciências aplicadas. As tecnologias preocupam-se hoje com o seu impacto destrutivo nos ecossistemas; a medicina verifica que a hiperespecialização do saber médico transformou o doente numa quadrícula sem sentido (Santos, 1988:64).

Retomando Cruz Neto (2003), a prática médica encontra-se emergida em disputas pessoais e, como conseqüência, os pacientes sofrem com intervenções particuladas que não garantem uma atenção/assistência/cuidado necessário para seus problemas de saúde.

O que é certo é que, no campo da saúde/doença, o saber e o agir de médicos são cada vez mais apropriados com meros produtos de mercado e geradores de lucro. Em alguns casos, o “estoque de conhecimento e de experiência” é desvalorizado em detrimento do número e do tempo das consultas contabilizadas (Cruz Neto, 2003:307).

Para Machado (1996), a medicina do século XX apresenta-se com problemas, em parte devido aos avanços nos aspectos técnico-científicos que levaram as mudanças substantivas em algumas características sociológicas básicas que compõem a medicina e que vem acarretando um processo de des-profissionalização da prática médica. Neste sentido, segundo a autora, destacam-se a perda do monopólio do conhecimento, da autoridade sob a clientela, da erosão da autonomia, da mesma forma que a crescente insatisfação do profissional com a introdução de avanços tecnológicos, os quais invadem áreas de saber e da prática, até então exclusivas e monopolistas (Machado, 1996).

Afirma Machado (1996) que a profissão médica vem passando por um processo de transformação que evidencia um processo de especialização desenfreado, distante das necessidades reais dos indivíduos enquanto sujeitos, porém, em um saber científico-técnico consolidado com marcado olhar objetivista sobre a doença.

Neste sentido, Starr (1991) ao estudar o caso americano, chamou atenção para o fato do crescimento da ciência, ao invés de manter o status quo, acabar levando os médicos a dependerem cada vez mais de empregos e organizações/empresas/instituições. Os profissionais, como lembrara Schraiber (1993), vêm perdendo o espaço da autonomia na prática para o mercado da medicina e isto, sem dúvida, tem trazidos enormes prejuízos à confiabilidade na relação. A medicina do século XX, assentada na racionalidade tecno-moderna, vem despindo o sujeito de sua subjetividade e colocando no seu lugar um corpo doente (Caprara e Franco, 1999; Luz, 2004; Camargo Jr, 2005).

Este processo de transição de uma medicina-arte para uma medicina refém do mercado tem trazido mudanças no simbólico da especialização, como alternativa de enfrentamento a perda de uma autonomia e da concorrência desleal da tecnologia pelo diagnóstico da doença. Como resultado, aponta Starr (1991), tem crescido a distância emocional entre o sujeito-doente e os responsáveis por sua atenção/assistência/cuidado.

Para Luz (2004), enfrentamos uma crise ética do capitalismo que leva a colocação em segundo plano dos valores sociais. A crise está centrada no mundo das relações sócio-culturais, onde se originam valores a partir da racionalidade do mercado, tais como: competição - vista como a lei da vida social; sucesso - como uma vitória pessoal; individualismo – vertente do sucesso, porém, como uma luta entre indivíduos para alcançá-lo; lucro – referindo-se a categoria do mundo econômico, invadindo a esfera dos valores através de seu correspondente social; vantagem – quando os indivíduos consideram-se com direitos sob os outros; consumismo – visto como demonstrativo do sucesso (simbólico), o ter para ser; e, por último, a produtividade – como categoria dos processos produtivos aplicada ao desempenho individual através de normas pontuadas.

A interiorização de valores como competição, individualismo e consumismo nos profissionais de saúde trouxe uma mudança sociocultural na representação do médico e seu papel perante a sociedade. Para a autora, o mundo do trabalho médico apresenta-se hostil à vida, sendo o seu enfrentamento um estado de mal- estar e adoecimento. Profissionais médicos limitam seu descanso na procura de maiores rendimentos e enfrentam o vício institucional do subemprego, praticando verdadeiras danças entre hospitais e consultórios em uma maratona para exercer a sua atividade.

(...) não existem, hoje em dia, profissionais mais estressados e sem descanso que aqueles voltados para a atenção à saúde, sobretudo a saúde coletiva. Obrigados a se dedicarem a mais de um emprego, às vezes três ou quatro, para compensarem salários aviltados, esses profissionais raramente podem ter um período anual adequado de descanso, passando anos sem tirar férias (...) são eles os encarregados da atenção à saúde da população. Sem ter quem deles cuide, têm que cuidar dos outros.... (Luz, 2004:17).

Por outra parte, a representação social do sucesso, centrada no ter, coloca estes profissionais em um páreo consumista, onde desde roupas, veículos, estruturas do consultórios/residências como outros elementos da vida cotidiana, emitem valores de mercado a respeito do sucesso profissional e, daí a sua “competência”. Valores que são cultuados pelos alunos de medicina que espelham o caminho a ser trilhado como o fez o “bem sucedido professor”. Valores, que devem os alunos seguir, nessa vida pactuada no ter, como elemento simbólico do ser e, então, como sendo o certo a seguir nessa corrida pela competição, onde os valores morais estarão em um segundo plano. A relação médico-paciente ganha mais uma aresta assimétrica entre o poder construído do sucesso individual, a necessidade de um paciente que, por motivos vários, não oferece uma garantia de retorno econômico.

As conseqüências desse desenfreado jogo pelo sucesso/consumo, onde nem sempre as condições/renumerações são compatíveis com o trabalho, evidencia-se na conduta médica pautada no abuso de procedimentos laboratoriais que vem banalizando o papel e o lugar do paciente e, como resultado desta “banalização” há uma limitação do tempo/capacidade de escuta, com transferência desta ação para outras áreas de conhecimento, como psicólogos, analistas e terapeutas. Por sua vez, não somente observa-se uma limitação do tempo, senão há algo mais além, que é a depreciação do discurso subjetivo e a interpretação dos seus achados. A relação voltou-se para a objetividade posta nos exames/sinais clínicos/regras de

mercado o que a fez perder a sua essência (Schraiber, 1993, 1997; Cruz Neto, 2003; Campos, 1997).

Para Moreira (1979), observa-se na prática médica um aumento na demanda de exames e um decréscimo na prática de uma medicina centrada no toque e na conversa. A supremacia dos recursos tecnológicos na medicina moderna, pautada no abuso de exames, a exemplo dos de imagem como: radiografias para detalhar aspectos clínicos da doença de pacientes, profere um lamentável menosprezo à amamnese e ao exame físico, sendo estas as ferramentas essenciais da clínica médica. Uma radiografia “substitui mil palavras e dezenas de perguntas e torna desnecessárias as detalhadas explicações ao paciente” (Moreira, 1979:43).

Como lembram Csordas e Kleinman, (1996) o sucesso terapêutico está na relação entre terapeuta-cliente e no seu diálogo. O respeito e a confiança são sustentados nesse espaço inter-pessoal. Ante um exame mal explicado e incompreensível para o paciente, haverá uma procura por outro profissional e esta dará-se como natural ante desconfiança pela conduta tomada pelo médico. Finalmente, esta conduta carrega incertezas sobre a continuidade de tratamento e/ou procura de outros procedimentos (Helman, 1994; Caprara e Franco, 1999). A má prática médica voltada para consultas rápidas, incompletas e super-corridas traz severas conseqüências para a confiança entre médicos e pacientes. Utilizar-se de justificativas como: deficiências estruturais dos serviços públicos, baixa renumeração, precárias condições de trabalho e, como pano de fundo, uma comparação desigual com os serviços privados estimula a discriminação entre os pacientes particulares/conveniados. Mas estes argumentos superficiais não justificam o descaso de alguns profissionais que na sua atitude mostram um desprezo pela vida humana e a dignidade dos pacientes (Sabbatini, 2006).

Defende Galvão (2000), que mesmo com o avanço tecnológico, a medicina continuará a utilizar a sua ferramenta mais importante e humana: a anamnese médica. Em um trabalho publicado para a Revista Bioética, este autor cita como as questões do subemprego, as precárias condições da instituição e a insatisfação profissional vêm desempenhando um papel negativo na relação médico-paciente. Para Galvão (2000), há uma deficiência na formação médica, pois as faculdades e o mercado estimulam a super-especialização. Segundo ele, formam-se médicos com muita capacidade para saber muito sobre um determinado órgão, porém esquece-se de guiá-los para o cuidado do ser humano como um todo. Vale salientar, que o autor, ainda afirma que há uma cultura do não-envolvimento emocional dentro das faculdades de medicina e que isto traz precedentes para um distanciamento dos profissionais com a dor e o sofrimento dos pacientes sob seu cuidado.

As faculdades ensinam o não envolvimento emocional com a dor e o sofrimento do paciente. Como é possível ajudar alguém que sofre sem envolver-se também em seu sofrimento? (Galvão, 2000:2).

Entretanto, para o autor, seria necessário “certo distanciamento”, permissível, a fim de não comprometer o raciocínio médico e a conduta a ser tomada, porém, de forma que não comprometa a relação médico-paciente.

Pereira Filho (2002) reconhece que “talvez tenha sido a autonomia do paciente o primeiro obstáculo a se opor à autonomia médica”, porém, acrescenta outros dois obstáculos que, segundo ele, são “bem mais poderosos e não tão saudáveis”: o avanço tecnológico e a organização empresarial. Neste sentido, Cruz Neto (2003), chama a atenção para o despertar da sociedade ante a pressão manipulatória que a indústria do mercado da saúde vem exercendo contra os profissionais médicos. Cabe salientar que, este setor visa o lucro em detrimento de uso social do medicamento e da valorização do espaço público. Embora, a pressão seja quase universal, não são todos os profissionais que se colocam a serviço das exigências

deste marketing farmacêutico que trata o paciente como cliente/usuário/consumidor de produtos para a saúde. Porém, o lobby das empresas farmacêuticas, para Dávila (2006), deveria ser reprovado pela classe médica e a sociedade, visto que tem uma tendência de mercado. Entretanto, Murad (2006), afirma que o que existe é um mau entendimento e que as empresas de mercado tentam “manchar” a imagem da profissão médica e “jogar” os pacientes contra os médicos.

Finalmente, tem-se debatido olhares sobre a relação médico-paciente desde vários pontos de vista, que embora defendam sua posição, encontram-se imbricados em uma malha de significados sobre a relação ideal. Ancorando-se em Ayres (2001), a relação como espaço de intersubjetividade constituída no diálogo entre sujeito-profissional e o sujeito-população deve respeitar os saberes, nela emergidos. Saberes sobre a experiência pessoal sob o processo doença/itinerário/cura que aparece na construção social da doença e os significados de illness e disease, enunciados pelos antropólogos americanos. O reconhecimento do outro em Ayres (2001) funde-se a idéia da alteridade no contexto bioético da autonomia de autores, como Goldim e Fransisconi (1996) e Galvão (2000). A procura de uma integralidade da assistência que enfatiza o reconhecimento a uma prática integral do cuidado em Mattos (2001), ou uma organização em rede interligada de instituições e serviços segundo Cecílio (2001) e Paiva (2002), trazem a importância de repensar a nossa prática enquanto sujeitos ativos no processo de construção da saúde, independentemente de nossa posição na relação como profissionais, pacientes, usuários, mas, como cidadãos. Por último, a humanização da assistência defendida por Caprara e Franco (1999) e Caprara e Rodrigues (2004) que se dá precisamente na interseção de uma relação dada no diálogo inter-pessoal, mediada através da negociação de saberes, práticas e representações. Neste sentido, aparecem os

trabalhos de Merhy (2000) que trazem as ferramentas tecnológicas da comunicação (leves) para o espaço intercessor na procura de uma assistência/cuidado/acolhimento dos sujeitos e suas necessidades.

Vale salientar que a maioria dos autores nacionais citados debruçara-se em uma relação médico-paciente no contexto da Aids. Para eles, mesmo que se utilizando de seus argumentos, a relação médico-paciente nesse contexto, assim como as práticas de enfrentamento da epidemia, estão carregadas de valores e sentidos que precisam ser considerados. Falar da Aids vai além da perspectiva biomédica. A doença, como lembra Sontag (1989), está carregada de significados no imaginário popular e exprime aspectos íntimos da vida individual e coletiva. Porém, como foi apresentado por Cruz Neto (2003), a introdução da tecnologia, embora referente aos laboratórios, mas podendo ser aplicável a tecnologia médica dos exames/procedimentos, tem mudado o objeto da medicina, fragmentado o corpo humano e estimulado o olhar reducionista/tecno-científico/objetivo-concreto em detrimento da clínica e do discurso subjetivo dos sujeitos (Camargo Jr, 2005: Luz, 2004).

No entanto, para Knauth (1995), as diferenças existentes entre os sujeitos partícipes de um relação e suas representações a respeito do processo saúde- doença mostram-se mais evidentes quando a doença, em questão, é o HIV/Aids. A heterogeneidade de espaços e as individualidades da prática médica representam um desafio para as políticas públicas que lidam com a Síndrome. Neste sentido, a tecnologia, aqui compreendida como exames de monitoramento do HIV/Aids (Carga Viral Plasmática, Contagem de Linfócitos CD4), poderia ser interpretada pelo médico como extensão indissociável de seu corpo e prática, podendo se sentir este impossibilitado, quiçá por capacidade técnica, insegurança ou comodidade, de

atender, na sua falta, aos pacientes. Sendo assim, os exames poderiam se considerar um instrumento/elemento inseparável da prática médica no contexto da Aids e todos os pacientes seriam convocados a os utilizarem. Embora, reconheça-se o papel dos exames na evolução da epidemia como instrumentos/ferramentas importantes na melhora do cuidado dos pacientes, acreditamos que é na Aids onde melhor se materializa o enunciado de Gracia (1990) sobre uma relação médico- paciente-sociedade essencialmente conflitiva.

Documentos relacionados